terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Maconha pode ajudar no tratamento de dependentes de crack, aponta estudo

A maconha é frequentemente referida como o primeiro degrau na escalada do consumo de outras drogas: seria a porta que levaria ao uso de substâncias com grande potencial de causar dependência química, como a cocaína ou o crack. Entretanto, um estudo observacional, conduzido pelo psiquiatra Dartiu Xavier, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e publicado no Journal of Psychoactive Drugs, aponta justamente o contrário: a Cannabis pode ser realmente útil para tratar sintomas de abstinência em usuários de crack e, assim, aumentar as chances de recuperação.
O psiquiatra acompanhou 50 dependentes da droga que relataram usar cigarros de maconha para atenuar a "fissura", ou seja, o desejo incontrolável de voltar a consumir o crack. Ele observou que 68% deles conseguiram abandonar a adição química e, posteriormente, por conta própria, deixaram de utilizar a Cannabis. Segundo Xavier, a erva deveria ser considerada como parte de uma estratégia de redução de danos, para afastar o usuário de drogas outras, potencialmente mais prejudiciais. Países como Holanda e Austrália já incluíram a Cannabis em políticas de saúde pública voltadas para dependentes de drogas.
"A questão não é ser contra ou a favor. Trata-se de ampliar o conhecimento sobre as propriedades neuroquímicas dos canabinoides e sobre sua ação no cérebro, para permitir o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes", diz Xavier, afirmando que, em anos de pesquisas, nunca identificou nenhum fator que justificasse o senso comum de que o uso recreativo de Cannabis pode, de alguma forma, impelir ao consumo de cocaína ou de outras drogas. "Quando questionados sobre a primeira substância que usaram, a grande maioria dos dependentes de crack ou cocaína cita o álcool. Da mesma maneira que muitas pessoas usam somente essa última substância ao longo da vida, muitas o fazem também com a maconha."
É importante, todavia, esclarecer que o potencial da Cannabis como "droga de substituição" em períodos de abstinência não quer dizer que seu uso recreativo seja seguro. Os riscos são maiores na adolescência, pois o córtex pré-frontal, que compreende a memória operacional, que gerencia processos cognitivos complexos, ainda não está amadurecido e não se sabe até que ponto seu desenvolvimento pode ser prejudicado pelos princípios psicoativos da erva.

Fonte: Mente e Cérebro

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Sistema Canabinóide Endógeno

Introdução
Os efeitos característicos do 9-tetrahidrocanabinol (9-THC, principal constituinte da Cannabis sativa), tais como analgesia, hipotermia, inibição de atividade motora e hiperfagia, são conhecidas de longa data. Porém, o mecanismo de ação do 9-THC e de seus análogos (denominados canabinóides) permaneceu obscuro até o final da década de 1980. Desde essa época, uma série de descobertas vem revolucionando a farmacologia dos canabinóides, iniciando-se com a descoberta de um receptor canabinóide em mamíferos e levando à identificação de ligantes endógenos para esse receptor.
O presente texto baseia-se em algumas revisões importantes e tem por objetivo descrever o sistema canabinóide endógeno de forma bastante sucinta e direta. Os processos de síntese e metabolismo das principais substâncias propostas como canabinóides endógenos (endocanabinóides), bem como os seus receptores, são brevemente discutidos.

Receptores canabinóides
Um dos primeiros passos fundamentais na descoberta do sistema canabinóide foi a observação de que diversos canabinóides naturais e sintéticos podem se ligar a membranas de encéfalo de ratos em um padrão que sugeria a existência de um sítio específico para esta classe de substâncias (Howlett et al, 1990). Nestes experimentos, observou-se que os canabinóides se ligavam às membranas de forma saturável e estereosseletiva. Além disso, observou-se significativa correlação entre a ordem de afinidade pelo sítio de ligação e a ordem de potência para a indução de efeitos farmacológicos em humanos e em animais experimentais. Isto se somou às observações de que pequenas variações estruturais nas moléculas dos canabinóides ocasionavam grandes alterações de potência. Em conjunto, estes dados sugeriam fortemente a existência de um receptor para os canabinóides no sistema nervoso de mamíferos, ainda que nenhum ligante endógeno fosse conhecido para esse receptor.
De fato, um receptor específico para os canabinóides foi clonado e caracterizado em 1990. Um segundo receptor foi identificado nos anos seguintes. O Comitê para Nomenclatura de Receptores e Classificação de Drogas da União Internacional de Farmacologia e Terapêutica Experimental (International Union for Pharmacology and Experimental Therapeutics - IUPHAR) denominou esses receptores, pela ordem de descoberta, em receptores canabinóides do subtipo 1 (CB1) e subtipo 2 (CB2) (Howlett et al, 2002). O primeiro é responsável pelos efeitos centrais dos canabinóides, enquanto o segundo deve mediar efeitos periféricos. Ambos são receptores acoplados a uma proteína G que, quando ativada, inibe a enzima adenilato ciclase, aumenta a atividade de canais de potássio e inibe canais de cálcio (figura 1), modulando a liberação de outros neurotransmissores (Piomelli et al, 2003).
O receptor CB1 é amplamente expresso em diversas estruturas encefálicas (Tabela 1). A sua densidade é imensa em regiões importantes para o controle motor, como nos núcleos da base e no cerebelo. O estriado ventral (núcleo acúmbens) também apresenta elevada densidade, provavelmente mediando os efeitos hedônicos e reforçadores dos canabinóides. A densidade dos receptores CB1 também é significativa no hipocampo e em diversas regiões do córtex cerebral. Além disso, eles também são expressos na amígdala e na matéria cinzenta periaquedutal, possivelmente responsáveis pelas alterações emocionais e pelo efeito analgésico dos canabinóides. Estão também presentes no hipotálamo, onde poderiam mediar algumas ações dos canabinódes tais como hipotermia e hiperfagia.

Endocanabinóides
A descoberta dos receptores canabinóides desencadeou uma intensa busca pelos ligantes endógenos. Assim como os compostos presentes na Cannabis, os canabinóides de mamíferos são compostos de natureza lipídica. Os principais endocanabinóides identificados são aracdonil-etanolamida (AEA) e o 2-aracdonil-glicerol (2-AG). A AEA foi também denominada anandamida, sendo o termo “ananda” oriundo do sânscrito, significando felicidade serena, bem-aventurança ou felicidade perfeita (Mechoulam et al, 1998).
A maneira pela qual os endocanabinóides atuam no sistema nervoso central (esquematizados na figura 1) contraria os conceitos clássicos que definem um neurotransmissor. Estes conceitos postulam que os neurotransmissores são sintetizados em neurônios pré-sinápticos, armazenados em vesículas e liberados após influxo de cálcio para o neurônio. Porém, tanto a anandamida quanto o 2-AG são sintetizados a partir de fosfolipídios de membrana em neurônios pós-sinápticos, sendo o aumento de cálcio intracelular o fator desencadeante. Os endocanabinóides não são armazenados em vesículas, mas imediatamente liberados dos neurônios pós-sinápticos para atuarem em terminações pré-sinápticas, processo este denominado neurotransmissão retrógrada. Portanto, os endocanabinóides atuam “sob demanda”, modulando a atividade dos neurônios pré-sinápticos após a ativação pós-sináptica.
Tanto a anandamida quanto o 2-AG têm a sua ação terminada pela captação para os neurônios, seguida de metabolismo (Hillard e Jarrahian, 2003). Esses processos têm sido estudados com mais detalhes para a anandamida. A etapa de re-captação permanece controversa, podendo ocorrer por difusão simples e/ou por um processo facilitado por uma proteína captadora. O metabolismo da anandamida aparentemente ocorre nos neurônios pós-sinápticos por uma hidrolase de amidas de ácidos graxos (Fatty Acid Amide Hydrolase - FAAH), conforme ilustrado na figura 2.
Os principais mecanismos para intervenções farmacológicas no sistema canabinóide endógeno são o agonismo ou o antagonismo nos receptores CB1 e CB2 (Di Marzo et al, 2004). Muitos dos canabinóides clássicos, como o próprio 9-THC, são agonistas que não apresentam grande seletividade para os subtipos de receptores canabinóides. Porém, há diversos agonistas e antagonistas seletivos para os receptores CB1 ou CB2. Os agonistas CB1 induzem os efeitos já mencionados de analgesia, hipotermia, hiperfagia. Os agonistas CB2 podem ser interessantes por induzirem efeitos periféricos, como a analgesia, mas sem a diversidade de efeitos centrais decorrentes da ativação dos receptores CB1, como comprometimento motor e alterações de memória.
Outra possibilidade de intervenção no sistema canabinóide endógeno é a utilização de compostos que inibem a captação e/ou o metabolismo. Os inibidores da captação ou metabolismo da anandamida, por exemplo, induzem alguns efeitos agudos semelhantes aos dos agonistas CB1. Porém, ainda não estão claras as diferenças entre esses compostos no que se refere aos efeitos agudos ou à indução de tolerância após tratamento crônico, por exemplo.

