quarta-feira, 27 de abril de 2011

O Povo das Mercadorias


Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Europa. Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: "Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente numerosos, jamais seremos miseráveis". Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada", que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é boa para beber.

Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seus calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tornaram eufóricos e se disseram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar na dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?"

Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigens e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os yanomami são mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes", as mineradoras, entram por toda parte sob a terra para retirar minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais.

[O universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio". O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos. É habitado pelos ancestrais yanomami da primeira humanidade, que se tornaram monstros canibais, os aõpataripë.]

Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapiripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. A terra dos brancos estão contaminadas, estão cobertas da xawara wakixi, uma "epidemia-fumaça", que se extendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celes Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas namoradas.



Davi Kopenawa Yanomami, xamã, 1998.

O Cachimbo Sagrado da Paz


Há uma história de como o cachimbo primeiro veio a nós. Faz muito tempo atrás, dizem, dois caçadores estavam fora procurando por bisões; e quando chegaram ao topo de uma alta colina e olharam para o norte, viram algo surgindo a uma grande distância e quando chegou mais perto gritaram, "É uma mulher!", e era. Então um dos caçadores, sendo estúpido, teve maus pensamentos e os falou; mas o outro disse: "Esta é uma mulher sagrada; jogue fora todos os maus pensamentos". Quando chegou ainda mais perto, eles viram que ela usava um fino vestido de pele de gamo, que seu cabelo era muito longo e que ela era jovem e muito bela. E ela sabia seus pensamentos e disse em uma voz que era como um canto: "Vós não me conheceis, mas se quereis fazer como pensais, podeis vir". E o estúpido foi; mas assim que parou diante dela, fez-se uma nuvem branca que veio e os cobriu. E a bela e jovem mulher saiu da nuvem, que quando se dissipou o homem estúpido era um esqueleto coberto de vermes.

Então a mulher falou ao que não era estúpido: "Tu deves ir para casa e dizer a teu povo que eu estou chegando e que uma grande tenda deve ser construída para mim no centro da nação". E o homem, que estava bastante amedrontado, foi rápido e disse ao povo, que fez logo o que foi mandado; e lá ao redor da grande tenda esperaram pela mulher sagrada. E depois de um tempo ela veio, muito bela e cantando, e enquanto entrava na tenda eis o que cantava:

"Com respiração visível estou andando.
Uma voz estou mandando enquanto ando.
De maneira sagrada estou andando.
Com pegadas visíveis estou andando.
De maneira sagrada eu ando."

E conforme cantava, vinha de sua boca uma nuvem branca que era boa de cheirar. Então deu algo ao chefe, e era um cachimbo com um vitelo de bisão entalhado de um lado para significar a terra que nos sustenta e alimenta, e com doze penas de águia pendurados na haste para representar o céu e as doze luas, e estavam amarrados com uma erva que nunca rompe. "Olhai!" ela disse. "Com isto vós podeis multiplicar-vos e serdes uma boa nação. Nada além do bem poderá vir dele. Apenas as mãos dos bons devem cuidar dele e os maus não devem sequer vê-lo". Então ela cantou novamente e saiu da tenda; e enquanto o povo assistia a sua partida repentinamente era um bisão branco galopando e bufando, e breve partiu.


Isto eles dizem, e se aconteceu assim ou não eu não sei; mas se pensares sobre isto, poderás ver que é verdade.

Agora eu acendo o cachimbo, e depois que eu o ofereça aos poderes que são Um Poder, e mande minha voz para eles, poderemos fumar juntos. Oferecendo a pitada antes de tudo para o Um sobre nós -- então -- mando minha voz:

He he! He he! He he! He he!

Avô, Grande Espírito, vós exististe sempre, e antes de vós ninguém existiu. Não há nenhum outro para louvar que vós. Vós próprio, tudo o que vedes, tudo o que foi feito por vós. As nações das estrelas por todo o universo vós as terminastes. Os quatro quadrantes da terra vós terminastes. O dia, e nesse dia, tudo o que há, vós terminastes. Avô, Grande Espírito, inclinai-vos perto da terra para ouvir a voz que mando. Vós para onde o sol se põe, olhai-me; Seres do Trovão, olhai-me! Vós onde o Gigante Branco vive em poder, olhai-me! Vós onde o sol brilha continuamente, de onde vêm a estrela da alvorada e o dia, olhai-me! Vós nas profundezas dos céus, uma águia de poder, olhai! E vós, Mãe Terra, a única Mãe, vós que mostrastes mercê por vossas crianças!

Ouvi-me, quatro quadrantes do mundo -- um parente sou! Dai-me a força para caminhar sobre a terra macia, um parente de tudo o que existe! Dai-me os olhos para ver e a força para entender, que eu possa ser como vós. Unicamente com vosso poder posso encarar os ventos.

Grande Espírito, Grande Espírito, meu Avô, por sobre toda a terra as faces dos seres viventes são todas semelhantes. Com carinho surgiram do solo. Olhai sobre estas faces de crianças sem número e com crianças em seus braços, e que possam encarar os ventos e trilhar o bom caminho e o dia da tranqüilidade.

Esta é a minha reza; ouvi-me! A voz que mandei é fraca, mas com seriedade mandei. Ouvi-me!

E é assim. Hetchetu yelo!

- - -

Agora, meu amigo. Fumemos juntos o cachimbo para que haja somente o bem entre nós.

Xamã Hehaka Sapa - Oglala Sioux

Anarquitetura

ANARQUIOQUÊ?

Nicholas Renshaw

Anarquitetura é um meio pelo qual qualquer pessoa pode adaptar e ampliar o significado e essência de qualquer espaço. É uma maneira de fazer a arquitetura e o controle dela um pouco mais balanceados, entre as pessoas que a desenham e aquelas que a utilizam. Anarquitetura não envolve uma permanente adaptação física de um espaço, mas trabalha muito mais por mudar a significação do espaço dentro da comunidade que o utiliza. É uma forma de criar uma mudança mental numa área, de modo que deste momento em diante, o espaço é lido de um modo diferente.

Para o anarquiteto, dado um espaço, tudo que se precisa fazer é causar algum evento, ou colocar um objeto dentro de um espaço que ou dê uma leitura diferente do espaço, ou adapte o espaço para uma proposta diferente. Isso poderia atribuir uma nova história ou um uso desconhecido para o lugar; poderia significar adaptar o modo pelo qual você se move pelo espaço. Talvez usando a fisicalidade do espaço de uma forma diferente da que você esperaria.

Se esta interrupção do espaço é feita na presença das pessoas que usam o espaço, ou mostrada numa data posterior para elas, ela será recordada da próxima vez que elas usarem o espaço. Então isso vai começar a se entranhar na história do espaço. A anarquitetura funciona de boca em boca, ela funciona por quê está dentro do domínio público e não dentro da estrutura da arquitetura. Ela afeta a arquitetura fora do tecido que a perfaz; ela é portanto algo sobre o qual os encarregados do espaço tem pouco controle.

A parte importante é certificar-se de que uma ampla audiência tenha acesso à intervenção, pois é só com as pessoas falando sobre ela, que ela se tornará parte da arquitetura. Contudo, se isso pode ser realizado então uma coisa pode levar a outra, espaço, arquitetura e a vida em geral podem se tornar mais fluidos de significado, mais soltos e menos fixos. Isto poderia afetar a arquitetura que é construída, na medida em que muda a cultura dentro da qual as corporações teriam de construir. Através da anarquitetura nós podemos afetar a tela sobre a qual os planejadores urbanos terão de planejar, sobre a qual arquitetos terão de construir. Usuários do espaço terão uma percepção direta de como a arquitetura é lida, usada e construída.

Tradução de Ricardo Rosas

Texto extraído do site dos anarquitetos Space Hijackers (www.spacehijackers.co.uk), os "sequestradores de espaços", arquitetos-ativistas que lutam contra a dominação arquitetônica, econômica, social, das corporações.


rizoma.net

Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários

A Plataforma Organizacional foi elaborada por anarquistas russos exilados, reagrupados sob o nome de Dielo Truda, objetivando organizar os anarquistas do mundo inteiro em torno do projeto revolucionário.

Este texto foi diretamente inspirado nas lições que tiraram dos eventos revolucionários em que atuaram, e está dividido em quatro partes:

· Introdução
· Seção Geral
· Seção Construtiva
· Seção Organizativa

INTRODUÇÃO

É muito significativo que, apesar da força e do caráter indiscutivelmente positivo das idéias libertárias, da nitidez e da integridade das posições anarquistas diante da revolução social; enfim, do heroísmo e dos inúmeros sacrifícios realizados pelos anarquistas na luta pelo comunismo libertário, o movimento anarquista continua fraco e com freqüência tem figurado, na história das luta da classe operária, como um evento menor, um episódio, e não como um fator importante.

Essa contradição, entre o fundamento positivo e incontestável das idéias libertárias e o estado miserável em que vegeta o movimento anarquista, explica-se por uma série de causas, das quais a mais importante, a principal, é a ausência de princípios e práticas organizacionais no movimento anarquista.

Em todos os países, o movimento anarquista é representado por algumas organizações locais, que defendem teorias e práticas contraditórias. Não têm qualquer perspectiva de futuro nem de continuidade da ação militante, habitualmente desaparecem sem deixar o menor traço de sua passagem.

Tal é a situação do anarquismo revolucionário que, se a tomarmos em seu conjunto, só podemos qualificá-la como uma "desorganização geral crônica".

Como a febre amarela, a doença da desorganização apossou-se do organismo do movimento anarquista e o vem minando há dezenas de anos.

Sem dúvida, essa desorganização deriva de alguns defeitos da teoria: notadamente, numa falsa interpretação do princípio da individualidade no anarquismo; este princípio tem sido com muita freqüência confundido com a total ausência de responsabilidade. Os amantes da auto-afirmação, que visam unicamente o prazer pessoal, agarram-se obstinadamente ao estado caótico do movimento anarquista e se referem, para defendê-lo, aos princípios imutáveis do anarquismo e seus mestres. Ora, os princípios imutáveis e os mestres demonstram justamente o contrário.

A dispersão e o desmembramento: eis a ruína. A união estreita é sinal de vida e de desenvolvimento. Esta lei da luta social aplica-se tanto às classes quanto aos partidos.

O anarquismo não é uma bela utopia, tampouco uma abstração filosófica, é um movimento social das massas trabalhadoras. Por este motivo, deve juntar suas forças numa organização geral continuamente ativa, como é exigido pela realidade e a estratégia da luta de classes.

"Estamos convencidos", disse Kropotkin, "de que a formação de uma organização anarquista na Rússia, longe de ser prejudicial para a tarefa revolucionária, é, pelo contrário, desejável e útil no mais alto grau." (prefácio ao texto "A Comuna de Paris", de Bakunin, edição de 1892.)

Bakunin nunca se opôs à idéia de uma organização anarquista geral. Pelo contrário, suas aspirações quanto à organização, assim como sua atividade na primeira internacional, nos dão todo o direito de vê-lo como um partidário ativo exatamente de uma tal organização.

Em geral, a maioria dos militantes ativos do anarquismo combateu toda ação dispersa, e sonhou com um movimento anarquista firmemente ligado pela unidade do objetivo e dos meios.

Durante a revolução russa de 1917, a necessidade de uma organização geral se fez sentir ainda mais intensa e urgentemente. No decorrer dessa revolução, o movimento libertário manifestou o mais alto grau de desmembramento e de confusão. A ausência de uma organização geral fez com que muitos militantes anarquistas atuassem nas fileiras dos bolcheviques. Essa ausência é também a causa de muitos outros militantes, hoje em dia, manterem-se passivos, impedindo todo uso de suas forças, cuja importância é bastante considerável.

É vital nossa necessidade de uma organização que, reunindo a maioria dos participantes do movimento anarquista, estabelecerá no anarquismo uma linha geral tática e política que servirá como guia para todo o movimento.

Já é tempo de o anarquismo sair do pântano da desorganização, colocar um ponto final nas infindáveis vacilações sobre as questões teóricas e táticas mais importantes, de caminhar resolutamente para o objetivo claramente identificado e realizar uma prática coletivamente organizada.

Não basta, porém, constatar a necessidade vital dessa organização. É necessário, também, estabelecer o método de sua criação.

