O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, nesta quinta-feira, por 8 votos a 2, que não pratica o crime de aborto tipificado no Código Penal a mulher que decide pela “antecipação do parto” em casos de gravidez de feto anencéfalo.
Os ministros Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello consolidaram a maioria já formada na sessão de quarta-feira por Marco Aurélio (relator), Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. Este último, no entanto, fez questão de se associar à manifestação de Celso de Mello, decano da Corte, para considerar que “este foi o mais importante julgamento da história desta Corte, por que se buscou definir ao alcance constitucional do direito à vida”.
O julgamento — que durou uma manhã, duas tardes inteiras e só terminou às 20h30 desta quinta — foi provocado por uma argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 54) ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), em 2004. Na petição inicial, a entidade defendeu a descriminalização da “antecipação do parto em caso de gravidez de feto anencéfalo” sob a alegação de ofensa à dignidade humana da mãe, que se vê obrigada a carregar no ventre um feto que não teria condições de sobreviver após o parto.
Na proclamação do julgamento, o STF declarou a inconstitucionalidade de qualquer interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é crime tipificado no Código Penal. Os ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes queriam acrescentar condições para o diagnóstico da enfermidade e a cirurgia abortiva, mas a maioria considerou que o STF estaria legislando ou regulamentando a matéria.
De acordo com a Lei 9.882, que regula as argüições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs), a decisão tomada pelo STF tem “eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público”.
Ayres Britto
Na retomada do julgamento, no início da tarde desta quinta-feira, o ministro Ayres Britto acompanhou o voto do relator a favor da interpretação conforme o Código Penal no sentido de que não se pode tipificar como crime ou ato punível a interrupção da gestação de feto anencefálico, por não ser esse “direito de escolha” da mulher ato caracterizador de aborto.
Ele lembrou que a Constituição não diz explicitamente quando se inicia a vida humana, mas afastou a discussão dessa questão a partir do entendimento de que “se a gravidez se destina ao nada, a punição de sua interrupção é atípica, ou seja, não há crime”, na mesma linha dos votos que já tinham sido proferidos pelos integrantes da maioria formada na sessão de quarta-feira.
“Se todo aborto é interrupção voluntária de gravidez, nem toda interrupção voluntária de gravidez é aborto”, afirmou Ayres Britto. E completou: “O feto anencéfalo nem é um doente mental, por que não tem a mente completa, não tem mente, não tem cérebro. A antecipação de parto terapêutico desse feto não configura aborto para fins de punição. Dar à luz é dar a vida, e não a morte”. Ele concordou com a observação feita pelo ministro-relator e pelo advogado da CNTS, Luís Roberto Barroso, de que “levar esse martírio até o fim corresponde a uma tortura continuada”.
Gilmar Mendes
Gilmar Mendes, o sétimo a votar, ao destacar a relevância social do tema, comentou que os argumentos das entidades religiosas “podem e devem ser analisados pelo Estado que, apesar de laico, deve buscar a cooperação mútua com as diversas confissões religiosas”. E criticou o fato de que entidades importantes e representativas como a Conferência Naconal dos Bispos do Brasil (CNBB) não tenham sido aceitas pelo relator da ADPF 54 na qualidade de “amici curiae” (interessados diretos), como se a Igreja Católica fosse uma espécie de “ré nessa ação”.
Do ponto de vista eminentemente jurídico, Guilmar Mendes discordou da caracterização do aborto de feto aenencefálico como “aborto atípico”, já que esse tipo de feto ao se transformar em nascituro passa a ser objeto de proteção até no direito civil. “A regra é a vedação do aborto, e não se pode considerar atípico o aborto, ainda que 'terapêutico'“.
Contudo, ele defendeu a tese de que por haver “coprometimento grave” da saúde psíquica da genitora, em face da “certeza absoluta” de que o nascituro já estará condenado à morte, “não é razoável que se imponha á mulher tamanho ônus à falta de um modelo adequado explicitamente previsto em lei”. Assim, à falta desse modelo, e tendo em vista a “premente necessidade de atualização do Código Penal”, Mendes votou no sentido de que o aborto em consequência de existência de feto anencéfalo seja admitido, juntamente com as duas exceções já previstas no Código Penal (artigo 128): o chamado aborto necessário (“se não há outro meio de salvar a vida da gestante”) e o resultante de estupro. Ele propôs ainda que o Ministério da Saúde regulamente esse tipo de aborto, exigindo laudo médico de no mínimo dois médicos para que seja autorizado.
