quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A volta da indústria da seca

Lívia Bacelete e Helen Borborema
de Belo Horizonte e Porteirinha (MG) 

No final de 2011, a população do semiárido brasileiro, região que abriga 1.133 municípios dos estados do Nordeste, além dos nortes de Minas Gerais e Espírito Santo, recebeu a notícia do governo federal de que não seria mais estratégico investir na proposta dos Programas de Formação e Mobilização Social para Convivência com o Semiárido. Desenvolvido há anos pela Articulação no Semi-Árido (ASA) – coletivo que reúne mais de 750 entidades – o projeto trabalha com tecnologias sociais populares de captação e armazenamento de água para consumo humano e para a produção de alimentos.  
Após o anúncio, em apenas cinco dias as organizações da ASA organizaram uma manifestação de 15 mil pessoas entre Petrolina (PE) e Juazeiro (BA), o que fez com que rapidamente o governo aceitasse dialogar. Apesar de essa situação ter sido revertida temporariamente, com a prorrogação do investimento no programa por mais quatro meses e abertura de negociações para sua continuidade, o governo já anunciou o lançamento do Programa Água Para Todos.    
Segundo informações oficiais, em apenas dois anos cerca de 300 mil famílias terão suas cisternas para captação de água da chuva. Para as organizações da ASA, seria bom se não fosse o fato de como isso vai acontecer. Ao invés de continuar a parceria com a Articulação, o Ministério da Integração Nacional já anunciou a distribuição de cisternas de plástico (polietileno).     

Concentração de renda
Por meio do programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), a ASA busca o envolvimento e capacitação das famílias na construção das cisternas, que são feitas de placa. Consequentemente, os movimentos e entidades locais temem que, ao invés de gerar renda para a economia local, seja nas casas de materiais de construção, seja para os pedreiros das comunidades, o Programa Água Para Todos passe a concentrar a renda e favorecer grandes empresas.        
Segundo Naidison Quintela, da coordenação nacional da ASA, as cisternas de plástico, além de virem prontas e gerarem renda para as empresas, “não envolvem as famílias e bloqueiam um processo de desenvolvimento endógeno, que as cisternas de placas desenvolvem”. Ele afirma que o governo tem autonomia de continuar fazendo as cisternas de plástico e a Articulação não pode impedir. “Vamos debater com o governo e nos posicionar contra. “Avaliamos que o governo Dilma vai pagar caro por esse equívoco”.    
Para Naidison, a ideia de garantir acesso à água para as famílias do semiárido é uma atitude inédita e deve ser saudada positivamente, mas o processo deve ser debatido. “A ASA tem restrições à tentativa de executar isso dentro de um processo demasiadamente apressado”, afirma.    
“Construir 750 mil cisternas em dois anos é desconhecer o processo do semiárido, das comunidades, da perspectiva de convivência com o semiárido que vem sendo implantado através da cisterna de placas e voltar a processos antigos de combate à seca, de grandes projetos, que sabemos que não deram resultados”, completa.       
De acordo com a ASA, outro grande gargalo das cisternas de plástico é o fato de elas custarem mais do que o dobro das cisternas de placas convencionais, construídas com ferro e cimento. Enquanto a de plástico custa em média R$ 5 mil, o custo total de cada uma das cisternas de placas é, em média, R$ 2.100 – este valor é “distribuído” nas economias locais da própria região. Com isso, ao invés de 300 mil cisternas de plástico, com os mesmos recursos a ASA poderia construir cerca de 750 mil de placas.  
Outro aspecto alvo de crítica é a forma como o governo escolheu para o Programa Água para Todos ser implementado. No lugar de continuar as implementações no semiárido em parceria com a ASA e sociedade civil, o governo optou pelas parcerias com os estados e prefeituras.      
Para Roberto Malvezzi, o Gogó, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o povo já está acostumado com esse jogo. “Em governos petistas, achávamos que essa prática estaria definitivamente enterrada”, porém “Dilma, em nome de seu ‘crescimentismo acelerado’, ressuscitou a indústria da seca”, afirma.      
Convivência Dono de uma das biodiversidades mais ricas do planeta, o semiárido brasileiro é um dos mais chuvosos e populosos do mundo. Com muitas horas de sol por ano, baixa incidência de pragas, solos férteis e a possibilidade de acumular água de diversas formas, a região foi considerada inviável por muito tempo.       
“O imaginário nacional e internacional do semiárido é de uma região feia, seca, com gado morrendo de sede, gente migrando e assim por diante”, explica Gogó. Ele afirma que embora as elites sempre tenham colocado o semiárido como inviável, uma pesquisa recente mostrou que 38% da humanidade habita regiões áridas e semiáridas. “Portanto, há um paradoxo entre a concepção das elites e do povo”.      
Marcado por uma histórica estrutura concentradora de renda, riquezas, água e terra, o semiárido brasileiro tem se transformado nos últimos anos. Iniciativas e estratégias da sociedade civil vêm demonstrando a viabilidade da região, em contraposição às tradicionais medidas de combate à seca. Assim nasceu a proposta de convivência com o semiárido.    
Trata-se de um conceito que surgiu na academia do Nordeste há mais de um século, “mas essa expressão nunca saiu do papel. Quem deu cerne ao conceito foi a sociedade civil. Ela foi buscar o jeito de se viver bem aqui no semiárido”, explica Gogó.  
Muitas das iniciativas e experiências que trabalhavam sob essa perspectiva convergiram para a criação, em 1999, da ASA, um fórum de organizações da sociedade civil, entre sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos, federações e associações comunitárias, igrejas, católicas e evangélicas, pastorais sociais e ONGs.    
Para Naidison Quintela, a grande intuição da Articulação foi sistematizar e assumir as experiências que já vinham sendo desenvolvidas na região, oferecendo e debatendo-as numa proposta de política pública para a convivência com o semiárido. “A cisterna de placas, a barragem subterrânea, o barreiro coletivo, a cisterna calçadão, todas essas alternativas são provas de que a população resistiu. Por isso, queremos que sejam implementadas como política”.  

Mudanças
“Primeiro veio a cisterna, depois veio o melhoramento da alimentação, porque hoje plantamos as hortaliças e não precisamos ir na feira comprar”, conta o agricultor José de Quitéria, do Sítio Sobrado, município de Jataúba, em Pernambuco.          
Elton Mendes, coordenador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, município no norte de Minas Gerais, garante que o semiárido de hoje é muito diferente do que antes da mudança de perspectiva do combate à seca para a convivência. “A gente tinha um semiárido brasileiro que parecia um deserto, de onde o povo migrava para as grandes cidades em busca de serviço”, lembra. Elton conta que a migração em busca de melhoria de vida está acabando e muitos filhos de agricultores familiares, que foram embora, estão voltando. “Hoje, aqui é um lugar bom de se viver”, garante.      
Para Naidison, a proposta política de convivência com o semiárido ainda não ganhou a guerra, mas está ganhando batalhas. “A guerra contra a perspectiva do combate à seca está em curso, por isso vemos grandes obras, como a transposição do rio São Francisco”, afirma. Segundo ele, é preciso uma política que não esteja voltada para esses grandes empreendimentos “que somente enriquecem poucos”.  
Para o integrante da ASA, isso não é um sonho e já vem acontecendo na região. “Quem visita as comunidades onde tem cisterna, tem alimentação estocada, tem educação contextualizada, vê um semiárido diferente”, conta.

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