Rejeitamos, como teoricamente e praticamente absurda, a idéia de criar uma organização conforme a receita da "Síntese", isto é: reunindo os representantes das diferentes tendências do anarquismo. Tal organização, tendo incorporado elementos práticos e teóricos heterogêneos, seria apenas um agregado mecânico de indivíduos, cada qual tendo um conceito diferente de todas as questões do movimento anarquista, um agregado que inevitavelmente se desintegraria ao entrar em contato com a realidade.

O método anarco-sindicalista não resolve o problema de organização do anarquismo, porque não dá prioridade a esse problema, interessando-se unicamente em sua penetração e reforço nos meios operários.

Contudo, não se pode fazer grande coisa nesses meios, mesmo tendo alguma inserção neles, quando não existe uma organização anarquista geral.

O único método que soluciona o problema da organização geral, no nosso ponto de vista, é reunir militantes ativos do anarquismo numa base de posições precisas: teóricas, táticas e organizacionais, ou seja: uma base mais ou menos acabada de um programa homogêneo.

A elaboração de tal programa é uma das principais tarefas que a luta social dos últimos anos impôs aos anarquistas. É para a realização desta tarefa que o grupo de anarquistas russos no exílio dedica uma parte importante de seus esforços.

A "Plataforma Organizacional" publicada abaixo representa, em linhas gerais, o esboço de tal programa. Deve ser um primeiro passo na reunião das forças libertárias numa única coletividade revolucionária ativa capaz de lutar: a União Geral dos Anarquistas.

Não nos iludimos, há lacunas na presente Plataforma. Sem dúvida, ela tem limitações como toda e qualquer prática nova de alguma importância. É possível que algumas posições essenciais tenham sido omitidas e outras insuficientemente tratadas ou, então, muito detalhadas ou repetidas. Tudo isso é possível, mas não é o mais importante. O que importa é lançar os fundamentos de uma organização geral. Este é o objetivo que alcançamos, em certa medida, através dessa Plataforma. São tarefas da coletividade, da União Geral dos Anarquistas: aumentá-la, aprofundá-la e, mais tarde, fazer dela um programa definitivo para todo o movimento anarquista.

Noutro plano, também, não nos iludimos. É previsível que vários representantes do auto-intitulado individualismo e do anarquismo caótico nos atacarão, espumando de ódio e nos acusando de trair os princípios anarquistas.

Mas nós sabemos que os elementos individualistas e caóticos misturam, aos "princípios anarquistas" e o "dane-se tudo", a negligência e a total falta de responsabilidade que, em nosso movimento, têm causado ferimentos quase incuráveis. É contra isso que estamos lutando, com toda nossa energia e paixão. Eis o motivo de ignoramos calmamente os ataques vindos desse campo.

Baseamos nossa esperança em outros militantes: naqueles que se mantém fiéis ao anarquismo, que tendo vivido e sofrido a tragédia do movimento anarquista, procuram dolorosamente uma solução.

Ademais, temos grandes esperanças na juventude libertária que, nascida no sopro da revolução russa e situada, desde o começo, no círculo das realidades concretas, exigirá certamente a realização dos princípios organizacionais e construtivos do anarquismo.

Convidamos todas as organizações anarquistas russas, dispersas em vários países do mundo, e também os militantes isolados do anarquismo, a se unirem sobre a base de uma Plataforma comum de organização.

Que esta Plataforma sirva de palavra de ordem revolucionária e ponto de união para todos os militantes do movimento anarquista russo! Que sirva para lançar os fundamentos da União Geral dos Anarquistas!

Viva a Revolução Social dos Trabalhadores do Mundo!

GRUPO DIELO TRUDA, Paris 20/06/1926.

SEÇÃO GERAL

1. LUTA DE CLASSES, SEU PAPEL E SIGNIFICADO

Não existe uma só humanidade.
Existe a humanidade dividida em classes: escravos e senhores.

Como todas as que a precederam, a sociedade capitalista e burguesa de nossos tempos não é unida. Ela está dividida em dois campos distintos, diferenciados socialmente por suas respectivas situações e funções: o proletariado (no sentido mais extenso da palavra) e a burguesia.

O destino do proletariado é, e tem sido há séculos, carregar o fardo do trabalho físico e penoso, cujos frutos são colhidos por uma outra classe, que possui a propriedade, a autoridade e os produtos da cultura (ciência, educação, arte etc.): a burguesia. A escravização social e a exploração das massas trabalhadoras formam a base sobre a qual a sociedade moderna se apóia e sem a qual não poderia existir.

Este fato gera uma luta de classes secular, que assume um caráter aberto e violento ou uma aparência de progresso lento e imperceptível, mas orientada sempre, essencialmente, para a transformação da sociedade atual numa sociedade que satisfará as aspirações, necessidades e ao conceito de justiça dos trabalhadores.

Toda a história da humanidade representa, no domínio social, uma cadeia ininterrupta de lutas que as massas trabalhadoras travam por seus direitos, sua liberdade e por uma vida melhor. Esta luta de classes tem sido sempre o principal fator que determina a forma e a estrutura das sociedades.

O regime social e político de todos os países é, antes de tudo, produto da luta de classes. A estrutura de uma sociedade nos mostra a fase em que se encontra a luta de classes. A mínima alteração no curso da luta de classes, na relação de forças entre as classes em luta contínua, engendra mudanças no tecido e na estrutura da sociedade.

Tal é a dimensão geral, universal e o sentido da luta de classes na vida das sociedades de classe.

2. A NECESSIDADE DE UMA VIOLENTA REVOLUÇÃO SOCIAL

O princípio de opressão e exploração das massas pela violência constitui a base da sociedade moderna. Todas as manifestações de sua existência: a economia, a política, as relações sociais... baseiam-se na violência de classe, cujos instrumentos são: a autoridade, a polícia, o exército, os tribunais. Tudo nesta sociedade, desde a empresa tomada isoladamente até o conjunto dos aparatos estatais são baluartes na defesa e manutenção do capitalismo. Além de serem pontos de observação permanente dos trabalhadores, servem para ter sempre ao alcance da mão as forças destinadas a reprimir os trabalhadores que ameaçam os fundamentos ou mesmo a tranqüilidade da sociedade atual.

Ao mesmo tempo, o sistema capitalista mantém deliberadamente as massas trabalhadoras num estado de ignorância e estagnação mental, impedindo pela força a elevação de seu nível intelectual e moral, para mais facilmente ludibriá-las.

O progresso da sociedade moderna, a evolução técnica do capital e o aperfeiçoamento de seu regime político fortalecem o poder da classe dominante e dificultam ainda mais a luta contra ela, adiando o momento decisivo da emancipação dos trabalhadores.

A análise da sociedade moderna nos leva à conclusão de que a revolução social violenta é a única via para transformar a sociedade capitalista numa sociedade de trabalhadores livres.

3. O ANARQUISMO E O COMUNISMO LIBERTÁRIO

A luta de classes criada pela escravidão dos trabalhadores e suas aspirações de liberdade fez nascer, nos meio dos oprimidos, a idéia do anarquismo: a idéia da negação do sistema social baseado nos princípios de classes e do Estado, e sua substituição por uma sociedade livre e sem estado, autogerida pelos trabalhadores. Portanto, o anarquismo não deriva das reflexões abstratas de um intelectual ou filósofo, mas da luta direta dos trabalhadores contra o capital, das aspirações e necessidades dos trabalhadores, de seus desejos de liberdade e igualdade, os quais se tornam particularmente vivos no melhor período heróico da vida e da luta das massas trabalhadoras.

Eminentes anarquistas, Bakunin, Kropotkin e outros, não inventaram a idéia de anarquismo, mas a descobriram nas massas, apoiados somente na força de seus pensamentos e conhecimentos, para especificá-la e divulgá-la.

O anarquismo não é o resultado de obras pessoais nem objeto de pesquisas individuais.

Similarmente, o anarquismo não é produto de aspirações humanitárias. A humanidade "unida" não existe. Qualquer tentativa de fazer do anarquismo um atributo da humanidade atual, de atribuir-lhe um caráter genericamente humanitário seria uma mentira histórica e social que conduziria inevitavelmente à justificação da ordem atual e de uma nova exploração.

O anarquismo é geralmente humanitário apenas no sentido de que os ideais das massas trabalhadoras tendem a aperfeiçoar as vidas de todos os homens, e do fato de que o destino da humanidade de hoje ou de amanhã é inseparável do destino do trabalho explorado. Se as massas trabalhadoras vencerem, toda a humanidade renascerá. Se não, violência, exploração, escravização e opressão reinarão como nunca antes no mundo...

O nascimento, o desenvolvimento e a realização das idéias anarquistas tem suas origens na vida e na luta das massas trabalhadoras, e estão inseparavelmente ligadas à sua sorte.

O anarquismo quer transformar a sociedade capitalista numa sociedade nova em que os trabalhadores tenham garantido o produto de sua atividade, a liberdade, a independência e a igualdade social e política. Esta nova sociedade será o comunismo libertário. É no comunismo libertário que terão plena expansão a solidariedade social e a individualidade livre, e na qual essas duas idéias se desenvolverão em perfeita harmonia.

O comunismo libertário avalia que o único criador do valor social é o trabalho, físico e intelectual. Consequentemente, só os trabalhadores têm o direito de administrar a vida social e econômica. É por isso que ele não justifica nem admite a existência de classes não trabalhadoras.

Enquanto tiver que coexistir com tais classes, o comunismo libertário não reconhecerá qualquer obrigação em relação a elas. Isto cessará quando as classes não trabalhadoras se decidirem a produzir e quiserem viver na sociedade comunista, sob as mesmas condições de todos os outros, os membros livres da sociedade, gozando dos mesmos direitos e obrigações de todos os membros produtivos.

O comunismo libertário quer suprimir toda exploração e violência, seja contra o indivíduo ou as massas trabalhadoras. Para tanto, estabelece uma base econômica e social que unifica, num conjunto harmonioso, toda a vida econômica e social do país, assegurando a todo indivíduo uma situação igual a dos outros e dando a cada um o máximo bem-estar. Esta base é a apropriação, sob a forma de socialização, de todos os meios e instrumentos de produção (indústria, transporte, terra, matérias-primas etc.) e a construção de organismos econômicos sob os princípios de igualdade e autogestão dos trabalhadores.

Nos limites desta sociedade autogerida pelos trabalhadores, o comunismo libertário estabelece o princípio da igualdade de valor e dos direitos de cada indivíduo (não a individualidade "em geral", nem a individualidade "mística" ou o conceito de individualidade, mas o indivíduo concreto).

4. A NEGAÇÃO DA DEMOCRACIA

Democracia é uma das formas da sociedade capitalista.

A democracia se baseia na manutenção das duas classes antagônicas da sociedade moderna: a do trabalho e a do capital, e sua colaboração fundada sobre a propriedade privada capitalista. A expressão dessa colaboração é o parlamento e o governo nacional representativo.

Formalmente, a democracia proclama a liberdade de opinião, de imprensa, de associação, enquanto não ameacem os interesses da classe dominante, ou seja, a burguesia.

A democracia mantém intacto o princípio da propriedade privada capitalista. Portanto, dá a burguesia o direito de controlar toda a economia do país, toda a imprensa, educação, ciência, arte, o que de fato, torna a burguesia dona absoluta do país. Possuindo o monopólio da vida econômica, a burguesia pode estabelecer seu poder ilimitado também na esfera política. Efetivamente, o governo representativo e o parlamento nada mais são, nas democracias, do que os órgãos executivos da burguesia.

Consequentemente, a democracia é apenas um dos aspectos da ditadura burguesa, camuflada pelas fórmulas ilusórias das liberdades políticas e garantias democráticas fictícias.

5. A NEGAÇÃO DA AUTORIDADE

Os ideólogos da burguesia definem o Estado como o órgão que regula as complexas relações políticas e sociais entre os homens na sociedade moderna, protegendo a lei e a ordem. Os anarquistas estão em perfeita acordo com esta definição, mas a completam, afirmando que as bases dessa lei e dessa ordem é a escravidão da maioria da população por uma minoria insignificante, e que para tal serve o Estado.

O Estado é, simultaneamente, a violência organizada da burguesia contra os trabalhadores e o sistema de seus órgãos executivos.

Os socialistas de esquerda e, em particular, os bolcheviques, também consideram a autoridade e o Estado burguês como lacaios do capital. Mas sustentam que a autoridade e o Estado podem se tornar, nas mãos dos partidos socialistas, um meio poderoso na luta pela emancipação do proletariado. Por este motivo, esses partidos são a favor de uma autoridade socialista e um Estado proletário. Alguns querem conquistar o poder pacificamente, através do parlamento (os social-democratas); outros, por meios revolucionários (os bolcheviques, os socialistas-revolucionários de esquerda).