Celso de Mello
O decano do STF, ministro Celso de Mello, também enfatizou que a mulher “está protegida em seus direitos reprodutivos, e tem portanto o direito de optar pela antecipação terapêutica do parto se o feto é incapaz de sobreviver em ambiente extrauterino”. Segundo ele, “a magnitude do direito à vida impõe o confronto com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”, sobretudo quando se parte do pressuposto de que “a vida começa com os primeiros sinais de atividades cerebrais”.
Celso de Mello fez questão de frisar: “Não estamos autorizando práticas abortivas. Não estamos, com esse julgamento, legitimando a prática do aborto — uma outra questão que, eventualmente, poderá ser submetida a esta Corte”. Assim, entendeu que não cabe acrescentar uma terceira hipótese às duas exceções de aborto constantes do Código Penal. A seu ver, a “antecipação terapêutica do parto” em face de existência de feto anencéfalo “não é crime de aborto”, mas “ato atípico”.
Cezar Peluso
Último a votar, de acordo com o regimento, o presidente da Corte foi o segundo voto divergente. Começou por dizer que “a vida não é conceito artificial criado pela ciência jurídica para efeitos práticos”, já que “a vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos dos quais o direito se apropria para determinados fins”. E frisou: “Todos os fetos anencéfalos, a não ser que estejam mortos, têm vida. Se o feto não tivesse vivo, não poderia morrer”. Assim, ainda segundo Cezar Peluso, “o aborto provocado de feto anencéfalo é conduta vedada, de modo frontal, pela ordem jurídica, e esta Corte não tem poder ou competência para abolir ou atenuar o crime de aborto”.
O presidente do STF afirmou ainda que não havia “malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética” que o levasse a aceitar a tese de que a “interrupção terapêutica do parto” nos casos de feto anencéfalo não seja o mesmo crime de aborto tal como tipificado no Código Penal.
Com relação ao sofrimento da gestante portadora de feto anencéfalo, Peluso sustentou que “o sofrimento não degrada a condição humana, mas é inerente à condição humana”. A seu ver, “o sofrimento” que a ordem jurídica tem o dever de impedir “é o ato antijurídico”. Finalmente, ele chamou a atenção para o perigo da proliferação de abortos permitidos a partir de diagnósticos falsos ou imprecisos de anencefalia, deficiência que — apesar de todo o progresso da ciência médica — ainda é objeto de controvérsias.
Os outros votos
Na quarta-feira, o ministro-relator da ADPF 54, Marco Aurélio citou dados segundo os quais o Brasil é o quarto país do mundo em matéria de fetos anencéfalos (um em cada mil nascimentos), e assentou que — na argüição em julgamento — a questão básica era a distinção entre o aborto (criminalizado no Código Penal) e a “antecipação terapêutica, e não eugênica, do parto” no caso de mulher portadora de feto com cérebro incompleto e inviável.
Ele fez uma dissertação de caráter técnico-científico, com opiniões colhidas na audiência pública de 2008, acolhendo a tese de que “o feto anencéfalo é um morto cerebral”, apesar de ter “batimento cardíaco e respiração”. Ou seja, de que “não existe presunção de vida extrauterina”.
Com base em depoimento de especialista, Marco Aurélio descartou como um caso de feto anencéfalo que teve vida extrauterina (um ano e oito meses) o da menina Marcela de Jesus Galante Ferreira. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil citava esse caso como “exemplo claro de que uma criança, mesmo com tal malformação, é um ser humano”. Mas o relator transcreveu parecer de um especialista, segundo o qual “ficou provado”, em tomografia, que a menina paulista não tinha propriamente “anencefalia”, mas “meroanencefalia” (situação de feto que não tem, em maior ou menor grau, partes superiores do encéfalo).
O ministro-relator acolheu também a tese do advogado da CNTS, Luís Roberto Barroso e do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, em defesa da descriminalização do aborto nos casos de gestante portadora de feto anencéfalo, tendo em vista os “direitos reprodutivos” da mulher, o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à saúde (neste caso, a saúde psíquica da mulher). Assim, a “interrupção da gravidez” de feto anencefálico não poderia ser comparada ao “aborto eugênico”, o que seria “inaceitável”. Para Marco Aurélio, o que se quer é assegurar à mulher o direito à autodeterminação, podendo agir, por conta própria, em caso de inviabilidade de feto “que não dispõe congenitamente de viabilidade”. Ele também considerou uma “verdadeira tortura” a submissão da mulher, pelo Estado, à obrigação de portar no ventre um natimorto.