O sistema endocanabinóide e transtornos neuropsiquiátricos
Os canabinóides interagem com diversos neurotransmissores e neuromoduladores, como serotonina, dopamina, glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA). Vários dos efeitos farmacológicos neuropsiquiátricos da Cannabis sativa podem ser explicados tendo como base estas interações (Tabela 1).
A Cannabis sativa tem sido historicamente usada para aliviar diversos sintomas associados ao sistema nervoso central (SNC), como transtornos psiquiátricos, distúrbios motores e dor. Por outro lado, o abuso de maconha parece estar relacionado a uma ampla variedade de transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, ansiedade e depressão (ver capítulos X, Y e Z). Dessa forma, o sistema canabinóide tem sido associado à neurobiologia de diversas condições neuropsiquiátricas.
Alguns estudos demonstraram que os agonistas CB1 induzem efeitos ansiolíticos, embora também existam resultados de efeitos ansiogênicos, havendo certa controvérsia na modulação da ansiedade por estes receptores. Outra recente proposta é a de que os endocanabinóides sejam importantes mediadores da extinção de memórias condicionadas a eventos aversivos, o que teria aplicação para o tratamento de depressão e transtorno de estresse pós-traumático (Marsicano et al, 2002), por exemplo.
Os receptores canabinóides estão significativamente presentes em estruturas possivelmente envolvidas na fisiopatologia da esquizofrenia, tais como o córtex pré-frontal, hipocampo e núcleo acúmbens. Além disso, tanto o uso da Cannabis sativa quanto a administração de 9-THC (ou de outros agonistas CB1) pode induzir efeitos psicotomiméticos (ver capítulo X). Com base nessas e em outras observações, foi levantada a hipótese de que a intensificação na neurotransmissão mediada pelos endocanabinóides poderia participar na fisiopatologia da esquizofrenia (Emrich et al, 1997). De fato, há dados de alterações no sistema endocanabinóide associadas a este transtorno, como maior concentração da anandamida e palmitiletanolamida no fluído cerebroespinhal de pacientes (Leweke et al., 1999), que se correlacionou inversamente com a presença de sintomas psicóticos (Giuffrida et al., 2004). Também foi evidenciada maior densidade de receptores CB1 no córtex pré-frontal de pacientes com esquizofrenia (Dean et al., 2001), embora ainda sem uma relação causal definitiva. Do mesmo modo, ainda não está claro como ocorrem as interações dos endocanabinóides com a dopamina e o glutamato (os principais neurotransmissores envolvidos na esquizofrenia). Apesar destas considerações, o antagonista CB1 SR141716A não demonstrou eficácia no tratamento de pacientes com esquizofrenia (Meltzer et al., 2004).
Um importante papel fisiológico desempenhado pelos endocanabinóides é a neuroproteção. A hiperatividade glutamatérgica e outros processos que causam dano neuronal parecem desempenhar importante papel em doenças degenerativas crônicas como o transtorno de Alzheimer. Os mecanismos neuroprotetores dos canabinóides observados em estudos com animais incluem inibição da produção excessiva de glutamato e propriedades antioxidantes, que reduzem o dano causado pelos radicais oxigênios.
A alta densidade de receptores CB1 nos gânglios da base – uma área intimamente envolvida na regulação do controle motor – e da já mencionada interação com a dopamina, sugerem uma importante relação do sistema canabinóide endógeno com os transtornos de movimento, como o Parkinson e a Coréia de Huntington. Porém, a participação dos endocanabinóides nos processos fisiopatológicos ainda não está clara, e as abordagens farmacológicas ainda estão inconsistentes (Fernandez-Ruiz et al., 2002).
Vários casos têm sido relatados sugerindo que a maconha é uma substância efetiva para combater sintomas de abstinência na dependência de benzodiazepínicos, álcool e – especialmente – dos opióides. Aparentemente, há um importante relação entre os sistemas canabinóide e opióide no controle de processos fisiológicos como dor e recompensa, na distribuição neuroanatômica e nos seus mecanismos de transdução de sinal. O fenômeno de tolerância cruzada pode ocorrer para alguns efeitos dos agonistas canabinóides e opióides. Demonstrou-se também que tanto agonistas CB1 quanto inibidores de internalização/metabolismo da anandamida atenuam a síndrome de abstinência e a auto-administração de opióides, sugerindo que esta pode ser uma abordagem promissora para estudos clínicos (Van der Stelt et al., 2003). Os antagonistas também têm sido estudados em modelos de auto-administração de opióides, etanol ou cocaína.
Finalmente, outras importantes contribuições dos receptores CB1 incluem a mediação de efeito orexígeno, antiepiléptico e antiemético especialmente em indivíduos utilizando quimioterápicos.

Conclusões
O considerável progresso nas ações fisiológicas e farmacológicas do 9-THC e de outros canabinóides levou à identificação do sistema canabinóide endógeno no SNC. Este é um dos mais recentes sistemas de neurotransmissores descobertos, ainda havendo muitos aspectos a serem elucidados. Dentre estes se destacam: (i) os processos enzimáticos de síntese e inativação dos canabinóides; (ii) os efeitos dos canabinóides que parecem ser mediados por mecanismos independentes dos receptores CB1 ou CB2; (iii) identificação de um possível receptor “CB3”. Além disto, a maior compreensão das interações dos endocanabinóides com outros sistemas, como opióides, dopamina, GABA e glutamato parece necessária e oportuna.
Assim, este melhor entendimento dos mecanismos de ação dos canabinóides e da fisiologia deste sistema, poderá aumentar a nossa compreensão da neurobiologia de alguns transtornos neuropsiquiátricos, o que poderá permitir o desenvolvimento de novas e mais eficazes terapias psicofarmacológicas.

Referências
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2. Howlett AC, Bidaut-Russel M, Devane W, Melvin LS, Johnson MR, Herkenhan M. The cannabinoid receptor: Biochemical, anatomical and behavioral characterization. Trends Neurosci 1990; 13:420-423
3. Howlett AC, Barth F, Bonner TI, Cabral G, Caselas P, Devane WA, Felder CC, Herkenham M, Mackie K, Martin BR, Mechoulam R, Pertwee RG. International Union of Pharmacology. XXVII. Classification of cannabinoid receptors. Pharmacol Rev 2002; 54:161-202.
4. Mechoulam R, Fride E, Di Marzo V. Endocannabinoids. Eur J Pharmacol 1998; 359:1-18
5. Piomelli D. The mollecular logic of endocannabinoid signalling. Nature Rev Neurosci 2003; 4:873-84.
6. Baker D, Pryce G, Giovannoni G, Thompson AJ. The therapeutic potential of cannabis. Lancet Neurol. 2003; 2:291-298.
7. Marsicano G, Wotjak CT, Azad SC, Bisogno T, Rammes G, Cascio MG, et al. The endogenous cannabinoid system controls the extinction of aversive memories. Nature 2002; 418:530-4.
8. Di Marzo V, Bifulco M, De Petrocellis L. The endocannabinoid system and its therapeutic exploitation. 2004; 3:771-84.
9. Van der Stelt M, Di Marzo V. The endocannabinoid system in the basal ganglia and in the mesolimbic reward system: implications for neurological and psychiatric disorders. Eur J Pharmacol 2003; 480:133-50.
10. Meltzer HY, Arvanitis L, Bauer D, Rein W; Meta-Trial Study Group. Placebo-controlled evaluation of four novel compounds for the treatment of schizophrenia and schizoaffective disorder. Am J Psychiatry. 2004; 161:975-984.
11. Emrich HM, Leweke FM, Schneider U. Towards a cannabinoid hypothesis of schizophrenia: cognitive impairments due to dysregulation of the endogenous cannabinoid system. Pharmacol Biochem Behav 1997; 56:803-807.
12. Giuffrida A, Leweke FM, Gerth CW, Schreiber D, Koethe D, Faulhaber J, Klosterkotter J, Piomelli D. Cerebrospinal anandamide levels are elevated in acute schizophrenia and are inversely correlated with psychotic symptoms. Neuropsychopharmacology. 2004;29:2108-2114.
13. Leweke FM, Giuffrida A, Wurster U, Emrich HM, Piomelli D. Elevated endogenous cannabinoids in schizophrenia. Neuroreport. 1999; 10:1665-1669.
14. Dean B, Sundram S, Bradbury R, Scarr E, Copolov D. Studies on [3H]CP-55940 binding in the human central nervous system: regional specific changes in density of cannabinoid-1 receptors associated with schizophrenia and cannabis use. Neuroscience. 2001; 103(1):9-15.
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17. Manzanares J, Uriguen L, Rubio G, Palomo T. Role of endocannabinoid system in mental diseases. Neurotox Res 2004;6:213-224.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Da omissão ao fascismo, como a Justiça (não) funciona para os pobres

Caso Pinheirinho expõe inconsequência da Justiça paulista e inércia do governo federal  
 14/02/2012
  