O anarquismo considera-os, ambos, fundamentalmente equivocados, nocivos para a tarefa de emancipação do trabalho.

A autoridade está sempre ligada à exploração e à submissão das massas populares. Ela nasce da exploração ou surge no interesse da exploração. A autoridade sem violência e sem exploração perde toda a razão de ser.

O Estado e a autoridade retiram das massas toda iniciativa, matam o espírito criador e a atividade livre, cultivam a psicologia da submissão: a expectativa, a esperança de ascender na hierarquia social, a estúpida confiança nos dirigentes, a ilusão de ser parte da autoridade...

Ora, a emancipação dos trabalhadores só é possível mediante o processo de luta revolucionária direta das massas trabalhadoras e suas organizações de classe contra o sistema capitalista.

A conquista do poder pelos partidos sociais-democratas, por meios pacíficos e sob as condições da ordem atual, não fará avançar um só passo a tarefa de emancipação do trabalho, pelo simples motivo de que o poder real, consequentemente a autoridade real, permanecerá com a burguesia que controla a economia e a política do país. O papel da autoridade socialista se reduzirá a fazer reformas, a melhorar o regime. (Exemplos: Ramsay MacDonald, os partidos sociais-democratas da Alemanha, Suécia, Bélgica, que assumiram o poder na sociedade capitalista.)

Tomar o poder mediante a violência e organizar o autodenominado "Estado proletário" de nada adianta para uma autêntica emancipação do trabalho. O Estado, construído supostamente para a defesa da revolução, termina fatalmente distorcido por suas necessidades e características peculiares, torna-se o objetivo em si mesmo, produz castas específicas e privilegiadas, sobre as quais se apóia. Deste modo, submete as massas pela força e consequentemente restabelece as bases da autoridade capitalista e do Estado capitalista: a opressão e a e exploração das massas pela violência. (Exemplo: "o Estado operário e camponês" dos bolcheviques.)

6. O PAPEL DAS MASSAS E O DOS ANARQUISTAS NA LUTA E NA REVOLUÇÃO SOCIAL

As principais forças da revolução social são a classe operária urbana, as massas camponesas e um setor dos trabalhadores intelectuais.

Nota: enquanto classe explorada e oprimida, da mesma forma que os proletários urbanos e rurais, os trabalhadores intelectuais são relativamente mais desunidos do que os operários e camponeses, graças aos privilégios econômicos concedidos pela burguesia a alguns de seus elementos. Eis por que, no começo da revolução social, apenas a parcela mais desfavorecida dos intelectuais participou ativamente.

A concepção anarquista do papel das massas na revolução social e na construção do socialismo difere, de maneira típica, daquela dos partidos estatistas. Enquanto o bolchevismo e as tendências que lhe são afins consideram que as massas trabalhadoras possuem apenas instintos revolucionários destrutivos, sendo incapazes de uma atividade revolucionária criativa e construtiva – razão pela qual essa atividade deve se concentrar nas mãos dos homens que formam o governo do Estado e o Comitê Central do partido - os anarquistas, pelo contrário, pensam que as massas têm imensas possibilidades criativas e construtivas, e querem a supressão dos obstáculos que impedem a manifestação dessas possibilidades.

Os anarquistas consideram o Estado como seu principal obstáculo, usurpando os direitos das massas e apropriando-se de todas as funções da vida econômica e social. O Estado deve perecer, não "um dia", na sociedade futura, mas agora. Ele deve ser destruído no primeiro dia da vitória dos trabalhadores, e não deve ser reconstituído de forma alguma. Ele será substituído por um sistema federalista de organizações de produção e consumo dos trabalhadores federativamente unidos e auto-administrados. Este sistema exclui tanto a organização da autoridade como a ditadura de um partido, não importa qual seja ele.

A revolução Russa de 1917 revela precisamente essa orientação do processo de emancipação social, na criação de um sistema de conselhos operários e camponeses e comitês de fábrica. Seu lamentável erro foi não ter liquidado, no momento oportuno, a organização do poder estatal: no começo do governo provisório, antes, e o poder bolchevique, depois. Os bolcheviques, aproveitando-se da confiança dos operários e camponeses, reorganizaram o estado burguês de acordo com as circunstâncias do momento e, em seguida, com a ajuda do estado, mataram a atividade criativa das massas, sufocando os sovietes livres e os comitês de fábrica, que representaram o primeiro passo na construção de uma sociedade não estatal, socialista.

A ação dos anarquistas pode ser dividida em dois períodos: um antes e outro durante a revolução. Em ambos, os anarquistas só poderão cumprir seu papel como uma força organizada tendo uma concepção clara dos objetivos da luta e dos meios que levam à realização desses objetivos.

A tarefa fundamental da União Geral dos Anarquistas, no período pré-revolucionário, deve ser a preparação dos operários e camponeses para a revolução social.

Negando a democracia formal (burguesa), a autoridade e o Estado, proclamando a completa emancipação do trabalho, o anarquismo destaca ao máximo os princípios rigorosos da luta de classes. Isto desperta e desenvolve nas massas uma consciência de classe e a intransigência revolucionária da classe.

É precisamente através da intransigência de classe, do antidemocratismo, dos ideais do comunismo anarquista que a educação libertária das massas deve ser feita. Mas a educação somente não basta. É necessária, também, uma certa organização anarquista das massas. Para realizar isso, é preciso atuar em duas direções: de um lado, selecionar e agrupar as forças revolucionárias de operários e camponeses numa base teórica comunista libertária (organizações específicas comunistas libertárias); do outro, reagrupar operários e camponeses revolucionários numa base econômica de produção e consumo (organização produtiva dos operários e camponeses revolucionários, cooperativas de operários e camponeses livres etc.). Os operários e camponeses, organizados numa base de produção e consumo, influenciados pelas posições anarquistas revolucionárias, serão o primeiro ponto de apoio da revolução social.

Quanto mais se tornarem conscientes e organizados à maneira anarquista, desde já, mais os operários e camponeses manifestarão a vontade intransigente e a criatividade libertária no momento da revolução.

Quanto à classe operária na Rússia: é claro que oito anos de ditadura bolchevique, aprisionando as necessidades naturais das massas e sua atividade livre, demonstram, melhor do que qualquer coisa, a verdadeira natureza de todo poder. Mas a classe operária russa desenvolveu enormes possibilidades para a formação de um movimento anarquista de massas. Os militantes anarquistas organizados devem ir imediatamente, com todas forças de que dispõem, ao encontro dessas necessidades e possibilidades, para que não degenerem em reformismo (menchevismo).

Com a mesma urgência, os anarquistas devem aplicar todas as suas forças à organização dos camponeses pobres, esmagados pelo poder estatal, buscando uma saída e desenvolvendo seu imenso potencial revolucionário.

O papel dos anarquistas, no período revolucionário, não pode se limitar à propagação de palavras de ordem e de idéias libertárias. A vida aparece como a arena não só da propagação desta ou daquela concepção, mas, também, no mesmo grau, a arena da luta, da estratégia e das aspirações dessas concepções à direção econômica e social.

Mais do que qualquer outra concepção, o anarquismo deve se tornar a concepção dirigente da revolução social, porque apenas com a base teórica do anarquismo a revolução social poderá conduzir à completa emancipação do trabalho.

A posição dirigente das idéias anarquistas na revolução significa uma orientação anarquista dos eventos. Contudo, não se deve confundir essa força motriz teórica com a liderança política dos partidos estatistas que levam finalmente ao Poder do Estado.

O anarquismo não aspira nem à conquista do poder político, nem à ditadura. Sua principal aspiração é ajudar as massas a trilhar a autêntica via da revolução social e da construção socialista. Mas não basta que sigam a via da revolução social. Também é necessário manter esta orientação da revolução e seus objetivos: substituição da sociedade capitalista pela dos trabalhadores livres. Como a experiência da revolução Russa em 1917 nos mostrou, esta última tarefa está longe de ser fácil, sobretudo por causa dos inúmeros partidos que tentam orientar o movimento numa direção oposta à da revolução social.

Ainda que as massas se expressem profundamente nos movimentos sociais, pelas tendências e princípios anarquistas, essas tendências e princípios permanecem dispersos, se não forem coordenados, e consequentemente não conduzem à organização da potência motriz das idéias libertárias que é necessária para manter, na revolução social, a orientação e os objetivos anarquistas. Esta força motriz teórica pode ser expressa apenas por um coletivo especialmente criado pelas massas para tal fim. Os elementos anarquistas organizados constituem exatamente esse coletivo. Os deveres teóricos e práticos, no momento da revolução, são consideráveis.

Ele deve tomar iniciativas e deflagrar uma participação total em todos os domínios da revolução social: na orientação e no caráter geral da revolução; nas tarefas positivas da revolução na nova produção, na guerra civil e na defesa da revolução, no consumo, na questão agrária etc...

Sobre todas essas questões e numerosas outras, as massas exigem dos anarquistas uma resposta clara e precisa. E, a partir do momento em que os anarquistas proclamam uma concepção da revolução e da estrutura da sociedade, eles são obrigados a dar respostas claras para todas essas questões, a ligar as respostas a uma concepção geral do comunismo libertário e, por fim, dedicar-se totalmente à sua efetiva realização.

Desta forma, a União Geral dos Anarquistas e o movimento anarquista assumem completamente sua função teórica motriz na revolução social.

7. O PERÍODO TRANSITÓRIO

Os partidos políticos entendem, pela expressão "período transitório", uma fase determinada na vida de um povo cujas características são: ruptura com a velha ordem de coisas e instauração de um novo sistema econômico e social, um sistema que, contudo, ainda não representa a completa emancipação dos trabalhadores. Neste sentido, todos os programas mínimos dos partidos políticos socialistas - por exemplo, o programa democrático dos oportunistas socialistas ou o programa da "ditadura do proletariado", dos bolcheviques - são programas do período de transição.

O traço essencial desses programas é que todos consideram impossível, para o momento, a completa realização dos ideais dos trabalhadores: sua independência, sua liberdade e igualdade, e consequentemente preservam toda uma série de instituições do sistema capitalista: o princípio da coerção estatista, propriedade privada dos meios e instrumentos de produção, o trabalho assalariado e diversos outros, de acordo com os objetivos do programa de cada partido.

Os anarquistas sempre foram inimigos de tais programas, considerando que a construção de sistemas transitórios, que mantém os princípios de exploração e coerção das massas, leva necessariamente a um novo crescimento da escravidão.

Ao invés de estabelecer programas políticos mínimos, os anarquistas sempre defenderam a idéia de uma revolução social imediata, que despoja a classe capitalista de seus privilégios econômicos e sociais, e coloca os meios e instrumentos de produção, assim como todas as funções da vida econômica e social, nas mãos dos trabalhadores.

Até agora, os anarquistas têm mantido esta posição.

A idéia de um período transitório, segundo a qual a revolução social deve conduzir não a uma sociedade comunista, mas a um sistema X, conservando elementos do velho sistema, é anti-social em sua essência. Essa idéia ameaça produzir o reforço e o desenvolvimento desses elementos às suas dimensões prévias, e faz retroagir os eventos.

Um exemplo flagrante disso é o regime de "ditadura do proletariado", estabelecido pelos bolcheviques na Rússia.

De acordo com eles, esse regime deveria ser uma etapa transitória para o comunismo total. Na realidade, essa etapa produziu a restauração da sociedade de classes, onde estão, subjugados como antes, os operários e os camponeses pobres.

O centro da gravidade na construção de uma sociedade comunista não consiste na possibilidade de assegurar a cada indivíduo, desde o primeiro dia da revolução, a liberdade ilimitada para satisfazer suas necessidades; mas se afirma na conquista da base social dessa sociedade comunista, estabelecendo os princípios de relações igualitárias entre os indivíduos. Quanto à questão da maior ou menor abundância de bens, não é formulada em nível de princípio, mas como um problema técnico.

O princípio fundamental sobre o qual a nova sociedade será erguida, sobre o qual permanecerá e não deve ser limitado de forma alguma, é o da igualdade das relações, da liberdade e independência dos trabalhadores. Este princípio representa a exigência prioritária e fundamental das massas, exigência pela qual se sublevam e fazem a revolução social.