Primeira a votar depois do relator, a ministra Rosa Weber partiu do pressuposto de que anencefalia é “o não fechamento total da calota craniana”. E comentou: “Dizem que ela é fatal em 100% dos casos. Mas há relatos de fetos com sobrevida de meses e até de mais de um ano”.
Ela citou os casos de Marcela de Jesus, que sobreviveu 1 ano e 8 meses, e também o de Vitória de Cristo de 2 anos e 3 meses, que foi levada pela mãe (presente com a filha ao julgamento) ao gabinete da ministra.
A ministra Rosa Weber — segunda a votar — disse no seu voto ter ponderado os valores entre o direito à vida do feto, de um lado, a dos princípios da dignidade e da saúde psíquica da mulher de outro, e concluiu: “Não se pode derivar de uma relação de causa e de efeito com base no 'se', e não no 'ser'“.
Ela concluiu por dar interpretação conforme ao Código Penal (artigos 124 e 126), a fim de que se entenda que a “interrupção da gravidez em casos de anencefalia” não podem ser comparados ao crime de “provocar aborto”, com ou sem o consentimento da gestante. E concordou com o voto de Marco Aurélio na linha de que estava em jogo o “direito fundamental da mulher de escolher se quer ou não interromper a gravidez”. Ou seja, ela acolheu a arguição da CNTS — assim como o ministro-relator — mas com base apenas em argumentos jurídicos, e não científicos.
O ministro Luiz Fux destacou que o STF tinha de examinar se era “justo colocar no banco do júri, que julga crime s contra a vida, uma mulher que enfrentou a tragédida de portar no ventre um feto já condenado à morte”. Ele citou extensa literatura médico-científica, e chegou a concluões “lastimáveis”, no sentido de que não há cura nem viabilidade para os neonatos anencefálicos.
E também concordou com a prevalência, nesses casos, da preservação da “saúde psíquica e física” da mulher, acrescentando que “equivale a tortura” impedir a interrupção desse tipo de gravidez sob a ameça do Código Penal que — apesar de editado há muitas décadas — criou, em duas situações, a figura do “aborto permitido” para “fetos sadios”. Logo, não teria sentido criminalizar o aborto de fetos praticamente natomortos.
A ministra Cármen Lúcia também votou pela procedência da ADPF 54. Deu por lido o seu voto , mas fez questão de “deixar claro” que o STF não estava a “permitir a possibilidade de aborto”, mas sim “deliberando sobre a possibilidade jurídica” de uma mulher portadora de feto anencefálico procurar um médico, e interromper a gravidez, por que “quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta”.
O ministro Joaquim Barbosa acompanhou o relator, reiterando a sua posição já cohecida e expressa quando do julgamento da liminar concedida por Marco Aurélio em 2004.
Divergência
O ministro Lewandowski — o último a votar na quarta-feira — inaugurou a divergência. Ele disse que os valores a serem preservados nos casos de aborto, são a vida do nascituro e a vida e a incolumidade psíquica da gestante. Segundo ele, o legislador isentou de pena o aborto em apenas duas hipóteses (artigo 128 do CP): o “necessário ou terapêutico” (perigo de vida par a mãe) e o “ sentimental” (decorrente de estupro).
Para Lewandowsi, dado o princípio básico da “conservação das normas”, é possível a “interpretação conforme” a Constituição, mas sempre na “lógica do razoável”. Segundo ele, anencefalia é, na verdade, falta de “parte” do cérebro, difícil de ser avaliada, e o STF não pode modificar ou interpretar uma lei aprovada pelo Congresso (o Código Penal), abrindo condições para “abortos em série”.
O sexto ministro a votar chamou a atenção para o fato de que o assunto é tão “complexo” que há vários projetos de lei em tramitação no Congresso sobre a descriminalização do aborto. Depois de citar alguns desses projetos, ele reafirmou que — se o Legislativo está tratando da matéria — o Judiciário não pode “legislar”, o que ocorreia no caso de uma “interpretação conforme” do Código Penal.
Em face do exposto, Lewandowski indeferiu a ADPF 54, por não poder o STF “criar uma nova norma, usurpando a competência do Congresso”.
http://www.jb.com.br/pais/noticias/2012/04/12/stf-decide-por-8-a-2-que-nao-e-crime-aborto-de-feto-anencefalo/
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