Eduardo Sales de Lima
da Redação 

A cada dia que passa, o Estado de São Paulo prova que o direito de propriedade vale mais que o da preservação da vida. A violação dos direitos humanos, recentemente observada contra os dependentes químicos e os estudantes da USP, foi transposta a um bairro pobre de 6 mil pessoas, em São José dos Campos (SP).     
Numa ação surpresa do Estado, mais de 2 mil agentes (polícia militar e guarda municipal) cercaram o bairro. Gás de pimenta, bombas de efeito moral e cassetetes para surpreender famílias no domingo (22 de janeiro), às seis horas da manhã.        
A operação foi comandada diretamente pela Presidência do Tribunal de Justiça paulista. “Foi um sucesso”, assegura o desembargador Rodrigo Capez, designado por Ivan Sartori, presidente da instância, para acompanhar a reintegração de posse. Rodrigo é irmão do deputado estadual Fernando Capez (PSDB). “Não tenho nada a ver com o partido”, defende-se.          
Não foi um sucesso e, ainda por cima, houve “atropelos”. Ao autorizar o despejo de cerca de 6 mil pessoas, Ivan Sartori destacou a necessidade de a PM paulista repelir “qualquer óbice que viesse a surgir no curso da execução, inclusive a oposição de corporação policial federal, somente passível de utilização quando de intervenção federal decretada nos termos do art. 36 da Constituição Federal e mediante requisição do Supremo Tribunal Federal, o que inexiste”. Ou seja, um confronto entre Polícia Militar e Polícia Federal poderia ter ocorrido “legalmente”.          
Após essa primeira ação, as famílias foram obrigadas entrar numa espécie de campo de concentração. E não é exagero. “Lá só podiam ter acesso a abrigo mediante uma senha fornecida pelas ‘assistentes sociais’ , igual às marcas e papéis [salvo condutos] que os judeus usavam no período da Alemanha nazista”, indigna-se Camila Cândido, assessora jurídica do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem-Teto (MTST). Ela acompanhou de perto o processo de reintegração de posse na Comunidade Pinheirinho. As famílias se dividiram. Cerca de mil pessoas se instalaram em uma igreja do Campo dos Alemães, uma comunidade vizinha ao Pinheirinho.
Segundo Camila, os abrigos serviriam apenas para que polícia e órgãos do estado filtrassem as informações das famílias. Ou seja, espaços de coerção para encontrar mecanismos de expulsar as famílias de São José dos Campos, ao oferecer passagens para o nordeste ou auxilio aluguel (de R$ 500,00 a R$ 600,00) para cada família. “Esmolas oferecidas pelo prefeito Eduardo Cury e o governo do estado (ambos do PSDB), que nada mais é do que uma política de higiene social perpetrada pelos governos tucanos”, critica Camila.      
Assinado por juristas como Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, entre outros, o manifesto que solicita a denúncia do caso Pinheirinho à comissão interamericana de direitos humanos enfatiza que a “conduta das autoridades estaduais contrariou princípios básicos, consagrados pela Constituição e por inúmeros instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos, ao determinar a prevalência de um alegado direito patrimonial sobre as garantias de bem-estar e de sobrevivência digna de seis mil pessoas”.        

Truculência jurídica
A polêmica da jurisprudência entre a Justiça Federal e a Estadual no caso Pinheirinho ocorreu quando a União entrou no “jogo” para tentar regularizar o assentamento, suspendendo a desocupação. O problema é que um dia antes da expulsão dos moradores (21 de janeiro), o impasse ainda não estava resolvido. A 6ª Vara Cível de São José dos Campos havia decidido pela reintegração de posse, mas ainda era válida a decisão da Justiça Federal pela suspensão do despejo. Mesmo antes de o STJ, a instância superior, decidir sobre a competência do caso, o desembargador Ivan Sartori ordenou o “imediato cumprimento” da ordem expedida pela Justiça paulista, ainda que a Polícia Federal pudesse se colocar contra a remoção das famílias. A juíza da 6ª Vara Cível Márcia Loureiro, alegando não ter sido notificada até o momento ordenou que a liminar de reintegração de posse fosse cumprida de imediato.   O Tribunal de Justiça de São Paulo argumenta. “Não houve conflitos de jurisprudência.  
O TJ não pode reformar uma decisão por federal e vice-versa. Isso é regra de Direito processual básica. O TRF tem a mesma graduação [em relação ao TJ], salienta o desembargador Rodrigo Capez, designado por Ivan Sartori para acompanhar a reintegração de posse.    
Rodrigo ressalta que se a decisão fosse do STJ, ela seria respeitada. “Os Estados têm autonomia, a violação seria se um Tribunal Federal invadisse nossa competência”, pondera.
Somente no dia seguinte o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ari Pargendler, considerou legal a decisão da Justiça paulista, que ordenou a reintegração de posse. O ministro negou o pedido de liminar feito pela União para validar uma decisão da Justiça federal que impedia a remoção das famílias. Entretanto antes disso, o STJ já havia entendido que, como a União nunca fez parte do processo de reintegração de posse desde a 1ª instancia não poderia a União suscitar o conflito de competência neste momento, e nem modificar a decisão da 6ª Vara Cível de São José dos Campos.        
De todo modo, para Camila Alves Cândido não houve isenção do judiciário [paulista] em fazer esta desocupação. “Nesta queda de braço quem levou a pior foram os moradores”, afirma.      

Omissão?
 Por seu lado, a presidenta Dilma Rousseff fez duras críticas à ação da Polícia Militar na reintegração de posse da área, ao classificar a operação como ‘barbárie’. O desembargador Rodrigo Capez, considera a atitude petista como “uso político” da situação e critica omissão por parte do governo federal.    
“Se eles querem usar politicamente esse fato, então regularizem a situação. A Dilma editava um decreto de desapropriação da área e estaria resolvido. O segundo problema é pagar o dono do terreno, que deve ser indenizado”, reforça.          
Segundo ele, no mesmo ano em que foi iniciada a ocupação da área (2004), um mandado de reintegração de posse havia sido enviado ao então presidente Lula. “Se a União desejasse entrar no processo, de fato, era só o advogado geral do União entrar com um decreto da presidenta”, critica Capez.

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Atuação profissional do educador social penitenciário: o caso do sistema penitenciário do Amapá

Eliane Leal VasquezI; Edmar Souza das NevesII
IDoutoranda em História da Ciência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Ubiratan D'Ambrosio. Professora colaboradora da Universidade Federal do Amapá e servidora pública do quadro civil do Governo do Amapá, lotada Secretaria de Estado da Educação / Instituto de Administração Penitenciária do Amapá / Escola Estadual São José. E-mail: elianevasquez@gmail.com
IIMestrando em Educação Física na Universidade São Judas Tadeu, sob orientação da Prof. Dr. Edvaldo Gois Junior. Professor colaborador da Faculdade de Macapá e servidor público do quadro civil do Governo do Amapá, lotado na Secretaria de Estado da Educação / Escola Estadual Lucimar Amoras Del Castilho. E-mail: edme25@hotmail.com


RESUMO
Neste artigo analisamos a atuação profissional do educador social penitenciário no Estado do Amapá. Trata-se de um grupo de servidores públicos com formação em ensino superior e/ou médio que atua diretamente com a população carcerária e suas atividades diárias são dirigidas pela coordenadoria de tratamento penal. Destaca-se que sua função é essencial para a coordenadoria de tratamento penal, pois possibilita o acesso a assistências religiosa, material, social, jurídica, à saúde, educacional ou formação profissional que são garantidas como direitos das pessoas presas ou custodiadas pelo Instituto de Administração Penitenciária do Amapá e Penitenciária Feminina do Amapá, a partir de uma atuação profissional que se sustenta na pedagogia social. Realizamos entrevistas semi-estruturas com duas educadoras sociais penitenciárias e análise de documentos legais, com cruzamento de dados por meio do Sistema de Integrado de Informação Penitenciária, com perspectiva da pesquisa qualitativa e caráter exploratório. O educador social penitenciário é servidor público estadual que desenvolve suas funções no Sistema Penitenciário Amapaense, contribuindo com a mediação de conflito no ambiente carcerário e para o cumprimento das assistências e trabalho à população carcerária. Além disso, faz parte do recurso humano de apoio a administração penitenciária em virtude do quantitativo reduzido de servidores públicos dessa área.
Palavras-chave: Ciência Penitenciária - Sistema penitenciário amapaense - Pedagogia Social - Educador social penitenciário - Assistências e trabalho.

ABSTRACT
In this work we analyze the Professional actuation of the penitentiary social educator in Amapá State. It's about a group of public employees from higher and/or secondary education that performs straightforward with prisoners population. Their daily activities are managed by penal treatment coordination. The work of this group is essential to penal treatment coordination, because it enables the access to religious, material, social, juridical, health, educational assistance or professional education that are warranted as rights to prisoners or custody persons by "Instituto de Administração Penitenciária do Amapá" and "Penitenciária Feminina do Amapá" starting from a professional actuation supported in the social pedagogy. We did semi-structured interviews with two prison social educators and we an alyzed legal documents, with crossing of dates through the Integrated System of Penitentiary Information, based on the perspective of qualitative research and exploratory characteristic. The penitentiary social educator is a state public employee that plays its role in Penitentiary System of "Amapá", contributing to the mediation of conflicts in prison environment and to the fulfillment of assistance and work to prison population. Besides that, this group is part of the human resources supporting the penitentiary administration because of reduced quantitative of public employees in this department.
Keywords: Penitentiary science - Penitentiary System of "Amapá" - Social Pedagogy - Penitentiary Social Educator - Assistances and work