De duas, uma:

a) A revolução social terminará com a derrota dos trabalhadores. Neste caso, devemos começar de novo a preparar a luta, uma nova ofensiva contra o sistema capitalista.

b) Ou, então, conduzirá à vitória dos trabalhadores. Neste caso, os trabalhadores se apossarão dos meios que lhes permitem sua autogestão: a terra, a produção e as funções sociais, e começarão a construir uma sociedade livre.

Eis o que caracteriza o início da construção de uma sociedade comunista, que, uma vez iniciada, seguirá então continuamente o curso de seu desenvolvimento, fortalecendo-se e se aperfeiçoando sem cessar.

Dessa maneira, a tomada das funções produtivas e sociais pelos trabalhadores traçará uma linha demarcatória entre as épocas estatal e não-estatal.

Se quiser se tornar o porta-voz das massas em luta, a bandeira de toda uma época de revolução social, o anarquismo não deve assimilar, em seu programa, os resíduos da velha ordem, as tendências oportunistas dos sistemas e períodos de transição, nem, tampouco, ocultar seus princípios fundamentais, mas, ao contrário, desenvolvê-los e aplicá-los ao máximo.

8. ANARQUISMO E SINDICALISMO

Consideramos artificial, privada de todo fundamento e de todo sentido, a tendência a opor o comunismo libertário ao sindicalismo e vice-versa.

As noções de anarquismo e sindicalismo pertencem a dois planos diferentes. Enquanto o comunismo, isto é, a sociedade de trabalhadores livres e iguais, é o objetivo da luta anarquista, o sindicalismo, isto é, o movimento operário revolucionário por profissão, é apenas uma das formas da luta revolucionária. Unindo os operários nos locais de produção, o sindicalismo revolucionário, como todo grupo profissional, não possui uma teoria determinada, uma concepção do mundo que responda a todas as complexas questões sociais e políticas da realidade atual. Ele reflete sempre a ideologia de diversos grupos políticos, notadamente aqueles que militam mais intensamente nos sindicatos.

Nossa atitude em relação ao sindicalismo deriva do que já dissemos. Sem nos preocupar aqui em resolver com antecedência a questão do papel dos sindicatos revolucionários depois da revolução, ou seja, se eles serão os organizadores de toda a nova produção ou se eles deixarão esse papel para os conselhos de trabalhadores ou, ainda, os comitês de fábrica, nós entendemos que os anarquistas devem participar no sindicalismo revolucionário como uma das formas do movimento operário revolucionário.

Porém, a questão que se coloca hoje não é se os anarquistas devem ou não participar no sindicalismo revolucionário, mas sim como e com que fim devem participar.

Nós consideramos todo o período anterior, até o dia de hoje, quando os anarquistas entraram no movimento sindicalista na qualidade de militantes e propagandistas individuais, como um período de relações artesanais com o movimento operário profissional.

O anarco-sindicalismo, tentando forçar a introdução das idéias libertárias na ala esquerda do sindicalismo revolucionário, como meio cujo fim é criar sindicatos de tipo anarquista, representa, sob este aspecto, um passo adiante. Mas não vai além do método empírico. Porque o anarco-sindicalismo não liga necessariamente a tarefa de "anarquização" do movimento sindical com a tarefa de organização das forças anarquistas fora do movimento. Ora, é apenas mediante tal ligação que é possível "anarquizar" o sindicalismo revolucionário e impedi-lo de descambar para o oportunismo e o reformismo.

Considerando o sindicalismo apenas como um movimento profissional de trabalhadores, sem uma teoria social e política determinada, e, portanto, incapaz de resolver por si mesmo a questão social, entendemos que a tarefa dos anarquistas no movimento consiste em desenvolver as idéias libertárias, orientando-o num sentido libertário, para transformá-lo numa força ativa da revolução social. É importante nunca esquecermos que, se o sindicalismo não encontrar apoio na teoria anarquista, ele se apoiará, então, concordemos ou não com isto, na ideologia de um partido político estatista qualquer.

A título de exemplo, aliás chocante, podemos citar o sindicalismo francês. Este, no qual brilhavam as táticas e palavras de ordem anarquistas, logo sucumbiu à influência dos bolcheviques, por um lado, e, sobretudo, por outro, à influência dos socialistas oportunistas de direita.

Mas a tarefa dos anarquistas nas fileiras do movimento operário revolucionário não poderá ser cumprida, a não ser que seja estreitamente ligada e conciliada com a atividade da organização anarquista fora do sindicato. Resumindo, devemos entrar nos sindicatos como uma força organizada, responsável pela atuação no sindicato perante a organização geral anarquista e orientados por ela.

Sem nos limitar à criação de sindicatos anarquistas, devemos tentar exercer nossa influência teórica sobre o sindicalismo revolucionário como um todo e em todas as suas formas (a IWW, os sindicatos russos...). Só atingiremos este objetivo, agindo como coletivo anarquista rigorosamente organizado, jamais em pequenos grupos empíricos, que não possuem ligação organizacional nem convergência teórica.

Grupos anarquistas em fábricas e empresas, preocupados em criar sindicatos anarquistas, lutando nos sindicatos revolucionários pela preponderância das idéias libertárias no movimento, grupos orientados em sua ação por uma organização geral anarquista: tais são os sentidos e as formas da atitude dos anarquistas em sua relação com o sindicalismo.

SEÇÃO CONSTRUTIVA

1 - PROBLEMAS DA REVOLUÇÃO SOCIAL: O DIA SEGUINTE

O objetivo fundamental dos trabalhadores em luta é a fundação, por meio da revolução, de uma sociedade comunista livre e igualitária, baseada no princípio: "De cada um segundo suas possibilidades, para cada um segundo suas necessidades."

Contudo, essa sociedade não se realizará por si mesma, só pelo poder de uma sublevação social. Sua realização será um processo social-revolucionário, mais ou menos longo, conduzido num determinado caminho pelas forças organizadas do proletariado vitorioso.

Nossa tarefa é, desde já, indicar esse caminho e antecipar os problemas positivos e concretos que os trabalhadores enfrentarão desde o primeiro dia da revolução social, cuja sorte dependerá de sua justa solução.

É óbvio que a construção da nova sociedade será possível apenas depois da vitória dos trabalhadores sobre o capitalismo e seus representantes. Não é possível começar a construção de uma nova economia e de novas relações sociais enquanto o poder do estado que defende o regime de escravização não tiver sido esmagado, enquanto os operários e camponeses não tiverem tomado em suas mãos, durante a revolução, a economia industrial e agrária do país.

Portanto, a primeira tarefa da revolução social é destruir o estado capitalista, expropriar a burguesia e, de modo geral, todos os elementos socialmente privilegiados, dos meios do poder, e implantar, em toda parte, a vontade do proletariado revoltado, expressa nos princípios fundamentais da revolução social. Este aspecto destrutivo e combativo da revolução nada mais fará do que desobstruir o caminho para as tarefas positivas que constituem o sentido e a essência da revolução social

As tarefas são as seguintes:

1. A solução, no sentido comunista libertário, do problema da produção industrial do país.

2. A solução similar em relação ao problema agrário.

3. A solução do problema de consumo.

2 - PRODUÇÃO

Levando em conta o fato de que a indústria do país é o resultado dos esforços de inúmeras gerações de trabalhadores e que os diversos ramos da indústria são estreitamente interligados, consideramos toda a função produtiva atual como uma só oficina de produtores, pertencendo totalmente ao conjunto dos trabalhadores, e a ninguém em particular.

O mecanismo produtivo do país é global e pertence a toda a classe operária. Esta tese determina o caráter e a forma da nova produção. Ela será também global, comum, no sentido de que os produtos pertencerão a todos. Tais produtos, quaisquer que sejam, constituirão o fundo geral de provisões dos trabalhadores, do qual todo participante na nova produção receberá tudo que necessita, numa base igual para todos.

O novo sistema de produção suprimirá totalmente o trabalho assalariado e a exploração, sob todas as suas formas, e estabelecerá em seu lugar o princípio da colaboração fraterna e solidária dos trabalhadores.

A classe média, que na sociedade capitalista moderna, exerce funções intermediárias e improdutivas – comércio e outras - assim como a burguesia, deve participar na nova produção, nas mesmas condições de todos os outros trabalhadores. Caso contrário, essas classes se excluirão da sociedade trabalhadora.

Não haverá patrões, sejam empresários, proprietários privados ou burocratas estatais (como no estado bolchevique). As funções organizadoras passarão, na nova produção, para os órgãos administrativos especialmente criados pelas massas operárias: conselhos de operários, comitês de fábrica ou gestão operária das fábricas e empresas. Esses órgãos, interligados na comuna, no distrito e, logo após, em todo o país, formarão as instituições das comunas, dos distritos, em suma, as instituições gerais e federais de gestão da produção. Designados pelas s massas e sempre sob seu controle e influência, todos esses órgãos serão constantemente renovados e realizarão assim a idéia da autogestão pelas massas.

A produção unificada, cujos meios e produtos pertencem a todos, tendo substituído o trabalho assalariado pelo princípio da colaboração fraternal e tendo estabelecido a igualdade de direitos para todos os produtores; a produção dirigida pelos órgãos de gestão operária, eleitos pelas massas; tal é o primeiro passo no caminho para a realização do comunismo libertário.

3 - CONSUMO

Esse problema surgirá na revolução sob um duplo aspecto:

1. O princípio da busca dos bens de consumo.

2. O princípio de sua distribuição.

No que diz respeito à distribuição dos bens de consumo, as soluções dependerão, sobretudo, da quantidade de produtos disponíveis e do princípio da conformidade com o objetivo etc...

A revolução social, encarregando-se da reconstrução de toda ordem social, assume a obrigação de satisfazer as necessidades vitais de todas as pessoas. A única exceção é o grupo dos não-trabalhadores - aqueles que se recusam a tomar parte na nova produção por motivos contra-revolucionários. Mas, em geral, excetuando estes, a satisfação das necessidades de toda a população do território da revolução social é assegurada pela reserva geral de consumo. Se houver escassez, os bens serão divididos de acordo com os princípios da maior urgência: isto é, em primeiro lugar as crianças, os enfermos e as famílias operárias.

Um problema muito mais difícil é o da organização do próprio fundo de consumo.

Sem dúvida, desde o primeiro dia da revolução, as cidades não disporão de todos os produtos necessários para a vida da população. Ao mesmo tempo, os camponeses terão em abundância os produtos que faltam às cidades.

Os comunistas libertários não têm qualquer dúvida quanto ao caráter mútuo das relações entre os trabalhadores da cidade e do campo. Entendemos que a revolução social só pode ser realizada pelos esforços comuns de operários e camponeses. Em conseqüência, a solução do problema de consumo na revolução só pode ser possível mediante a estreita colaboração revolucionária entre essas duas categorias de trabalhadores.

Para estabelecer essa colaboração, a classe operária urbana, tendo assumido a gestão da produção, deve imediatamente suprir as necessidades vitais do campo e se esforçar para fornecer os produtos do consumo diário, os meios e instrumentos para a agricultura coletiva. As medidas de solidariedade tomadas pelos trabalhadores, ao atender as necessidades dos camponeses, suscitará nestes a reciprocidade, enviando coletivamente seus produtos, em primeiro lugar os alimentícios, para as cidades.

Cooperativas de operários e camponeses serão os primeiros órgãos a assegurar as necessidades de alimentação e de provisões para as cidades e os campos. Mais tarde, responsáveis por funções mais importantes e permanentes, notadamente de suprir o que for necessário para manter e desenvolver a vida econômica e social dos operários e camponeses, essas cooperativas serão transformadas em órgãos permanentes de suprimento das cidades e do campo.

A solução do problema de suprimento permanente permitirá ao proletariado criar um estoque permanente, o que produzirá um efeito favorável e decisivo no resultado de toda a nova produção.

4 - A TERRA

Consideramos como principais forças revolucionárias e criadoras na solução da questão agrária os camponeses trabalhadores - aqueles que não exploram o trabalho de outras pessoas - e o proletariado rural. Sua tarefa é fazer a redistribuição da terra, para estabelecer o usufruto coletivo da terra sob princípios comunistas.

Assim como a indústria, a terra, explorada e cultivada por sucessivas gerações de trabalhadores, é o resultado de seus esforços comuns. Ela pertence a todos os trabalhadores e a ninguém em particular. Enquanto propriedade comum e inalienável dos trabalhadores, a terra não poderá ser comprada ou vendida, nem alugada; portanto, ela não poderá servir como meio de exploração do trabalho de outros.

