segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Sistema Canabinóide Endógeno

Introdução
Os efeitos característicos do 9-tetrahidrocanabinol (9-THC, principal constituinte da Cannabis sativa), tais como analgesia, hipotermia, inibição de atividade motora e hiperfagia, são conhecidas de longa data. Porém, o mecanismo de ação do 9-THC e de seus análogos (denominados canabinóides) permaneceu obscuro até o final da década de 1980. Desde essa época, uma série de descobertas vem revolucionando a farmacologia dos canabinóides, iniciando-se com a descoberta de um receptor canabinóide em mamíferos e levando à identificação de ligantes endógenos para esse receptor.
O presente texto baseia-se em algumas revisões importantes e tem por objetivo descrever o sistema canabinóide endógeno de forma bastante sucinta e direta. Os processos de síntese e metabolismo das principais substâncias propostas como canabinóides endógenos (endocanabinóides), bem como os seus receptores, são brevemente discutidos.

Receptores canabinóides
Um dos primeiros passos fundamentais na descoberta do sistema canabinóide foi a observação de que diversos canabinóides naturais e sintéticos podem se ligar a membranas de encéfalo de ratos em um padrão que sugeria a existência de um sítio específico para esta classe de substâncias (Howlett et al, 1990). Nestes experimentos, observou-se que os canabinóides se ligavam às membranas de forma saturável e estereosseletiva. Além disso, observou-se significativa correlação entre a ordem de afinidade pelo sítio de ligação e a ordem de potência para a indução de efeitos farmacológicos em humanos e em animais experimentais. Isto se somou às observações de que pequenas variações estruturais nas moléculas dos canabinóides ocasionavam grandes alterações de potência. Em conjunto, estes dados sugeriam fortemente a existência de um receptor para os canabinóides no sistema nervoso de mamíferos, ainda que nenhum ligante endógeno fosse conhecido para esse receptor.
De fato, um receptor específico para os canabinóides foi clonado e caracterizado em 1990. Um segundo receptor foi identificado nos anos seguintes. O Comitê para Nomenclatura de Receptores e Classificação de Drogas da União Internacional de Farmacologia e Terapêutica Experimental (International Union for Pharmacology and Experimental Therapeutics - IUPHAR) denominou esses receptores, pela ordem de descoberta, em receptores canabinóides do subtipo 1 (CB1) e subtipo 2 (CB2) (Howlett et al, 2002). O primeiro é responsável pelos efeitos centrais dos canabinóides, enquanto o segundo deve mediar efeitos periféricos. Ambos são receptores acoplados a uma proteína G que, quando ativada, inibe a enzima adenilato ciclase, aumenta a atividade de canais de potássio e inibe canais de cálcio (figura 1), modulando a liberação de outros neurotransmissores (Piomelli et al, 2003).
O receptor CB1 é amplamente expresso em diversas estruturas encefálicas (Tabela 1). A sua densidade é imensa em regiões importantes para o controle motor, como nos núcleos da base e no cerebelo. O estriado ventral (núcleo acúmbens) também apresenta elevada densidade, provavelmente mediando os efeitos hedônicos e reforçadores dos canabinóides. A densidade dos receptores CB1 também é significativa no hipocampo e em diversas regiões do córtex cerebral. Além disso, eles também são expressos na amígdala e na matéria cinzenta periaquedutal, possivelmente responsáveis pelas alterações emocionais e pelo efeito analgésico dos canabinóides. Estão também presentes no hipotálamo, onde poderiam mediar algumas ações dos canabinódes tais como hipotermia e hiperfagia.