Introdução, problema e objetivo
A história da educação prisional no Amapá desenvolveu-se concomitantemente a construção dos prédios e órgãos que compõe o sistema penitenciário amapaense, como: Colônia de São Pedro, Penitenciária Agrícola do Amapá, Colônia Penal Agrícola e Industrial do Amapá; Complexo Penitenciário do Amapá, Instituto Penitenciário do Estado do Amapá, Penitenciária Feminina e outros órgãos. Em 2009, completou-se aproximadamente trinta e quatro anos de oferta da educação prisional a homens e mulheres que estão cumprindo sentença judicial ou medida de segurança, em observância a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), Lei de Execução Penal (1984), Normas Gerais do Regime Penitenciário (1957), Normas de Execução Penal do Estado do Amapá (2002) e outras normatizações (VASQUEZ, 2009). Com a transformação do Complexo Penitenciário do Amapá em autarquia, a partir da Lei nº 0609 de 06 de julho de 2001, decretada pelo governador João Alberto Capiberibe, a referida instituição ficou vinculada indiretamente à Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública e um novo grupo de servidores públicos e cargos comissionados foram criados, constituído pela coordenadoria do sistema penitenciário e grupo penitenciário.
É importante destacar que o grupo penitenciário, é formado pelos agentes penitenciários e educadores sociais penitenciários, mas no exercício da atuação profissional suas atribuições são diferenciadas, pois o primeiro, grosso modo, realiza serviços de segurança e vigilância, escolta e custódia e deve facilitar as atividades dirigidas à reinserção social e ao tratamento da pena, enquanto que, o segundo, desenvolve o atendimento, assistência e orientação a pessoas recolhidas nos estabelecimentos penitenciários, avaliam e acompanham os processos de reeducação, reinserção social e ressocialização dos presos e apenados. Além de ser responsável pela programação e coordenação das atividades laborais de reeducação, reintegração social e ressocialização do sentenciado, conforme a legislação estadual que regimenta suas atribuições. Nesse contexto, sua finalidade é formular e executar a política penitenciária do Amapá, exercendo a coordenação das unidades responsáveis pela reclusão de presos e apenados (AMAPÁ, LEI nº 0609, 2001).
A partir dessa época, a estrutura básica do Complexo Penitenciário do Amapá, passou a se organizar através da,
I-DIREÇÃO SUPERIOR. Diretor; II-UNIDADE DE ASSESSORAMENTO. Gabinete, Corregedoria, Assessoria Jurídica e Comissão Permanente de Licitação; III-UNIDADE DE EXECUÇÃO PROGRAMÁTICA. Coordenador de Planejamento e Apoio Administrativo, Unidades de (Orçamento e Projetos, Pesquisa e Estatística, Apoio Administrativo, Serviços Gerais, Finanças, Nutrição, Engenharia Prisional, Informática; Coordenadoria de Tratamento Penal. Unidades de Assistências à Saúde, Material, Social e Psicológica, Escolar e Profissionalizante, Jurídica, Educação Social, Trabalho e Produção, Formação e Pesquisa; Coordenadoria de Execução Penal. Unidade de Identificação Cadastral, Controle Legal e Movimentação Prisional; Coordenadoria de Segurança. Unidade de Operações de Segurança; Coordenadoria da Penitenciária Masculina. Unidade de Vigilância e Disciplina; Coordenadoria da Penitenciária Feminina; Coordenadoria da Colônia Penal; Coordenadoria do Centro de Custódia, Unidade do Centro de Custódia do Interior e Casa do Albergado (AMAPÁ, LEI 0609, 2001, Art. 2º ).
Neste artigo, nos propomos a analisar a atuação profissional do educador social penitenciário, considerando que suas atribuições são vinculadas a coordenadoria de tratamento penal do atual Instituto de Administração Penitenciária do Amapá - IAPEN/AP e as unidades específicas que compõe a unidade de execução programática. Sabe-se que pela Lei nº 0609 de 06 de julho de 2001, preconizou-se as atribuições do grupo penitenciário, entretanto, considerando o fato de que esses servidores públicos, na estatística do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (2009, p. 1) não aparecem no quantitativo dos "funcionários públicos na ativa" com a designação de "educador social penitenciário", então, levantamos a questão: De que forma o educador social penitenciário desenvolve a sua atuação profissional no sistema penitenciário amapaense, a fim de contribuir para a redução de conflitos no ambiente carcerário, cumprimento de sentenças criminais e medidas de segurança?

Pedagogia Social. Bases teóricas e metodológicas da pesquisa
A pedagogia social apresenta concepções, conceitos e atuações diferenciadas em diversos países, resultante de suas histórias sociais e políticas, as quais sustentam paradigmas e áreas de intervenções e atendimento, que se constitui como marco referencial para as necessidades emergidas no seio de estruturas culturais e econômicas, favoreceram o aparecimento de práticas de educação não formal, com intervenções de diferentes naturezas.
Neste sentido, Machado (2002) afirma que:
As classificações têm auxiliado na busca do objeto da pedagogia social, por conter indicações sociais próprias da atualidade em que se consolida a necessidade de educação permanente, em que se discutem as relações entre educação formal, não formal e informal, em que se propõe que a escola possa ser entendida como educação comunitária, em que surgem novas formas de instituições educativas, em que os meios de comunicação de massa, já ao alcance de quase todos os segmentos da população, passam estar presentes também na educação e, mais, no momento em que a própria cidade é vista como meio de educação, com a evolução dos estudos sobre cidades educadoras.
Contudo, mesmo sendo regulamentada como profissão em alguns países do continente europeu e da América Latina a pedagogia social é pouco conhecida. No caso do Brasil, se caracteriza de forma peculiar por marcada ênfase assistencialista do início das intervenções, cede espaço a reivindicações por delineamento de políticas sociais públicas para setores específicos. Assim, a sociedade civil passa a participar desse debate, ainda que, de maneira restrita e a assume responsabilidades práticas (MACHADO, 2008). Desse modo, consideram-se como objetos da pedagogia social, dois campos: socialização do indivíduo que poderá ser desenvolvida por pais, professores e pela família. Esta socialização é entendida como a ciência pedagógica que irá proporcionar a integração dos sujeitos. O segundo está relacionado ao trabalho social pedagógico, direcionado a atender as necessidades de grupos de indivíduos e realizado por equipe multidisciplinar da qual o educador social faz parte.
[...] a Pedagogia Social está presente em intervenções de diferentes naturezas. Destacam-se os modelos de educação popular com a abordagem teórica desenvolvida por Paulo Freire para a educação de adultos, na década de 60. A pedagogia de Freire difundiu-se e influenciou nas campanhas de alfabetização e na educação em geral. Com uma pedagogia "não autoritária", a pedagogia do oprimido tem como objetivo central a "conscientização" como condição para transformação social, implicações políticas que transcendem a educação escolar registra Torres (1992). Paulo Freire é considerado o representante nacional da pedagogia social e sua obra é reconhecida internacionalmente (MACHADO, 2008, p. 6).
Neste contexto, a pedagogia social é uma das áreas no campo do trabalho social, envolvendo especialidades como,
01- atenção à infância com problemas (ambiente familiar desestruturado, abandono...); 02- atenção à adolescência (orientação pessoal e profissional, tempo livre, férias...); 03- atenção à juventude (política de juventude, associacionismo, voluntariado, atividades, emprego...); 04- atenção à família em suas necessidades existenciais (famílias desestruturadas, adoção, separações...); 05- atenção à terceira idade; 06- atenção aos deficientes físicos, sensoriais e psíquicos; 07- pedagogia hospitalar; 08- prevenção e tratamento das toxicomanias e do alcoolismo; 09- prevenção da delinqüência juvenil. (reeducação dos dissocializados); 10- atenção a grupos marginalizados (imigrantes, minorias étnicas, presos e ex presidiários); 11- promoção da condição social da mulher; 12- educação de adultos; 13- animação sócio-cultural (QUINTANA apud MACHADO, 2008, p. 8).
Assim, o educador social desenvolve suas atividades profissionais com diferentes grupos de indivíduos. Destacamos que neste artigo nos detemos a analisar a atuação profissional do educador social penitenciário no sistema penitenciário amapaense. A descrição do objeto de estudo foi construída com o cruzamento de dados oficiais do Sistema Integrado de Informação Penitenciária, legislação local do sistema penitenciário amapaense, estudos da referida área e realização de entrevistas semi-estruturada com duas educadoras sociais penitenciárias a partir de orientações metodológica da pesquisa qualitativa, de caráter exploratório (ALBERTI, 2005); (GÜNTHER, 2006). Primeiramente, estabelecemos contato prévio com cinco educadores sociais penitenciários por meio de correio eletrônico, a fim de convidá-los a participar como entrevistados na pesquisa. Com o recebimento das respostas do roteiro de entrevistas, outros contatos virtuais ocorreram em função da necessidade de esclarecimentos a respeito de algumas respostas. Na etapa seguinte, realizamos as transcrições das entrevistas na íntegra para o corpo do artigo, sendo a conferência dos dados feita pelos entrevistados na conclusão do documento produzido. Ressaltamos que registramos os nomes verdadeiros dos entrevistados, conforme autorização recebida por correio eletrônico. Conforme dados estatísticos mais recentes, sabe-se que,
O Brasil administra um dos dez maiores sistemas penitenciário do mundo, com quase 500.000 pessoas encarceradas ao final de 2009, distribuídos em mais de 1.500 unidades prisionais, cerca de 200.000 mandatos de prisão não cumpridos e uma taxa de reincidência imprecisa, mas certamente acima de 50% (SILVA, 2009, p. 9).
Desse quantitativo de quase quinhentas mil pessoas presas ou que estão internadas em estabelecimentos penais, 1927 (um mil, novecentos e vinte e sete), correspondia à população carcerária do sistema penitenciário amapaense, conforme dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciária (2009, Junho). Conforme o Formulário Categoria e Indicadores Preenchidos do Amapá se registrou que o quantitativo de servidores penitenciários em pleno exercício da função até esse período foi de 562 (quinhentos e sessenta e dois) funcionários, divididos entre: apoio administrativo (100), agente penitenciário (360), enfermeiros ( 1 ), auxiliar e técnico de enfermagem ( 0 ), psicólogos ( 2 ), dentistas ( 2 ), assistentes sociais ( 1 ), advogados ( 1 ), médicos - clínicos gerais ( 1 ), médicos -ginecológicos ( 0 ), médicos psiquiatras ( 0 ), pedagogos ( 1 ), professores (16 ), terapeutas ( 6 ), policial civil em atividade nos estabelecimentos penitenciários ( 6 ), policial militar em atividade nos estabelecimentos penitenciários (65), funcionários terceirizados, exclusivo para tratamento penal ( 0 ). E o registro da atuação profissional do educador social penitenciário?