A terra também é uma espécie de oficina popular e comunitária, onde as pessoas produzem seus meios de vida. Mas é uma espécie de oficina onde cada trabalhador (camponês) se acostumou, graças a certas condições históricas, a realizar o seu trabalho sozinho, independente dos outros produtores. Se, na indústria, o método coletivo de trabalho é essencial e o único possível, na agricultura, a maioria dos camponeses trabalha com seus próprios meios.

Consequentemente, quando a terra e os meios de sua exploração são tomados pelos camponeses, sem possibilidade de venda nem de aluguel, a questão das formas de seu usufruto e dos métodos para sua exploração (comunal ou familiar) não encontrará uma solução completa e definitiva, como no setor industrial. No começo, provavelmente, serão utilizados os dois métodos.

Os camponeses revolucionários estabelecerão a forma definitiva de exploração e de usufruto da terra. Nenhuma pressão externa é admissível nesta questão.

Entretanto, considerando que: apenas a sociedade comunista, em cujo nome será feita a revolução social, isenta os trabalhadores de sua condição de escravos e explorados, dando-lhes completa liberdade e igualdade; que os camponeses são a esmagadora maioria da população (quase 85% na Rússia, no período em discussão) e que, consequentemente, o regime agrário que eles estabelecerem será um fator decisivo no destino da revolução; que, enfim, a economia privada na agricultura, assim como na indústria, leva ao comércio, à acumulação, à propriedade privada e à restauração do capital - é nosso dever, desde já, fazer tudo que for necessário para facilitar a solução da questão agrária, num sentido coletivo.

Para tal fim, devemos nos empenhar numa intensa propaganda, entre os camponeses, a favor da economia agrária coletiva. A fundação de uma União Camponesa libertária específica facilitará consideravelmente esta tarefa.

Em função disso, o progresso técnico terá enorme importância, acelerando a evolução da agricultura e a realização do comunismo nas cidades, sobretudo nas indústrias. Se, em suas relações com os camponeses, os operários agirem, não individualmente ou em grupos separados, mas como um imenso coletivo comunista, abrangendo todos os ramos industriais; se, além disso, atenderem as necessidades vitais do campo e se, ao mesmo tempo, abastecerem cada aldeia com os itens de uso diário, ferramentas e máquinas para a exploração coletiva das terras, certamente atrairão os camponeses para o comunismo na agricultura.

5 - A DEFESA DA REVOLUÇÃO

A questão da defesa da revolução está ligada ao problema do "primeiro dia". Basicamente, o modo mais possante de defesa da revolução é a solução feliz para seus problemas positivos: a produção, o consumo e a terra. Se esses problemas forem justamente solucionados, nenhuma força contra-revolucionária será capaz de alterar ou desequilibrar a sociedade livre dos trabalhadores. Contudo, os trabalhadores terão que lutar duramente contra os inimigos da revolução, para defender e manter sua existência concreta.

A revolução social, que ameaça os privilégios e a existência das classes não-trabalhadoras da sociedade, provocará inevitavelmente, da parte dessas classes, uma resistência desesperada que tomará a forma de uma feroz guerra civil.

Como a experiência russa mostrou, tal guerra civil durará alguns anos.

Por mais felizes que sejam os primeiros passos dos trabalhadores, no início da revolução, a classe dominante será capaz de resistir por um longo tempo. Durante muitos anos, ela desencadeará ofensivas contra a revolução, tentará reconquistar o poder e os privilégios que lhe foram arrebatados.

Um enorme exército, estratégia e técnicas militares, capital - tudo será lançado contra os trabalhadores vitoriosos.

Para preservar as conquistas da revolução, os trabalhadores devem criar órgãos de defesa da revolução, contrapondo-se à ofensiva da reação com uma força combatente à altura da tarefa. Nos primeiros dias da revolução, esta força será constituída por todos os operários e camponeses armados. Mas essa força armada espontânea será eficiente apenas durante os primeiros dias, quando a guerra civil ainda não alcançou seu clímax e os dois partidos em luta não criaram organizações militares regularmente constituídas.

Na revolução social, o momento mais crítico não é o da supressão da autoridade, mas o seguinte, quando as forças do regime derrotado lançam uma ofensiva geral contra os trabalhadores e o importante é salvaguardar as conquistas alcançadas. O caráter dessa ofensiva, assim como a técnica e o desenvolvimento da guerra civil, obrigarão os trabalhadores a criar contingentes revolucionários militares determinados. A essência e os princípios fundamentais dessas formações devem ser decididos antecipadamente. Negando os métodos estatistas e autoritários para governar as massas, também rechaçamos o método estatista de organizar as forças militares dos trabalhadores, ou seja, o princípio de um exército estatista, fundado sobre o serviço militar obrigatório. É o princípio do voluntariado, de acordo com as posições fundamentais do comunismo libertário, que deve ser a base das formações militares dos trabalhadores. Os destacamentos de guerrilheiros insurgentes, operários e camponeses, que conduziram a ação militar na revolução russa, podem ser citados como exemplos de tais formações.

Porém, o voluntariado e a ação guerrilheira não devem ser compreendidos estritamente, ou seja, como uma luta de destacamentos operários e camponeses contra o inimigo local, sem estar coordenados por um plano geral de operação e cada um agindo por sua conta e risco. A ação e as táticas dos guerrilheiros deverão ser orientadas, em seu completo desenvolvimento, por uma estratégia revolucionária comum.

Como em todas as guerras, a guerra civil não pode ser realizada com sucesso pelos trabalhadores, a não ser que eles apliquem os dois princípios fundamentais de toda ação militar: unidade do plano de operações e unidade de comando. O momento mais crítico da revolução será quando a burguesia lançar contra a revolução suas forças organizadas. Então, os trabalhadores serão obrigados a adotar esses princípios de estratégia militar.

Desta maneira, tendo em vista as necessidades da estratégia militar e a estratégia dos contra-revolucionários, as forças armadas da revolução deverão fundir-se num exército revolucionário geral, tendo um comando e um plano de operações comuns.

Os princípios abaixo formam a base desse exército:

(a) caráter de classe do exército;

(b) voluntariado (toda coerção será completamente excluída da tarefa de defesa da revolução);

(c) livre disciplina (autodisciplina) revolucionária: o voluntariado e a autodisciplina revolucionária são totalmente compatíveis, e tornarão o exército da revolução moralmente mais forte do que qualquer exército estatal;

(d) total submissão do exército revolucionário às massas operárias e camponesas, representadas pelas organizações de operários e camponeses de todo o país, situados pelas massas na direção da vida econômica e social.

Dito de outra maneira: o órgão de defesa da revolução encarregado de combater a contra-revolução, nas frentes militares externas assim como na guerra civil (conspirações burguesas, preparativos de ações contra-revolucionárias) será totalmente controlado pelas organizações produtivas de operários e camponeses, ás quais se submeterá e das quais receberá a orientação política.

Atenção: Estando tudo construído conforme princípios comunistas libertários determinados, o exército não deve ser considerado um elemento de princípio. Ele nada mais é do que a aplicação da estratégia militar na revolução, uma medida estratégica à qual os trabalhadores são forçados pelo processo da guerra civil. Mas esta medida exige atenção, desde já, deve ser cuidadosamente estudada para evitar, na execução das tarefas de proteção e defesa da revolução, toda demora irreparável, pois tais hesitações, durante a guerra civil poderão ser desastrosos para a revolução social.

SEÇÃO ORGANIZATIVA

As posições gerais construtivas, acima expostas, constituem a plataforma de organização das forças revolucionárias do anarquismo.

Esta plataforma, contendo uma orientação teórica e tática definitiva, aparece como o mínimo necessário e urgente para todos os militantes do movimento anarquista organizado.

Sua tarefa é agrupar, em torno de si, todos os elementos saudáveis do movimento anarquista numa só organização geral, permanentemente ativa: a União Geral dos Anarquistas. As forças de todos os militantes ativos do anarquismo deverá ser orientada para a criação desta organização.

Os princípios fundamentais de organização da União Geral dos Anarquistas serão os seguintes:

1. Unidade Teórica

A teoria representa a força que dirige a atividade das pessoas e das organizações por um caminho definido e para um objetivo determinado. Naturalmente, a teoria deve ser comum para todas as pessoas e organizações que aderirem à União Geral. Toda atividade da União Geral Anarquista, tanto em caráter geral como em particular, deve estar em perfeito acordo com os princípios teóricos da União.

2. Unidade Tática ou Método Coletivo de Ação

Os métodos táticos empregados por membros e grupos da União também devem ser unitários, ou seja, estar rigorosamente de acordo entre si e com a teoria e tática geral da União.

Uma linha tática comum no movimento tem importância decisiva para a existência da organização e de todo o movimento, prevenindo-o contra os efeitos nefastos de várias táticas que se neutralizam mutuamente, e concentrando todas as suas forças, orienta-o numa direção comum que conduz a um objetivo determinado.

3. Responsabilidade Coletiva

A prática que consiste em agir em nome da responsabilidade pessoal deve ser condenada e rejeitada no movimento anarquista.

Os domínios da vida revolucionária, social e política, são antes de tudo coletivos por sua natureza. A atividade social revolucionária não pode se basear na responsabilidade pessoal dos militantes isolados.

O órgão executivo do movimento geral anarquista, a União Anarquista, contrapondo-se decisivamente à tática irresponsável do individualismo, introduz em suas fileiras o princípio da responsabilidade coletiva: toda a União deverá ser responsável pela atividade revolucionária e política de cada membro; da mesma forma, cada membro será responsável pela atividade revolucionária e política da União como um todo.

4. Federalismo

O Anarquismo sempre negou a organização centralizada, na vida social das massas quanto e em sua ação política. O sistema de centralização atrofia o espírito crítico, a iniciativa e a independência de cada indivíduo, e promove a cega submissão das massas ao 'centro'. As conseqüências, naturais e inevitáveis, desse sistema são a escravidão e a mecanização da vida social e da vida dos grupos.

Contra o centralismo, o anarquismo sempre professou e defendeu o princípio do federalismo, que harmoniza a independência e a iniciativa dos indivíduos ou da organização com o interesse da causa comum.

Conciliando a idéia de independência e a plenitude dos direitos de cada indivíduo com os interesses e necessidades sociais, o federalismo incentiva toda manifestação saudável das faculdades de cada indivíduo.

Mas, com freqüência, o princípio federalista tem sido deformado nas fileiras anarquistas: tem sido compreendido como o direito, sobretudo, da manifestação do 'ego', sem a obrigação de cumprir seus deveres na organização.

Essa interpretação falsa desorganizou nosso movimento no passado. É tempo de acabar com isso, de modo forte e irreversível.

Federalismo significa livre entendimento, entre indivíduos e organizações, na ação coletiva orientada para o objetivo comum.

Ora, tal entendimento e a união federativa baseada nela se tornarão realidade, em vez de ficção e ilusão, somente na indispensável condição de que todos os que participam do entendimento e na União cumpram os deveres assumidos, em conformidade com as decisões tomadas em comum.

Numa construção social, por mais vasta que sejam as bases federalistas sobre as quais se funda, não poderá haver direitos sem obrigações, nem decisões sem a respectiva execução. Isto é ainda menos admissível numa organização anarquista, que assume exclusivamente obrigações quanto aos trabalhadores e a revolução social.

Por conseguinte, o tipo federalista de organização anarquista, reconhecendo os direitos (quais sejam: independência, opinião livre, iniciativa e liberdade individual) de cada membro, exige que cada membro cumpra seus deveres organizacionais determinados, assim como a rigorosa execução das decisões tomadas em comum.

Unicamente sob esta condição, o princípio federalista viverá, e a organização anarquista funcionará corretamente, dirigindo-se para um objetivo definido.

A idéia da União Geral dos Anarquistas põe o problema da coordenação e da aprovação das atividades de todas as forças do movimento anarquista.

Cada organização aderente à União representa uma célula vital, parte de um organismo comum. Cada célula terá seu secretariado, executando e orientando teoricamente sua própria atividade política e técnica.

Tendo em vista a coordenação da atividade de todas as organizações aderentes à União, um órgão especial será criado: o Comitê Executivo da União. Este último será responsável pelas seguintes funções: execução das decisões tomadas pela União; orientação teórica e organizacional da atividade das organizações isoladas, de acordo com as opiniões teóricas e a linha tática geral da União; supervisão do estado geral do movimento; manutenção das ligações práticas e organizacionais entre todas as organizações na União, e com outras organizações.

Os direitos e obrigações, as tarefas práticas do comitê executivo são fixadas pelo Congresso da União.

A União Geral dos Anarquistas possui um objetivo determinado e concreto. Em nome do sucesso da revolução social, ela deve antes de tudo se apoiar sobre os elementos mais revolucionários e radicais dentre os operários e camponeses, assimilando-os.

Proclamando a revolução social e, além disso, sendo uma organização antiautoritária que luta pela abolição imediata da sociedade de classes, a União Geral dos Anarquistas se apóia igualmente sobre duas classes fundamentais da sociedade atual: os operários e os camponeses. A União se empenhará de modo igual na luta pela emancipação dessas duas classes.

Quanto aos sindicatos, às organizações operárias e revolucionárias nas cidades, a União Geral dos Anarquistas intensificará seus esforços para se tornar seu destacamento de vanguarda e guia teórico.

Ela assumirá as mesmas tarefas na relação com as massas camponesas exploradas. Como pontos de apoio, desempenhando o papel dos sindicatos revolucionários para os operários, a União se esforçará para criar uma rede de organizações econômicas camponesas revolucionárias e, além disso, um sindicato de camponeses específico, fundado sobre princípios antiautoritários.

Nascida do coração da massa trabalhadora, a União Geral dos Anarquistas deve participar de todas as manifestações de sua vida, contribuindo, por toda a parte e sempre, com o espírito de organização, perseverança, atividade e ofensiva.

Somente assim, ela cumprirá sua tarefa, sua missão teórica e histórica na revolução social dos trabalhadores, e se tornar a iniciativa organizada de seu processo emancipador.

Nestor Makhno, Ida Mett, Piotr Archinov, Valevsky, Linsky - 1927.

Dielo Truda (Causa Operária) - França, 1927.

Correntes do Anarquismo

Acompanhando toda a história da humanidade, nos deparamos com uma série de práticas anárquicas na cultura dos povos e dos movimentos de libertação contra reis, imperadores, senhores, patrões e demais arautos da opressão. O Anarquismo enquanto sistema de pensamento e de ação passou por diferentes experiências através dos tempos. As diversas correntes históricas hoje apresentam-se muito mais como tendências dentro do Anarquismo. O Anarquismo Revolucionário se tornou a corrente majoritária do Movimento Anarquista Internacional em fins do século XIX, e envolveu principalmente coletivistas, sindicalistas e comunistas libertários. É essencial ressaltar que a série que se segue não é nenhuma linha evolutiva, mas marca apenas o surgimento de formas mais sistematizadas do Anarquismo no que costuma-se chamar de civilização, ou seja, no berço da resistência às sociedades mais tirânicas, e que, de alguma forma, todos os valores presentes nessas diferentes correntes estão entranhados na própria história das aspirações e relações humanas desde tempos remotos.

O Anarquismo filosófico - Lança o sistema de valores de uma sociedade livre e igualitária, sem governantes e governados, opressores e oprimidos, exploradores e explorados. Surge desde a antigüidade da China até a Grécia.

O Anarquismo individualista - Observa a sociedade como a soma de um conjunto de seres indivíduos, e não como um organismo personificado e alheio que os absorve ao tomar vida própria. As responsabilidades sociais de cada sujeito devem se dar, portanto, em relação a outros indivíduos, e não com uma sociedade abstrata, o Estado. Surge na Inglaterra e na França, desde fins do século XVIII.

O Anarquismo mutualista - A primeira organização prática com bases Anarquistas surge a partir da corrente mutualista, no continente europeu do século XIX. O mutualismo está baseado no associativismo e no cooperativismo, ou seja, na associação de indivíduos livres que apoiam-se mutuamente para garantir as condições de produção sem exploração. Os meios de produção podem permanecer sendo utilizados de forma individual, mas o produto final pertence a quem trabalhou nele diretamente, portanto não permitindo o seu usufruto pelas classes parasitas.

O Anarquismo federalista - Desdobramento da organização anarquista e do apoio mútuo em uma geografia mais ampla, prevê a formação de redes de relações igualitárias e solidárias entre as diferentes associações de indivíduos. Uma federação de cooperativas, uma federação de profissionais ou uma federação de associações de bairro ou municípios estão entre muitas das alternativas de uma organização federativa. É uma forma de organização política e econômica da sociedade libertária em maior escala. Surge no mesmo periodo.

O Anarquismo coletivista - Prega a necessidade de expropriação revolucionária imediata de toda a propriedade excludente pelos trabalhadores para reorganizar a sociedade e a produção com bases libertárias. Todos os instrumentos de trabalho devem ser coletivizados. Está na origem do Movimento Anarquista Histórico. Surge na segunda metade do século XIX, dentro da Primeira Internacional. Defende a luta de classes para promover a revolução social, o fim das classes, e que a mesma deve, e só pode ser feita sob o controle direto dos próprios trabalhadores, sem qualquer forma de controle Estatal.

O Anarquismo comunista - Reivindica a abolição de todo sistema de salários e preços, e o controle de toda a economia pela comuna popular. Tanto os meios de produção quanto os próprios bens produzidos, devem ser propriedade comum. Surge com bastante força em fins do século XIX e o princípio adotado é "de cada um conforme as suas capacidades, e a cada um conforme as suas necessidades". O fundamento teórico para a comunhão total dos bens é a de que todo trabalho é social, e de que os instrumentos com que se produz e a terra cultivada em que se colhe a vida são o resultado do trabalho humano em milênios e grande obra da natureza desde tempos remotos, e portanto, pertencem não a um homem ou mulher, mas à Terra e a toda a humanidade. Foi carro chefe das experiências mais revolucionários da história contemporânea, principalmente na Ucrânia e na Espanha.

O Anarquismo sindicalista - Encontra no Sindicalismo Revolucionário uma forma dos trabalhadores assumirem o controle direto da revolução social e sobre a produção. Surge na França, da cisão dos sindicatos revolucionários com os sindicatos reformistas, na última década do século XIX. Impulsiona o Movimento Operário Internacional, com forte presença em quase todos os países da Europa, da América e da Oceania, além de organizar fortemente a luta operária em outros continentes. Representa o auge do movimento operário combativo em todo o mundo.

Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos - Niterói, 2001.

Programa Anarquista - Errico Malatesta

O texto que segue foi publicado em 1903, sob o titulo "Nosso Programa", por um grupo de italianos dos Estados Unidos. Em 1920, ele foi inteiramente aceito pelo congresso da Unione Anarchica Italiana de 1 a 4 de julho. O primeiro parágrafo não aparece em 1920 e os subtítulos são, ao contrário, dessa época.

Nada temos a dizer de novo. A propaganda não é, e não pode ser, senão a repetição contínua, incansável, dos princípios que devem nos servir de guia na conduta que devemos seguir nas diferentes circunstâncias da vida.

Repetiremos, portanto, com termos mais ou menos diferentes, mas no fundo constantes, nosso velho programa socialista-anarquista-revolucionário.

O programa da União Anarquista Italiana é o programa anarquista-comunista-revolucionário. Há meio século ele foi proposto na Itália, no seio da internacional, sob o nome de programa socialista. Mais tarde, tomou o nome de socialista anarquista, como reação contra a degenerescência, autoritária e parlamentar, crescente do movimento socialista. Em seguida, finalmente, denominara-no anarquista.

1. O que queremos.

Acreditamos que a maioria dos males que afligem os homens decorre da má organização social; e que os homens, por sua vontade e seu saber, podem faze-los desaparecer.

A sociedade atual é o resultado das lutas seculares que os homens apreenderam entre si. Desconheceram as vantagens que poderiam resultar para todos da cooperação e da solidariedade. Viram em cada um de seus semelhantes (exceto, no Maximo, os membros de sua família) um concorrente e um inimigo. E procuraram açambarcar, cada um por si, a maior quantidade de prazeres possível, sem se preocuparem com os interesses alheios.

Nesta luta, é óbvios, os mais fortes e os mais afortunados deviam vencer, e, de diferentes maneiras, explorar e oprimir os vencidos.

Enquanto o homem não foi capaz de produzir mais do que o estritamente necessário para sua sobrevivência, os vencedores só podiam afugentar e massacrar os vencidos, e se apoderar dos alimentos colhidos.

Em seguida – quando, com a descoberta da pecuária e da agricultura, o homem soube produzir mais do que precisava para viver - os vencedores acharam mais cômodo reduzir os vencidos à servidão e faze-los trabalhar para eles.

Mais tarde, os vencedores acharam mais vantajoso, mais eficaz e mais seguro explorar o trabalho alheio por outro sistema: conservar para si a propriedade exclusiva da terra e de todos os instrumentos de trabalho, e conceder uma liberdade aparente aos deserdados. Estes, não tendo os meios para viver, eram obrigados a recorrer aos proprietários e a trabalhar para eles, sob as condições que eles lhes fixavam.

Deste modo, pouco a pouco, através de uma rede complicada de lutas de todos os tipos, invasões, guerras, rebeliões, repressões, concessões feitas e retomadas, associação dos vencidos, unidos para se defenderem, e dos vencedores, para atacarem, chegou-se ao estado atual da sociedade, em que alguns detêm hereditariamente a terra e todas as riquezas sociais, enquanto a grande massa, privada de tudo, é frustrada e oprimida por um punhado de proprietários.

Disto depende estado de miséria em que se encontram geralmente os trabalhadores, e todos os males decorrentes: ignorância, crime, prostituição, definhamento físico, abjeção moral, morte prematura. Daí a constituição de uma classe especial (o governo) que, provida dos meios materiais de repressão, tem por missão legalizar e defender os proprietários contra as reivindicações do proletariado. Ele se serve, em seguida, da força que possui para arrogar-se privilégios e submeter, se ela pode faze-lo, à sua própria supremacia, a classe dos proprietários. Disso decorre a formação de outra especial (o clero), que por uma serie de fabulas relativas à vontade de Deus, à vida futura etc, procura conduzir os oprimidos a suportarem docilmente o opressor, o governo, os interesses dos proprietários e os seus próprios. Daí decorre a formação de uma ciência oficial que é, em tudo que pode servir os interesses dos dominadores, a negação da verdadeira ciência. Daí os espíritos patrióticos, os ódios raciais, as guerras e as pazes armadas, mais desastrosas do que a próprias guerras. O amor transformado em negocio ignóbil. O ódio mais ou menos latente, a rivalidade, a desconfiança, a incerteza e o medo entre os seres humanos.

Queremos mudar radicalmente tal estado de coisas. E visto que todos estes males derivam da busca do bem-estar perseguido por cada um por si e contra todos, queremos dar-lhe uma solução, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a busca exclusiva do bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade, mentira religiosa e pseudo-cientifica pela verdade.

Em conseqüência:

1) Abolição da propriedade privada da terra, das matérias-primas e dos instrumentos de trabalho_ para que ninguém disponha de meio de viver pela exploração do trabalho alheio_, e que todos, assegurados dos meios de produzir e de viver, sejam de fato independente e possam associar-se livremente, uns aos outros, no interesse comum e conforme as simpatias pessoais.

2) abolição do governo e de todos poder que faça a lei para impô-la aos outros: portanto, abolição das monarquias, republicas, parlamentos, exércitos, policias, magistraturas e toda instituição que possua meios coercitivos.

3) organização da vida social por meio de associações livres e das federações de produtores e consumidores, criadas e modificadas segundo a vontade dos membros, guiadas pela ciência e pela experiência, liberta de toda obrigação que não derive das necessidades naturais, às quais todos se submetem de bom grado quando reconhecem seu caráter inelutável.

4) garantia dos meios de vida, de desenvolvimento, de bem-estar às crianças e a todos aqueles que são incapazes de prover sua existência.

5) guerra às religiões e todas as mentiras, mesmo que elas se ocultem sob o manto da ciência. Instrução cientifica para todos, até os graus mais elevados.

6) guerra ao patriotismo. Abolição das fronteiras, fraternidade entre os povos.

7) reconstrução da família, de tal forma que ela resulte da pratica do amor, liberto de todo laço legal, de toda opressão econômica ou física, de todo preconceito religioso.


Tal é nosso ideal.