Atuação profissional do educador social penitenciário. Transcrição de entrevistas e registros fotográficos
As educadoras sociais penitenciárias, Maria José Souza Almeida e Heluana Quintas de Lima (2010), servidoras públicas do quadro civil do estado, desenvolvem suas funções no Instituto de Administração Penitenciária do Amapá, respectivamente, com sete e seis anos de tempo de serviço. Estas servidoras do grupo penitenciário participaram como entrevistadas desta pesquisa. A primeira é chefe da Unidade de Assistência Escolar e Profissionalizante, vinculado a Coordenadoria de Tratamento Penal, bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal do Amapá - UNIFAP e a segunda prestou o concurso público para o grupo penitenciário em nível médio. Apresentamos a seguir a transcrição integral de suas entrevistas:
1ª Entrevista: Heluana Quintas de Lima, 26 anos, concursada em 2003, ao cargo de educador social penitenciário
Descrição das atividades desenvolvidas pelo grupo dos educadores sociais penitenciários no IAPEN:
Os educadores penitenciários em sua maioria desenvolvem atividades administrativas em virtude do déficit de profissionais desta área, em especial, no Sistema Penitenciário do Estado. Isso acontece também muito em virtude das dificuldades de posicionar a categoria em acordo com as suas atribuições previstas em editais, tendo em vista, que essa função é bastante nova no Estado. Os cursos de capacitação iniciais não resistiram às necessidades emergenciais do Instituto, provenientes da carência na área administrativa, resultando numa diluição da identidade funcional destes servidores. Entretanto, existem ainda educadores que desempenham atividades como as previstas em edital. Os lotados na Penitenciária Feminina, por exemplo, fazem o serviço de acompanhamento da pena e produzem relatórios mensais acerca do envolvimento das presas e internas nas atividades ressocializantes propostas, tais como: oficina de costura, artesanato, escola, festividades e outras atividades.
Contribuição da função do educador social penitenciário para a administração penitenciária ou coordenadoria de tratamento penal:
Os educadores penitenciários contribuem com a administração assumindo funções em áreas onde existe carência de servidores: assistentes administrativos, por exemplo. Na coordenadoria de tratamento penal - COTRAP, alguns fazem acompanhamento de projetos como: marcenaria, artesanato e fabricação de garrafas pet. A maioria ocupa cargos comissionados e uma parte está destinada aos serviços administrativos já citados. No meu caso, elaboro projetos mediante demanda expedida pela Coordenação, embora esta função direcione-se aos Educadores Penitenciários de Nível Superior e eu seja concursada como nível médio (LIMA, 2010).
E a contribuição do educador social penitenciário para a população carcerária:
Não entendi a pergunta. Fiquei em dúvida se seria: a contribuição caso estivessem em suas atividades previstas em edital (o ideal) ou a contribuição dos educadores atualmente (o real). No relato que segue é possível compreender a contribuição funcional do Educador Penitenciário em duas perspectivas: a real e a ideal. Recentemente, ao realizar as matrículas dos internos para o Exame de Massa que ocorre todos os anos fui abordada por dois deles, ambos do regime fechado. Eles relataram as dificuldades em se comunicarem com os agentes penitenciários e alguns exemplos de truculência responsáveis por atitudes mais reativas por parte dos internos. Ouvi também, eles lamentarem a ausência do educador penitenciário quando destes episódios e a necessidade de tê-lo por perto a fim de inibir este tipo de conflito e mediar o relacionamento seja entre interno/agente, seja entre interno/administração. Não obstante, ressaltaram que a euforia dos internos quando nos recebem nos pavilhões existe muito em virtude de relacionar a figura do educador penitenciário, com alguma oportunidade e que se mais vezes e em maior número operássemos, neste sentido, seria isso sinônimo de mais oportunidades. (LIMA, 2010).
2ª Entrevista: Maria José Sousa Almeida, 49 anos, concursada em 2001, no cargo de educador social penitenciário
Descrição das atividades desenvolvidas pelo grupo dos educadores sociais penitenciários no IAPEN:
A reinserção e/ou ressocialização dos cidadãos privados de liberdade e ainda dos egressos oriundos das instituições penitenciárias é de competência do educador penitenciário, que garantirá educação informal e profissionalizante, além dos demais direitos preconizados na Lei de Execução Penal - LEP. Assim, somos responsáveis pelo tratamento penitenciário a fim de desenvolver no educando uma atitude de apreço por si mesmo e de responsabilidade individual e social. Esta atividade acontece com ações planejadas pedagogicamente de forma sistematizada através de planos bimestrais, semestrais e anuais, enfatizando os aspectos: Resgate dos valores ético-sociais (convivência em grupo, respeito e outros); Dinâmicas de grupos; Palestras com temas diversificados; Campanhas de higiene corporal, de vacinação, de prevenção em DST'S e AIDS; Atendimento a saúde (levantamento da necessidade e encaminhamento aos especialistas); Levantamento e encaminhamento a assistência jurídica (serviço jurídico interno e de defensores), a assistência à saúde (médica, farmacêutica e odontológica), à assistência material (alimentação, vestuário e instalações higiênicas), da assistência educacional (matrícula escolar, Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, acompanhamento junto a Escola Estadual São José, Participante ativo na comissão técnica de classificação; Atividades esportivas e de lazer (técnicas de alongamento, respiração, torneios de futebol e atividades livres); Atividades religiosas (celebrações eucarísticas, cultos ecumênicos, casamentos, batizados de dependentes, eventos religiosos e procissões); Elaboração de projetos para captação de recursos financeiros junto ao governo federal e estadual que visem a ressocialização dos apenados e a qualificação e aperfeiçoamento dos servidores penitenciários (escola penitenciária); Busca de parcerias para o tratamento penitenciário e a estruturação do sistema penitenciário local, bem como a qualificação profissional dos servidores penitenciários; Atendimento psicossocial (fazer levantamento da procura espontânea e encaminhar aos especialistas); Elaboração do perfil de cada custodiado (banco de dados com habilidades e competências); encaminhamento para trabalho remunerado, de acordo com sua habilidades, elaboração e revisão de normatizações.
Contribuição da função do educador social penitenciário para a administração penitenciária ou coordenadoria de tratamento penal:
O trabalho do educador penitenciário contribui de forma a suprir as demandas com relação ao atendimento nos pavilhões ou no prédio da administração e dos internos que precisem dos mesmos, nas áreas da saúde, social, educacional, jurídico, religioso e lazer. É o educador penitenciário o primeiro contato para atendimento em todas as unidades do Instituto de Administração Penitenciária do Amapá - IAPEN. Como agente ressocializador contribui coordenando a demanda de atendimentos administrativos.
E a contribuição da função do educador social penitenciário para a população carcerária:
Nos últimos anos o que tem norteado a discussão da ressocialização, são os debates em torno da humanização nos presídios, com ênfase nos projetos de profissionalização e educação dos detentos. Norteada por este foco, e determinada em cumprir a lei de execução penal em relação ao tratamento penitenciário, assim, o serviço penitenciário teria responsáveis diretos pela ressocialização e reinserção social. Esses responsáveis são os educadores penitenciários, que recebem na sua capacitação um estudo específico em torno dos princípios vinculados ao respeito e dignidade humana, através do direito e processo penal, lei de execuções penais, ética funcional, psicologia das relações interpessoais e planejamento, servindo de base fundamental não só do trabalho específico do educador penitenciário, mas para a sua formação integral como cidadão. Diante deste quadro, a contribuição do educador penitenciário passa pela humanização do tratamento do apenado (ALMEIDA, 2010).
Apresentamos alguns registros fotográficos da atuação do educador social penitenciário, em atividades realizadas no período de 2006 a 2008.