2. Vias e Meios.

Até agora expusemos qual é o objetivo que queremos atingir, o ideal pelo qual lutamos.


Mas não basta desejar uma coisa: se seque obtê-la, é preciso, sem duvida, empregar os meios adaptados à realização. E esses meios não são arbitrários: derivam da necessidade dos fins a que nos propomos e das circunstancias nas quais lutamos. Enganando-nos na escolha dos meios, não alcançamos o objetivo contemplado, mas ao contrario, afastamo-nos dele rumo a realidades freqüentemente opostas, e que são a conseqüência natural e necessária aos métodos que empregamos. Quem se põe a caminho e se engana de estrada, não vai aonde quer, mas aonde o conduz o caminho tomado.

É preciso dizer, portanto, quais são os meios que, segundo nossa opinião, conduzem ao nosso ideal, e que intencionamos empregar.

Nosso ideal não é daqueles cuja plena realização depende do individuo considerado de modo isolado. Trata-se de mudar o modo de viver em sociedade: estabelecer entre os homens relações de amor e de solidariedade, realizar a plenitude do desenvolvimento material, moral e intelectual, não para individuo, não para os membros de certa classe ou de certo partido, mas para todos os seres humanos. Esta transformação não é medida que se possa impor pela força; deve surgir da consciência esclarecida de cada um, para se manifestar, de fato, pelo consentimento de todos.

Nossa primeira tarefa deve ser, portanto, persuadir as pessoas.

É necessário atrair a atenção dos homens para os males que sofrem, e para a possibilidade de destruí-los. É preciso que suscitemos em cada um a simpatia pelos sofrimentos alheios, e o vivo desejo pelo bem de todos.

A quem tem fome e frio, mostraremos que seria possível e fácil assegurar a todos a satisfação das necessidades materiais. A quem é oprimido e desprezado, diremos como se pode viver de modo feliz em uma sociedade de livres e iguais. A quem é atormentado pelo ódio e pelo rancor, indicarmos o caminho para encontrar o amor pelos seus semelhantes, a paz e a alegria do coração.

E quando tivermos obtido êxito em disseminar na alma dos homens o sentimento da revolta contra os males injustos e inevitáveis, dos quais se sofre na sociedade atual, e em fazer compreender quais são suas causas e como depende da vontade humana elimina-las; quando tivermos inspirado o desejo vivo e ardente de transformar para o bem de todos, então convictos por impulso próprio e pela persuasão daqueles que os precederam na convicção, se unirão, desejarão e poderão por em pratica o ideal comum.

Seria – já o dissemos – absurdo e em contradição com nosso objetivo querer impor a liberdade, o amor entre os homens, o desenvolvimento integral de todas as faculdades humanas pela força. É preciso contar com a livre vontade dos outros, e a única coisa que podemos fazer é provocar é provocar a formação e a manifestação dessa vontade. Mas seria da mesma forma absurdo e em contradição com nosso objetivo admitir que aqueles que não pensam como nós impedem-nos de realizar nossa vontade, visto que não os privamos do direito de uma liberdade igual à nossa.

Liberdade, portanto, para todos, de propagar e experimentar suas próprias idéias, sem outros limites senão os que resultam naturalmente da igual liberdade de todos.

Mas a isto se opõem, pela força brutal, os beneficiários dos privilégios atuais, que dominam e regulam toda a vida social presente.

Eles controlam todos os meios de produção: suprimem, assim, não somente as possibilidades de aplicar novas formas de vida social, o direito dos trabalhadores de viverem livremente de seu trabalho, mas também, o próprio direito à existência. Obrigam os não-proprietários a se deixarem explorar e oprimir, se não quiser morrer de fome.

Os privilegiados têm as policias, as magistraturas, os exércitos, criados de propósito para defende-los, e para perseguir, encarcerar, massacrar os oponentes.

Mesmo deixando de lado a experiência histórica, que nos demonstra que nunca uma classe privilegiada despojou-se, total ou parcialmente, de seus privilégios e que nunca um governo abandonou o poder sem ser obrigado a faze-lo pela força, os fatos contemporâneos bastam para convencer quem quer que seja de que os governos e os burgueses procuram usar a força material para a sua defesa, não somente contra a expropriação total, mas contra as mínimas reivindicações populares, e estão sempre prontos a recorrer às perseguições mais atrozes, aos massacres mais sangrentos.

Ao povo que quer se emancipar, só resta uma saída: opor violência à violência.

Disso resulta que devemos trabalhar para despertar nos oprimido o vivo desejo de transformação radical da sociedade, e persuadi-los de que, unindo-se possuem à força de vencer. Devemos propagar nosso ideal e preparar as forças morais e materiais necessárias para vencer as forças inimigas e organizar a nova sociedade. Quando tivermos força suficiente, deveremos, aproveitando as circunstâncias favoráveis que se produzirão, ou que nós mesmos provocaremos, fazer a revolução social: derrubar pela força o governo, expropriar pela força os proprietários, tornar comum os meios de subsistência e de produção, e impedir que novos governantes venham impor sua vontade e opor-se à reorganização social, feita diretamente pelos interessados.

Tudo isso é, entretanto, menos simples do que parece a primeira vista. Relacionamo-nos com homens tais na sociedade atual, em condições morais e materiais muito desfavoráveis; e nos enganaríamos ao pensar que a propaganda é suficiente para eleva-los ao nível de desenvolvimento intelectual e moral necessário à realização de nosso ideal.

Entre o homem e a ambiência social há uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade tal como é, e a sociedade faz os homens tais como são, resultando disso um tipo de circulo vicioso: para transformar a sociedade é preciso transformar os homens, e para transformar os homens é preciso transformar a sociedade.

A miséria embrutece o homem e, para destruir a miséria, é preciso que os homens possuam a consciência e a vontade. A escravidão ensina os homens a serem servis, e para se libertarem da escravidão é preciso homens que aspirem a liberdade. A ignorância faz com que os homens não conheçam as causas de seus males e não saibam remediar esta situação; para destruir a ignorância, seria necessário que os homens tivessem tempo e meios de se instruírem.

O governo habitua as pessoas a sofrerem a lei e a crerem que ela é necessária à sociedade; para abolir o governo é preciso que os homens estejam persuadidos da inutilidade e da nocividade dele.

Como sair deste impasse?

Felizmente, a sociedade atual não foi formada pela clara vontade de uma classe que teria sabido reduzir todos os dominados ao estado de instrumento passivo, inconscientes de seus interesses. A sociedade atual é resultante de mil lutas intestinas, de mil fatores naturais e humanos, agindo ao acaso, sem direção consciente; enfim, não há'nenhuma divisão clara, absoluta, entre indivíduos, nem entre classes.

As variedades das condições materiais são infinitas; infinitos os graus de desenvolvimento moral e intelectual. É até mesmo muito raro que a função de cada um na sociedade corresponda às suas faculdades e às suas aspirações. Com freqüência, homens caem em condições inferiores àquelas que eram as suas; outros, por circunstâncias particularmente favoráveis, conseguem elevar-se acima do nível em que nasceram. Uma parte considerável do proletariado já sair do estado de miséria absoluta, embrutecedora, a que nunca deveria ter sido reduzido. Nenhum trabalhador, ou quase nenhum, encontra-se em estado de inconsciência completa, de aquiescência total às condições criadas pelos patrões. E as próprias instituições, que são produtos da historia, contem contradições orgânicas que são como germes letais, cujo desenvolvimento traz a dissolução da estrutura social e a necessidade de sua transformação.

Assim, a possibilidade de progresso existe. Mas não possibilidade de conduzir, somente pela propaganda, todos os homens ao nível necessário para que possamos realizar a anarquia, sem uma transformação gradual prévia do meio.

O progresso deve caminhar simultaneamente e paralelamente entre os indivíduos e o meio social. Devemos aproveitar todos os meios, todas as possibilidades, todas as ocasiões que o meio atual nos deixa para agir sobre os homens e desenvolver sua consciência e suas aspirações. Devemos utilizar todos os progressos realizados na consciência dos homens para leva-los a reclamar e a impor maiores transformações sociais hoje possíveis, ou aquelas que melhor servirão para abrir caminho a progressos ulteriores.

Não devemos somente esperar poder realizar a anarquia; e, enquanto esperamos, limitar-nos à propaganda pura e simples. Se agirmos assim, teremos, em breve esgotado nosso campo de ação. Teremos convencido, sem duvida, todos aqueles a que a circunstancia do meio atual tornam suscetíveis de compreender e aceitar nossas idéias, todavia, nossa propaganda ulterior permaneceria estéril. E, mesmo que as transformações do meio elevassem novas camadas populares à possibilidade de conceber novas idéias, isto aconteceria sem nosso trabalho, e mesmo contra, em prejuízo, como conseqüência de nossas idéias.

Devemos fazer com que o povo, em sua totalidade e em suas diferentes frações, exija, imponha e realize, ele próprio, todas as melhorias, todas as liberdades, que deseja na medida em que concebe a necessidade disso e que adquire força para impô-las. Assim, propagando sempre nosso programa integral e lutando de forma incessante por sua completa realização, devemos incitar o povo a reivindicar e a impor cada vez mais, até que ele consiga sua emancipação definitiva.

Para Saber mais, "A Luta Política e Economica dos Anarquistas"

3. A luta econômica

A opressão que hoje pesa de uma forma mais direta sobre os trabalhadores, e que é a causa principal de todas as sujeições morais e materiais que eles sofrem, é a opressão econômica, quer dizer, a exploração que os patrões e os comerciantes exercem sobre o trabalho, graças ao açambarcamento de todos grandes meios de produção e de troca.

Para suprimir radicalmente e sem retorno possível esta exploração, é preciso que o popovo, em seu conjunto, esteja convencido de que possui ouso dos meios de produção, e de que aplica este direito primordial explorando aqueles que monopolizam o solo e a riqueza social, para coloca-los à disposição de todos.

Todavia, é possível passar direto, sem graus intermediários, do inferno onde vive hoje o proletariado, ao paraíso da propriedade comum? A prova de que o povo ainda não é capaz, é que ele não o faz. O que fazer para chegar à expropriação?

Nosso objetivo é preparar o povo, moral e materialmente, para esta expropriação necessária; é tentar e renovar a tentativa, tantas vezes quantas a agitação revolucionária nos der a ocasião para fazê-lo, até o triunfo definitivo. Mas de que maneira podemos preparar o povo? De que maneira podemos realizar as condições que tornarão possível, não somente o fato material da expropriação, mas a utilização em vantagem de todos, da riqueza comum?

Nó dissemos mais acima (*) que a propaganda, oral ou sozinha, é impotente para conquistar para nossas idéias toda a grande massa popular. É preciso um,a educação pratica, que seja alternadamente causa e resultado da transformação gradual do meio. Deve-se desenvolver pouco a pouco nos trabalhadores o senso da rebelião contra as sujeições e os sofrimentos inúteis dos quais são vitimas, e o desejo de melhorar suas condições. Unidos e solidários, lutarão para obter o que desejam.

E nós, como anarquistas e como trabalhadores, devemos incita-los e encoraja-los à luta, e lutar com eles.

Mas estas melhorias são possíveis em regime capitalista? Elas são úteis do ponto de vista da futura emancipação integral pela revolução?

Quaisquer que sejam os resultados práticos da luta pelas melhorias imediatas, sua principal utilidade reside na própria luta. É por ela que os trabalhadores aprendem a defender seus interesses de classe, compreendem que os patrões e os governantes têm interesses opostos aos seus, e que não podem melhorar suas condições, e ainda menos se emancipar, senão unindo-se entre si e tornando-se mais forte do que os patrões. Se conseguirem obter o que desejam, viverão melhor. Ganharam mais, trabalharão menos terão mais tempo e força para refletir sobre as coisas que os interessam; e eles sentiram de repente desejos e necessidades maiores. Se não obtiverem êxito, serão levados a estudar as causas de seu fracasso e a reconhecer a necessidade de uma união maior, de maior energia; e compreenderam, enfim, que para vencer, segura e definitivamente, é preciso destruir o capitalismo. A causa da revolução, a causa da elevação moral dos trabalhadores e de sua emancipação só pode ganhar, visto que os operários unem-se e lutam por seus interesses.