Análise dos resultados com base em entrevistas
Com base nas transcrições das entrevistas, é possível compreender que a atuação do educador social penitenciário no Instituto de Administração Penitenciário do Amapá, é desenvolvida a partir da demanda de atividades da coordenadoria de tratamento penal, pois este funcionário executa as suas funções específicas e também atua como apoio na administração penitenciária por motivo de reduzido quadro de servidores públicos lotados nesse setor. Em linhas gerais, o educador social penitenciário interage diretamente com a população carcerária para a efetivação das assistências e operacionalizar o acesso ao trabalho que as pessoas que estão cumprindo pena e medidas de segurança têm direito. Nesse sentido, é interessante observar que o discurso de ambas as entrevistadas esteve sustentado com base em conceitos da sociologia e pedagogia social, pois se sabe que o conceito "ressocialização" que foi bastante mencionado ao longo das entrevistas, é uma parte do processo contínuo de socialização que se estende pelo curso de vida, e implica em aprender, e às vezes, desaprender vários papéis, os quais para adultos podem encobrir uma larga faixa de pessoas, inclusive de pessoas que foram internadas ou condenadas a cumprir penas em prisões (JOHNSON, 1997).
A ressocialização, de fato e de direito, dentro do sistema prisional, com políticas de bem estar social precisam ser implementadas para esta parcela da população brasileira. Os detentos, em sua maioria, são originários do mais baixo extrato social, onde o estudo, a educação, a formação moral e ética, na maior parte das vezes, é simplesmente ignorado, de modo que o esforço empregado pelo poder público haverá de repercutir, resultando no crescimento do próprio detento e de seu círculo familiar, inclusive no incentivo para a adequada formação de seus filhos. Esse caminho tem urgência e precisa ser seguido, dentro da ética, da moralidade, do profissionalismo de todos os servidores do sistema prisional. Assim, existe a possibilidade, de o interno vislumbrar um novo horizonte a sua frente, mas também é necessário que, as políticas públicas nas áreas de: saúde, educação, lazer, segurança pública e trabalho funcionem, fora dos muros com a implementação de políticas que erradiquem a miséria e, conseqüentemente, a distribuição eqüitativa dos benefícios sociais para que os mesmos não venham a reincidir no crime. Também é necessário que haja estrutura para o desenvolvimento do trabalho do educador penitenciário, como: espaço físico, recursos materiais e financeiros. Dessa forma, estará se cumprindo o art. 83 da Lei de Execução Penal, diz que " O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva". Com todo o aparato necessário e servidores compromissados a ressocialização só tem um caminho: a diminuição do índice de reincidentes (ALMEIDA, 2010).
Por esse fragmento de entrevista, se constata que há uma distância entre a efetivação da política penitenciária, no caso do sistema penitenciário amapaense e políticas públicas para os mais distintos segmentos da sociedade amapaense, o que inclui a demanda dos egressos penitenciários, suas famílias e filhos e para a atuação profissional dos servidores penitenciários, além de ser um instrumento para minimizar a reincidência dos crimes.
Retomando, a questão norteadora deste trabalho, cabe ressaltar que do quantitativo de 65 (sessenta e cinco) educadores sociais penitenciários, que estão em pleno exercício da atuação profissional na atualidade, no sistema penitenciário amapaense, constatou-se que na prática, o mesmo executa a função de outros funcionários, e na estatística do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias no período de 2008 até 2009, o seu registro se encontra como parte dos servidores públicos que compõe a categoria de "apoio administrativo", por outro lado, o referido servidor penitenciário também trabalha na sua "atuação específica" a qual prestou concurso público. Em outras palavras, atendendo as demandas que são definidas como prioridades pela coordenação do tratamento penal e administração penitenciária, com finalidade de acompanhar a execução de penas e medidas de segurança da população carcerária, é constituída por um mil novecentos e vinte e sete custodiados entre homens e mulheres pelo sistema penitenciário amapaense, nos regimes provisório, fechado, semi-aberto e aberto (AMAPÁ, IFOPEN, 2009).
Assim, o quantitativo de servidores penitenciários, é formado pelo corpo de funcionários de área muldisciplinar, como das ciências humanas, ciências biológicas, ciências da saúde e outras, e com formação em nível médio e superior. Nesse quadro de funcionários, temos a atuação profissional do educador social penitenciário, que é um cargo público do quadro de servidores civis do Estado do Amapá, instituído pela Lei nº 0609 de 06 de julho de 2001, o qual seu alicerce teórico-metodológico se sustenta na pedagogia social e execução penal, visando a chegada do período de integração social da população carcerária a sociedade amapaense, e por conseguinte, ao período em que pais/mães passam a assumir a gestão de suas famílias e acompanhar a vida de seus filhos e a própria vida livre. Com efeito, a prática do tratamento penitenciário tem sido discutida desde os debates que surgiram na ciência penitenciária, o qual exigiu o aperfeiçoamento dos métodos de tratamento às pessoas que cometeram crimes, o que em nosso tempo, perpassa por questões no contexto da pedagogia social, direitos humanos e outras áreas.

Referências
ALBERTI, V. Manual de História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005.
ALMEIDA, M. J. S. Entrevista com educadora social penitenciária. São Paulo/Macapá, Março de 2010. (Realizada pelo endereço eletrônico).
AMAPÁ. Lei nº 0069/01. Estabelece a transformação do Complexo Penitenciário em autarquia vinculada indiretamente à Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública. Macapá: Impressa Oficial, 2001.
AMAPÁ. Lei nº 0692/02. Estabelece as normas de execução penal no Estado do Amapá. Macapá: Impressa Oficial, 2002.
BARRETO, J. C.; BAGLI, M. F. (Org's). Plano diretor do sistema penitenciário amapaense. Macapá: MJ / DEPEN / IAPEN, 2007.
BRASIL. Lei nº 7.210/84. Institui a Lei de Execução Penal. In: GOMES, L. F., (Org.). Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, V. 2.
CLEMENTE, L.; ALMEIDA, R. R.; PASSOS, L. N. S. (Re)socialização de Apenados no Estado do Amapá: O Papel Social da Escola Estadual São José. De 2005 a 2007. (Monografia de Especialização em Gestão do Trabalho Pedagógico, Direção, Orientação e Supervisão). Instituto Brasileiro de Pós- Graduação e Extensão, Macapá: 2008.
ESCOLA ESTADUAL SÃO JOSÉ. Diretório Iconográfico de Assistência Educacional. Macapá, EESJ, 2006 a 2008. (Arquivo Escolar: Pasta Digital).
JOHNSON, A. G. Dicionário de Sociologia: Guia prático da linguagem sociológica. Trad. Ruy Jugmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
GÜNTHER, H. Pesquisa Qualitativa Versus Pesquisa Quantitativa: Esta é a questão? Psicologia: Teoria e Pesquisa. Mai-Ago. 2006, v. 22, n. 2, 2006, p. 201-210.
LIMA, H. Q. Entrevista com educadora social penitenciária. São Paulo/Macapá, Março de 2010. (Realizada pelo endereço eletrônico).
MACHADO, E. M. A pedagogia social: diálogos e fronteiras com a educação não-formal e educação sócio comunitária. Disponível em: http://www.am.unisal.br/pos/stricto-educacao/pdf/mesa_8_texto_evelcy.pdf, Acesso: 05 mar. 2010.
SISTEMA INTEGRADO DE INFORMAÇÃO PENITENCIÁRIA. Relatórios Estatísticos - Analíticos do sistema prisional do Estado do Amapá. Brasília: Ministério da Justiça / Departamento Nacional Penitenciário, 2008 a 2009. Disponível em: http://portal.mj.gov.br, Acesso: 05 Mar. 2010.
SILVA, R. Fundamentos teóricos e metodológicos da pedagogia social no Brasil (versão revisada). In: I Congresso Internacional de Pedagogia Social, 1, 2006, Proceedings online. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br, Acesso: 05 Mar. 2010.
VASQUEZ, E. L. Sociedade Cativa. Entre Cultura Escolar e Cultura Prisional: Uma incursão pela ciência penitenciária. (Dissertação de Mestrado em História da Ciência). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2008.
 

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Este mundo da injustiça globalizada

Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002

José Saramago

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda. Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveriahaver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, erasurpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e osmesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem aquem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantesdepois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado detocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês."Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria como ver e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade,saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos dabalança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre,uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto erigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espíritocomo indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida,sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanaçãoespontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludívelimperativo moral, o respeito pelo
direito a ser 
que a cada ser humano assiste.Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também paraassinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, nãotão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, àscheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente sesilencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, apropriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula,poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, osprogramas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda,anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundoactual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aqueladignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos emgeral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacionalno seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hojenos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo deglobalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica. E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governodo povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fécomprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo emborauma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, seráprecisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar àconsecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de quefosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária,escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, comose para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros"comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a essepoder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada,serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidasminorias eternamente descontentes...Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial,sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existênciadigna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simplesseres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo. Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

18/03/2002

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

“O socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem”

Miguel Urbano Rodrigues acredita que um socialismo humanizado abrirá ao homem a possibilidade de desenvolver todas as suas potencialidades e de se realizar integralmente, liberto das forças que o oprimem há milênios
 01/02/2012
Nilton Viana
da Redação

“O mundo está num caos em conseqüência da crise global do capitalismo”. Assim, o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues define o atual cenário mundial. Para ele, a crise atual do capitalismo é estrutural. Segundo o escritor, a crise, iniciada nos EUA, alastrou à Europa e as medidas tomadas por Bush, primeiro, e Obama depois, em vez de atenuarem a crise, agravaram-na. “Os EUA, polo do sistema que oprime grande parte da humanidade, mostram-se incapazes de controlar os colossais défices do orçamento e da balança comercial”.


Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Urbano diz que o grande capital pouco alterou as práticas criminosas e fraudulentas que originaram a crise. Para ele, a fatura é paga pelos trabalhadores que tiveram os seus salários brutalmente diminuídos e suprimidas conquistas históricas. Taxativo, afirma que as guerras fazem parte das alternativas imperialistas e que as agressões militares são sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito mundial. Embora avesso a profecias, Urbano acredita que o socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo com as suas tradições, cultura e peculiaridades de cada uma.

Brasil de Fato – O mundo vive hoje uma de suas maiores crises financeiras. Que avaliação o senhor faz dessa crise que tem se agudizado principalmente nos Estados Unidos e na Europa?
Miguel Urbano Rodrigues – O mundo está num caos em conseqüência da crise global do capitalismo. É uma crise estrutural. Nos países centrais a teoria da acumulação não funciona mais de acordo com a lógica do capitalismo e, na busca de uma solução, os Estados Unidos, polo hegemônico do sistema, multiplicam as guerras contra países do Terceiro Mundo para saquear os seus recursos naturais.

As medidas tomadas pelos governos, a seu ver, resolvem os graves problemas dessa crise? E o agravamento dessa crise, que é estrutural do capitalismo, a seu ver, irá enfraquecer ainda mais o imperialismo?
A crise, iniciada nos EUA, alastrou à Europa. As medidas tomadas por Bush, primeiro, e Obama depois, em vez de atenuarem a crise, agravaram-na. O objetivo foi salvar a banca, as seguradoras e grandes empresas à beira da falência como as da indústria do automóvel. Mais de mil bilhões foram investidos pelo Estado Federal nessa estratégia com resultados medíocres. Um volume gigantesco de dinheiro (os dólares emitidos) foi encaminhado para os responsáveis pela crise, enquanto a principal vítima, os trabalhadores estadunidenses, foi esquecida. Centenas de milhares de famílias perderam as suas casas, e o desemprego aumentou muito em consequência de despedimentos maciços. O grande capital pouco alterou as práticas criminosas e fraudulentas que originaram a crise. É significativo que o atual secretário do Tesouro, Thimothy Geithner, que goza da total confiança de Obama, seja um homem de Walt Street comprometido com as políticas de desregulamentação que tiveram efeitos funestos.
Na União Europeia, que é um gigante econômico mas um anão político, a estratégia adotada para enfrentar a crise foi diferente. A fragilidade do euro é inseparável do fato de o dólar ser, na prática, a moeda universal cujas emissões são incontroláveis. O Banco Central Europeu não pode imitar Washington.
A crise atingiu primeiro países periféricos, como a Irlanda, a Grécia e Portugal. A Alemanha e a França, que põem e dispõem em Bruxelas, sobrepondo-se à Comissão Europeia e às instituições comunitárias em geral, impuseram a esses três países “políticas de austeridade” orientadas para a redução drástica dos défices orçamentais e a salvação da banca. A fatura foi paga pelos trabalhadores que tiveram os seus salários brutalmente diminuídos, suprimidas conquistas históricas como os subsídios de Natal e de férias, enquanto setores sociais como a Educação e a Saúde eram duramente golpeados.
A Itália e a Espanha encontram-se também à beira de um colapso, na iminência de pedirem à Comissão Europeia e ao FMI uma “ajuda” que agravaria extraordinariamente as condições de vida da classe trabalhadora. Na Espanha o desemprego ultrapassa já os 21%.
A chanceler Merckel e o presidente Sarkosy estão, porém, conscientes de que os efeitos da crise atingem também perigosamente os seus países. O Reino Unido, fora da zona euro, não é exceção; teme igualmente o agravamento da situação.
Neste contexto o futuro do euro e da própria União Europeia apresentam-se sombrios. São a cada semana mais numerosos os políticos e economistas que preconizam a saída do euro de alguns países.
Obviamente, as tensões sociais na contestação ao sistema assumem características explosivas, sobretudo na Grécia, em Portugal, na Espanha e na Itália.

Os EUA e as grandes potências da União Europeia puseram fim às guerras interimperialistas, substituindo-as por um imperialismo coletivo. O senhor poderia explicar como têm se dado guerras?
O imperialismo evoluiu nas últimas décadas para responder à crise do capitalismo. As guerras interimperialistas que na primeira metade do século 20 devastaram a Europa e a Ásia não vão repetir-se; remotíssima essa hipótese. As contradições entre as potências imperialistas mantêm-se. Mas não são hoje antagônicas.
Um imperialismo coletivo – a expressão é do argentino Cláudio Katz – substituiu o tradicional.
Os seus contornos principiaram a definir-se na primeira guerra do Golfo e tornaram-se nítidos com as agressões aos povos do Afeganistão, do Iraque e da Líbia.
Hegemonizada pelos Estados Unidos, formou-se uma aliança tática de que participam o Reino Unido, a Alemanha e a França, além de sócios menores como a Itália, a Espanha, o Canadá e a Austrália, inclusive países da Europa do Leste, ex-socialistas.


Então é esse bloco imperialista que comanda o mundo hoje e fomenta as guerras?
A superioridade militar e tecnológica do bloco imperialista permite-lhe, com um custo de vidas reduzido, atacar e ocupar países do Terceiro Mundo para saquear os seus recursos naturais, nomeadamente os petrolíferos.
Isso ocorreu já no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Atinge agora a África com a intervenção militar dos EUA em Uganda. O Africa Comand, por ora instalado na Alemanha, anuncia a criação de um exército permanente para o continente africano, previsto para 100 mil homens.
Obama já afirmou que a “ajuda militar” (leia-se intervenção) ao Sudão do Sul, ao Congo e à República Centro Africana depende de um simples pedido a Washington.

As guerras têm sido as saídas para o capitalismo. Com essa crise, teremos novas guerras?
As agressões militares são sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito mundial. A receita tem sido repetida com algum êxito. Para impedir a solidariedade internacional com os povos a serem alvo de agressões previamente planejadas e semear a confusão e a dúvida em milhões de pessoas nos países desenvolvidos, os Estados Unidos e seus aliados promovem campanhas de satanização de líderes apresentados como ditadores implacáveis, ou terroristas que ameaçam a humanidade. A invasão do Afeganistão foi precedida da diabolização de Bin Laden – definido como inimigo número 1 dos EUA – e a guerra do Iraque, da satanização de Sadam Hussein. No caso da Líbia, Kadafi , que um ano antes era recebido com todas as honras em Paris, Londres, Roma e Madri, e tratado com deferência por Obama, passou de repente a ser apresentado como um monstro sanguinário que submetia o seu povo a uma opressão cruel. O desfecho é conhecido: a aprovação pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) de uma “zona de exclusão aérea” para “proteger as populações”. Logo depois começaram os bombardeios de uma guerra que durou sete meses, definida como “intervenção humanitária”. Sabe-se hoje que a “insurreição” de Benghasi foi preparada com meses de antecedência por comandos britânicos e agentes da CIA, dos serviços secretos britânicos e franceses, e da Mossad israelense.

Como o senhor avalia as consequências dessa crise para os países pobres, do chamado Terceiro Mundo?
O custo destas agressões imperiais para os países por elas atingidos tem sido altíssimo. Não há estatísticas credíveis sobre as destruições de infraestruturas e o saque de bens culturais e sobre o número de mortos civis resultante das guerras no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Mas o saldo dessa orgia de barbárie ocidental ascende – segundo grandes jornais da Europa e dos EUA – a centenas de milhares.
A satanização de Bachar Assad e do seu exército gera o temor de que a intervenção imperial na Síria esteja iminente. Mas o grande “inimigo” a abater é o Irã. Motivo: é o único entre os grandes países muçulmanos que não se submete às exigências do imperialismo.
Israel ameaça atacar e incita os EUA a bombardear as instalações nucleares de Natanz. Obama conseguiu que o Conselho de Segurança aprovasse vários pacotes de sanções ao Irã, mas o Pentágono hesita em envolver-se numa nova guerra contra um país que dispõe de uma capacidade de retaliar ponderável. A invasão terrestre está excluída e o bombardeio das instalações subterrâneas de Natanz com armas convencionais poderia, na opinião dos especialistas, ser ineficaz.
O balanço das guerras do Afeganistão e do Iraque não é animador para a Casa Branca. O presidente Obama ao anunciar a retirada das últimas tropas estadunidenses do Iraque sabe que mentiu aos seus compatriotas. Num discurso eleitoreiro, triunfalista, que pode ser qualificado de modelo de hipocrisia, afirmou que os Estados Unidos alcançaram ali os objetivos previamente fixados. Na realidade a resistência prossegue e dezenas de milhares de mercenários substituíram as forças do Exercito e da Força Aérea. Mas qualquer previsão sobre futuras agressões é desaconselhável. Tudo se pode esperar da engrenagem do sistema imperial, comandado por um presidente elogiado como humanista e defensor da Paz quando, na realidade, a sua estratégia de dominação planetária configura uma ameaça sem precedentes à humanidade.


Como o senhor avalia o papel de organismos como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e a OMC?
O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) são instrumentos do sistema imperial, criados para o servir. Quanto à Organização da Nações Unidas (ONU), há que estabelecer a distinção entre a Assembleia-Geral e o seu órgão executivo, o Conselho de Segurança. A primeira, representativa de quase 200 Estados, é uma instituição democrática, mas as suas resoluções somente produzem efeito se referendadas pelo Conselho de Segurança. Ora este, manipulado pelos EUA, com o apoio do Reino Unido e da França, funciona há muito como instrumento da vontade dos três, até porque a Rússia e a China, os outros membros permanentes, não têm exercido o direito de veto, com raríssimas exceções.

Como o senhor vê os protestos e as mobilizações que têm ocorrido em vários países, na chamada Primavera Árabe, na Grécia e nos Estados Unidos? 
Em primeiro lugar é útil esclarecer que a expressão “Primavera Árabe”, muito divulgada pelos governos ocidentais e pela mídia é, por generalizante, fonte de confusão. Os levantamentos populares no Egito e na Tunísia foram espontâneos e inesperados para o imperialismo. Triunfaram ambos, provocando a queda de Hosni Mubarak e de Ben Ali.
No caso da Tunisia, a vitória de um partido islamista moderado nas recentes eleições não representa um problema para o imperialismo. Tudo indica que as relações dos Estados Unidos e os grandes da União Europeia com Tunis serão cordiais como eram com o governo da ditadura.
No Egito tudo permanece em aberto, porque o povo não aceitou o governo dos militares comprometidos com o imperialismo e continua a exigir a sua renúncia.
No Bahrein e no Iémen não houve qualquer “primavera”. Washington e os seus aliados abstiveram-se de criticar os regimes que eram alvo dos protestos populares. No tocante ao Bahrein, base da IV Frota da US Navy, os EUA manobraram de modo a que tropas sauditas e dos Emirados do Golfo invadissem o pequeno país e reprimissem com violência as manifestações.
Os protestos populares na Europa e nos Estados Unidos contra regimes de fachada democrática, que na prática são ditaduras da burguesia e do grande capital apresentam também características muito diferenciadas.
O acampamento inicial dos indignados em Madri funcionou como incentivo a movimentos similares em dezenas de cidades da Europa e dos EUA. Esses jovens sabem o que rejeitam e os motiva a lutar, mas não definem com um mínimo de precisão uma alternativa ao capitalismo.
Inspirado pelos espanhóis, o acampamento de Manhattan, realizado sob o lema “Ocupem Wall Street”, alarmou a engrenagem do poder. A solidariedade de intelectuais progressistas como Noam Chomsky, Michael Moore e James Petras contribuiu para que o movimento alastrasse a muitas cidades.

No caso estadunidense, os protestos foram uma surpressa? Como o senhor analisa a reação do governo dos Estados Unidos a estas manifestações? 
A reação da administração Obama foi inicialmente de surpresa. Mas perante a amplitude assumida pelo movimento recorreu a uma repressão brutal. As conseqüências dessa opção foram inversas das esperadas pelo governo. Os acontecimentos de Oakland, na Costa do Pacífico, demonstraram que a contestação é agora dirigida contra a engrenagem capitalista responsável pela crise que afeta 99% dos cidadãos e beneficia a apenas 1% , tema de um slogan que já corre pelo país. A profundidade do descontentamento popular é transparente. Uma certeza: alarma Obama e Wall Street.
Paralelamente aos protestos espontâneos referidos, desenvolvem-se na Europa outros, promovidos pelos sindicatos e por partidos revolucionários.
A greve geral de novembro, em Portugal, e as grandes manifestações de protesto ali realizadas traduziram não só a condenação de políticas de direita impostas por Bruxelas e a submissão ao imperialismo, com perda de soberania, como a exigência de uma política progressista incompatível com a engrenagem capitalista.
É sobretudo na Grécia que as massas exprimem em gigantescas e permanentes concentrações populares a sua determinação de lutarem contra o sistema capitalista até a sua destruição Quinze greves gerais num ano, empreendidas sob a direção de uma Frente Popular na qual o papel do Partido Comunista da Grécia é fundamental, os trabalhadores da pátria de Péricles batem-se hoje com heroísmo pela humanidade inteira.

Frente a esse cenário de crise mundial do capitalismo, qual a alternativa para os povos? Como o senhor vê o futuro da Humanidade?
A única alternativa credível à barbárie capitalista é o socialismo. O capitalismo conseguiu superar desde o século 19 sucessivas crises. Desta vez, porém, enfrenta uma crise estrutural para a qual não encontra soluções. Os EUA, polo do sistema que oprime grande parte da humanidade, mostram se incapaze de controlar os colossais défices do orçamento e da balança comercial. Forjaram um tipo de contracultura monstruosa que pretendem impor a todo o planeta. Mas o declínio do seu poder é transparente e irreversível.
Por si só, as gigantescas reservas de dólares e os títulos do Tesouro norte-americano que a China e o Japão acumularam, estimados aproximadamente em dois mil bilhões de dólares, são esclarecedores da fragilidade da economia dos Estados Unidos, um colosso com pés de barro, hoje o país mais endividado do mundo.
Sou avesso a profecias de qualquer natureza. Mas creio que o socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo com as suas tradições, cultura e peculiaridades de cada uma – um socialismo humanizado que abrirá ao homem a possibilidade de desenvolver todas as suas potencialidades e de se realizar integralmente, liberto das forças que o oprimem há milênios.


Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português. Redator e chefe de redação de jornais em Portugal antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal do jornal O Estado de S. Paulo e editor internacional da revista brasileira Visão. Regressando a Portugal após a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do jornal do Partido Comunista Português (PCP) Avante!, e diretor de O Diário. Foi ainda assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente da Assembleia Municipal de Moura, deputado da Assembleia da República pelo PCP entre 1990 e 1995 e deputado da Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última. Tem colaborações publicadas em jornais e revistas de duas dezenas de países da América Latina e da Europa e é autor de mais de uma dezena de livros publicados em Portugal e no Brasil.

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Leilão entrega três maiores aeroportos à iniciativa privada

Os três maiores aeroportos brasileiros foram entregues à iniciativa privada em leilão realizado na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) nesta segunda-feira (06). Por cerca de R$ 24 bilhões, o governo federal passará a concessão dos aeportos de Brasília (Juscelino Kubitschek), de Campinas (Viracopos) e de Guarulhos (Cumbica) a três consórcios formados por empresas nacionais e internacionais.
O valor arrecadado pelo governo federal no leilão, no entanto, somente irá para os cofres públicos a partir de 2013. Segundo o Ministério da Fazenda, o dinheiro só começará a ser pago pelos consórcios vencedores após um ano da assinatura do contrato de concessão, conforme o cronograma estabelecido no edital da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Além disso, os consórcios pagarão os valores estipulados para cada aeroporto em parcelas a cada 12 meses.
Além disso, as obras a serem realizadas pelos consórcios serão financiadas com dinheiro público. No último dia 19, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) anunciou que vai financiar até 80% do investimento total previsto no edital do leilão para os três aeroportos.
O aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (SP), foi arrematado por R$ 16,213 bilhões pelo consórcio Invepar – composto pelas empresas Invepar (Investimentos e Participações em Infraestrutura S.A) e Acsa, da África do Sul.
O aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), foi leiloado por R$ 3,821 bilhões para o consórcio Aeroportos Brasil - composto pela Triunfo Participações e Investimentos, UTC Participações e Egis Airport Operation.
Já o aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília (DF), foi arrematado por R$ 4.501.132.500, lance feito pelo consórcio Inframerica Aeroportos - composto pelas empresas Infravix Participações SA e Corporación America SA.
As concessões serão de 20 anos para Guarulhos, 25 anos Campinas e 30 anos para Brasília, e só poderão ser prorrogadas uma única vez por cinco anos. A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) terá participação acionária de 49% em cada aeroporto concedido. A partir da assinatura dos contratos de concessão com os vencedores do leilão, que deve ocorrer em março, haverá um período de transição de seis meses, prorrogável por mais seis, no qual a concessionária administrará o terminal em conjunto com a Infraero.
Segundo o presidente da Infraero, Gustavo do Valle, a participação da empresa nos consórcios não significará interferências na gestão dos aeroportos, mas servirá para manter as receitas da estatal. “Esses 49% representam metade dos dividendos que essas empresas darão de lucro ao longo dos anos. Essa porcentagem faz parte da receita que está prevista para que a Infraero continue existindo mesmo perdendo a receita integral desses três aeroportos”. De acordo com Valle, os três consórcios terão a liberdade de administrar os aeroportos da forma como considerarem melhor.
A Infraero continuará operando 63 aeroportos no país, responsáveis pela movimentação de cerca de 67% do total de passageiros.
Investimentos
Os consórcios deverão investir até o final das concessões R$ 4,6 bilhões em Guarulhos, R$ 8,7 bilhões em Viracopos e R$ 2,8 bilhões em Brasília. Além disso, são obrigados a cumprirem metas de obras para a Copa do Mundo de 2014.
Para o aeroporto de Brasília, estão previstos R$ 626,5 milhões para a construção de um novo terminal de passageiros para pelo menos 2 milhões de pessoas por ano. Em Campinas, o consórcio terá que investir R$ 873 milhões que servirá, entre outras coisas, para a construção de um terminal para 5,5 milhões de passageiros por ano. Já no aeroporto de Guarulhos, deverá ser construído um terminal para 7 milhões com um investimento de R$ 1,38 bilhão. Também estão previstas obras de ampliação de pistas, pátios, estacionamentos, vias de acesso.

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