Todavia, uma vez mais, é possível que os trabalhadores consigam, no estado atual em que as coisas se encontram, melhorar de fato suas condições? Isto depende do concurso de uma infinidade de circunstancia. Apesar do que dizem alguns, não existe nenhuma lei natural (lei dos salários) que determine a parte que vai para o trabalhador sobre o produto de seu trabalho. Ou, se quiser formular uma lei, ela não poderia ser senão a seguinte: o salário não pode descer normalmente abaixo do que é necessário à conservação da vida, e não pode normalmente se elevar ao ponto de não dar mais lucro ao patrão. É obvio que, no primeiro caso, os operários morreriam, e, assim não receberiam mais salário; no segundo caso, os patrões deixariam de fazer trabalhar e, em conseqüência, não pagariam mais nada. Mas entre estes dois extremos impossíveis, há uma infinidade de graus, que vão das condições quase animais de muitos trabalhadores agrícolas, até aquelas quase decentes dos operários, em boas profissões, nas grandes cidades.

O salário, a duração da jornada de trabalho e todas as outras condições de trabalho são o resultado das lutas entre patrões e operários. Os primeiros procuram pagar aos trabalhadores o mínimo possível e faze-los trabalhar até o esgotamento completo; os outros se esforçam – ou deveriam se esforçar – em trabalhar o mínimo e ganhar o máximo possível. Onde os trabalhadores se contentam com qualquer coisa e, mesmo descontente, não sabem opor resistência valida aos patrões, são em pouco tempo reduzidos à condição de vida quase animal. Ao contrario, onde têm uma elevada do que deveriam ser as condições de existência dos seres humanos; onde sabem se unir e, pela recusa ao trabalho e pela ameaça latente ou explicita da revolta, impor que os patrões os respeitem, eles são tratados de maneira relativamente suportável. Assim, pode-se dizer que, em certa medida, o salário, é o que operário exige, não enquanto individuo, mas enquanto classe.

Lutando, portanto, resistindo aos patrões, os assalariados podem opor-se, até certo ponto, à agravação de sua situação, e, até mesmo, obter melhorias reais. A historia do movimento operário já demonstrou esta verdade.


Não se deve, entretanto exagerar o alcance das lutas destas lutas entre explorados e exploradores no terreno exclusivamente econômico. As classes dirigentes podem ceder, e cedem amiúde, às exigências operarias expressadas com energia, enquanto não são muito grandes. Contudo, quando os assalariados começam – e é urgente que eles o façam – a reivindicar aumentos tais que absorveriam todo o lucro patronal e constituiriam, assim, uma expropriação indireta, é certo que os patrões apelariam ao governo e procurariam reconduzir os operários, pela violência, às condições de todos os escravos assalariados.

E antes, bem antes que os operários possam reivindicar receber em compensação ao seu trabalho o equivalente a tudo que produziram, a luta econômica se torna impotente para assegurar um destino melhor.

Os operários produzem tudo, e sem seu trabalho não se pode viver. Parece, portanto, que recusando trabalhar, os trabalhadores poderiam impor todas as suas vontades. Mas a união de todos os trabalhadores, mesmo de uma única profissão em um único país, é dificilmente realizável: à união dos operários se opõe a união dos patrões. Os primeiros vivem com o mínimo para sobreviver no dia a dia e, se fazem greve, falta-lhes o pão logo a seguir. Os outros dispõem, por meio do dinheiro, de tudo o que foi produzido; podem esperar que a fome reduza os assalariados à sua mercê. A invenção ou a introdução de novas maquinas torna inútil o trabalho de grande numero de trabalhadores, aumentando o exercito dos desempregados, que a fome obriga a se venderem a qualquer preço. A imigração traz, de repente, nos países onde as condições são mais favoráveis, multidões de trabalhadores famintos que, bem ou mal, dão ao patronato o meio de reduzir os salários. E todos estes fatos, resultando necessariamente do sistema capitalista, conseguem contrabalançar o progresso da consciência e da solidariedade operaria. Com freqüência, eles têm efeito mais rápido, do que esse progresso que eles detêm e destroem. Desta forma, resta sempre este fato primordial segundo o qual a produção no sistema capitalista está organizada por cada empregador para seu proveito pessoal, não para satisfazer as necessidades dos trabalhadores.

A desordem, o desperdício das forças humanas a penúria organizada, os trabalhos nocivos e insalubres, o desemprego, o abandono das terras, a subutilização das maquinas etc, são tantos males que não se podem evitar senão retirando dos capitalistas os meios de produção, e, por via de conseqüência, a direção da produção.

Os operários que se esforçam em se emancipar, ou aqueles que de fato procuram melhorar suas condições devem rapidamente se defender do governo, ataca-lo, pois ele legitima e sustenta, pela força brutal, o direito de propriedade, ele 'e obstáculo ao progresso, obstáculo que deve ser destruído se não se quiser permanecer indefinidamente nas atuais condições, ou em outras ainda piores.

Da luta econômica deve-se passar à luta política, quer dizer, contra o governo. Ao invés de opor aos milhões dos capitalistas os poucos centavos reunidos penosamente pelos operários, é preciso opor aos fuzis e aos canhões que defendem a propriedade os melhores meios que o povo encontrar para vencer a força pela força.

4. A luta política

Por uma luta política entendemos a luta contra o governo. O governo é o conjunto de indivíduos que detêm o poder de fazer a lei e de impô-la aos governados, isto é, ao publico.

O governo é a conseqüência do espírito de dominação e de violência que homens impuseram a outros homens, e ao mesmo tempo, é a criatura e o criador dos privilégios, e também seu defensor natural.

É falso dizer que o governo desempenha hoje o papel de protetor do capitalismo, e que este ultimo tendo sido abolido, ele se tornaria o representante e o gerente dos interesses de todos. Antes de mais nada, o capitalismo não será destruído enquanto os trabalhadores, tendo se livrado do governo, não tiverem se apoderado de toda a riqueza social e organizado; eles próprios, a produção e o consumo, no interesse de todos, sem esperar que a iniciativa venha do governo, que, de resto, é incapaz de fazê-lo.

Se a exploração capitalista fosse destruída, e o principio governamental conservado, então, o governo, distribuindo todos os tipos de privilégios, não deixaria de restabelecer um novo capitalismo. Não podendo contentar todo o mundo, o governo necessitaria de uma classe economicamente poderosa para sustenta-lo, em troca da produção legal e material que ela receberia dele.

Não se pode, portanto, abolir os privilégios e estabelecer de modo definitivo a liberdade e a igualdade social sem por fim ao governo, mas à própria instituição governamental.

Nisso, assim como em tudo o que concerne ao interesse geral, e mais ainda a este ultimo, é preciso o consentimento de todos. Eis porque devemos nos esforçar em persuadir as pessoas de que o governo é inútil e nocivo, e de que se vive melhor sem ele. Mas, como já o dissemos, a propaganda sozinha é impotente para alcançar tudo isso; e se nós contentássemos em pregar contra o governo, esperando de braços cruzados, o dia em que as pessoas estariam convencidas da possibilidade e da utilidade de abolir por completo toda espécie de governo, este dia nunca chegaria.

Denunciando sempre esta espécie de governo, exigindo sempre a liberdade integral, devemos favorecer todo combate por liberdades parciais, convictos de que é pela luta que se aprende a lutar. Começando a provar a liberdade, acaba-se por deseja-la inteiramente. Devemos sempre estar com o povo; e quando não conseguirmos fazer com que queira muito, devemos fazer com que, pelo menos ele comece a exigir alguma coisa. Devemos nos esforçar a que aprenda a obter por si mesmo o que quer – pouco ou muito –, e a odiar e a desprezar quem quer que vá ou queira fazer parte do governo.

Visto que o governo detém, hoje, o poder de regular, por leis, a vida social, ampliar ou restringir a liberdade dos cidadãos, e visto que ainda não podemos arrancar-lhe esse poder, devemos procurar enfraquece-lo e obriga-lo a fazer uso dele o menos perigosamente. Mas, esta ação, devemos fazê-la sempre de fora e contra o governo, pela agitação na rua, ameaçando tomar pela força o que se exige. Jamais deveremos aceitar uma função legislativa, seja ela nacional ou local, pois, assim agindo, diminuiríamos a eficácia de nossa ação e trairíamos o futuro de nossa causa.

A luta contra o governo consiste, em ultima analise, em luta física e material.

O governo faz a lei. Deve, portanto, dispor de força material (exercito e policia) para impor a lei. De outra forma, obedeceria quem quisesse, e não existiria mais a lei, mas uma proposição, que qualquer um seria livre para aceitar ou recusar. Os governos possuem esta força e servem-se dela para reforçar sua dominação, no interesse das classes privilegiadas, oprimindo e explorando os trabalhadores.

O único limite à opressão governamental é a força que o povo se mostra capaz de lhe opor. Pode haver conflito, aberto ou latente, mas sempre há conflito. Isso se da porque o governo não para diante do descontentamento e da resistência populares senão quando sente o perigo de uma insurreição.

Quando o povo se submete docilmente à lei, ou o protesto permanece fraco e platônico, o governo se acomoda, sem se preocupar com as necessidades do povo. Quando o protesto é vivo, insiste e ameaça, o governo, segundo seu humor, cede ou reprime. Mas é preciso chegar à insurreição, porque, se o governo não cede, o povo acaba por se rebelar; e, se ele cede, o povo adquire confiança em si mesmo exige cada vez mais, até que a incompatibilidade entre a liberdade e a autoridade seja evidente e desencadeie o conflito.

É, portanto, necessário preparar-se moral e materialmente para que, quando a luta violenta eclodir, a vitória fique com o povo.

A insurreição vitoriosa é o fato mais eficaz para a emancipação popular, porque o povo, depois de ter destruído o jugo, torna-se livre para se entregar às instituições que ele crê serem as melhores. A distancia que existe entre a lei (sempre retardatária) e o nível de civismo que a massa da população alcançou, pode ser superada com um salto: a insurreição determina a revolução, isto é, a atividade rápida das forças latentes acumuladas durante a evolução precedente.

Tudo depende do que o povo é capaz de querer.

Nas insurreições passadas, o povo, inconsciente das verdadeiras causas de seus males, sempre quis bem pouco, e conseguiu bem pouco.

O que desejará nas próximas insurreições?

Isto depende em grande parte do valor de nossa propaganda e da energia que fomos capazes de mostrar.

Deveremos incitar o povo a expropriar os proprietários e a tornar comum seus bens, organizar, ele próprio, a vida social, por associações livremente constituídas, sem esperar ordens de ninguém, recusar nomear ou reconhecer qualquer governo ou qualquer corpo constituído (Assembléia, Ditadura etc) que se atribuíssem, mesmo a titulo provisório, o direito de fazer a lei e impor aos outros sua vontade, pela força. Se a massa popular não responde ao nosso apelo, devemos, em nome do direito que temos de ser livres, mesmo se os outros desejarem permanecer escravos, para dar o exemplo, aplicar o maximo possível nossas idéias: não reconhecer o novo governo, manter viva a resistência, fazer com que comunas, onde nossas idéias são recebidas com simpatia, rejeitem toda ingerência governamental e continuem a viver a seu modo.

Deveremos, sobretudo, nos opormos por todos os meios à reconstituição da policia e do exercito, e aproveitar toda a ocasião propicia para incitar os trabalhadores a utilizar a falta de forças repressivas para impor ao Maximo de reivindicações.

Qualquer que seja o resultado da luta, é preciso continuar a combater, sem trégua, os proprietários, os governos, tendo sempre em vista a completa emancipação econômica de toda a humanidade.

5. conclusão.

Desejamos, portanto, abolir de forma radical a dominação e a exploração do homem pelo homem. Queremos que os homens, unidos fraternalmente por uma solidariedade consciente, cooperem de modo voluntário com o bem estar de todos. Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, o maior desenvolvimento possível, moral e material. Desejamos para todos pão, liberdade, amor, e saber.

Para isso, estimamos necessário que os meios de produção estejam à disposição de todos e que nenhum homem, ou grupo de homens, possa obrigar outros a obedecerem à sua vontade, nem exercer sua influencia de outra forma senão pela argumentação e pelo exemplo.

Em conseqüência: expropriação dos detentores do solo e do capital em proveito de todos e abolição do governo.

Enquanto se espera: propaganda do ideal; organização das forças populares; combate continuo, pacifico ou violento, segundo as circunstancias, contra o governo e contra os proprietários, para conquistar o Maximo possível de liberdade e de bem-estar para todos.

Tradução
Plínio Augusto Coêlho


Escritos Revolucionários - Errico Malatesta - Ed. Imaginário