Endocanabinóides
A descoberta dos receptores canabinóides desencadeou uma intensa busca pelos ligantes endógenos. Assim como os compostos presentes na Cannabis, os canabinóides de mamíferos são compostos de natureza lipídica. Os principais endocanabinóides identificados são aracdonil-etanolamida (AEA) e o 2-aracdonil-glicerol (2-AG). A AEA foi também denominada anandamida, sendo o termo “ananda” oriundo do sânscrito, significando felicidade serena, bem-aventurança ou felicidade perfeita (Mechoulam et al, 1998).
A maneira pela qual os endocanabinóides atuam no sistema nervoso central (esquematizados na figura 1) contraria os conceitos clássicos que definem um neurotransmissor. Estes conceitos postulam que os neurotransmissores são sintetizados em neurônios pré-sinápticos, armazenados em vesículas e liberados após influxo de cálcio para o neurônio. Porém, tanto a anandamida quanto o 2-AG são sintetizados a partir de fosfolipídios de membrana em neurônios pós-sinápticos, sendo o aumento de cálcio intracelular o fator desencadeante. Os endocanabinóides não são armazenados em vesículas, mas imediatamente liberados dos neurônios pós-sinápticos para atuarem em terminações pré-sinápticas, processo este denominado neurotransmissão retrógrada. Portanto, os endocanabinóides atuam “sob demanda”, modulando a atividade dos neurônios pré-sinápticos após a ativação pós-sináptica.
Tanto a anandamida quanto o 2-AG têm a sua ação terminada pela captação para os neurônios, seguida de metabolismo (Hillard e Jarrahian, 2003). Esses processos têm sido estudados com mais detalhes para a anandamida. A etapa de re-captação permanece controversa, podendo ocorrer por difusão simples e/ou por um processo facilitado por uma proteína captadora. O metabolismo da anandamida aparentemente ocorre nos neurônios pós-sinápticos por uma hidrolase de amidas de ácidos graxos (Fatty Acid Amide Hydrolase - FAAH), conforme ilustrado na figura 2.
Os principais mecanismos para intervenções farmacológicas no sistema canabinóide endógeno são o agonismo ou o antagonismo nos receptores CB1 e CB2 (Di Marzo et al, 2004). Muitos dos canabinóides clássicos, como o próprio 9-THC, são agonistas que não apresentam grande seletividade para os subtipos de receptores canabinóides. Porém, há diversos agonistas e antagonistas seletivos para os receptores CB1 ou CB2. Os agonistas CB1 induzem os efeitos já mencionados de analgesia, hipotermia, hiperfagia. Os agonistas CB2 podem ser interessantes por induzirem efeitos periféricos, como a analgesia, mas sem a diversidade de efeitos centrais decorrentes da ativação dos receptores CB1, como comprometimento motor e alterações de memória.
Outra possibilidade de intervenção no sistema canabinóide endógeno é a utilização de compostos que inibem a captação e/ou o metabolismo. Os inibidores da captação ou metabolismo da anandamida, por exemplo, induzem alguns efeitos agudos semelhantes aos dos agonistas CB1. Porém, ainda não estão claras as diferenças entre esses compostos no que se refere aos efeitos agudos ou à indução de tolerância após tratamento crônico, por exemplo.

O sistema endocanabinóide e transtornos neuropsiquiátricos
Os canabinóides interagem com diversos neurotransmissores e neuromoduladores, como serotonina, dopamina, glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA). Vários dos efeitos farmacológicos neuropsiquiátricos da Cannabis sativa podem ser explicados tendo como base estas interações (Tabela 1).
A Cannabis sativa tem sido historicamente usada para aliviar diversos sintomas associados ao sistema nervoso central (SNC), como transtornos psiquiátricos, distúrbios motores e dor. Por outro lado, o abuso de maconha parece estar relacionado a uma ampla variedade de transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, ansiedade e depressão (ver capítulos X, Y e Z). Dessa forma, o sistema canabinóide tem sido associado à neurobiologia de diversas condições neuropsiquiátricas.
Alguns estudos demonstraram que os agonistas CB1 induzem efeitos ansiolíticos, embora também existam resultados de efeitos ansiogênicos, havendo certa controvérsia na modulação da ansiedade por estes receptores. Outra recente proposta é a de que os endocanabinóides sejam importantes mediadores da extinção de memórias condicionadas a eventos aversivos, o que teria aplicação para o tratamento de depressão e transtorno de estresse pós-traumático (Marsicano et al, 2002), por exemplo.
Os receptores canabinóides estão significativamente presentes em estruturas possivelmente envolvidas na fisiopatologia da esquizofrenia, tais como o córtex pré-frontal, hipocampo e núcleo acúmbens. Além disso, tanto o uso da Cannabis sativa quanto a administração de 9-THC (ou de outros agonistas CB1) pode induzir efeitos psicotomiméticos (ver capítulo X). Com base nessas e em outras observações, foi levantada a hipótese de que a intensificação na neurotransmissão mediada pelos endocanabinóides poderia participar na fisiopatologia da esquizofrenia (Emrich et al, 1997). De fato, há dados de alterações no sistema endocanabinóide associadas a este transtorno, como maior concentração da anandamida e palmitiletanolamida no fluído cerebroespinhal de pacientes (Leweke et al., 1999), que se correlacionou inversamente com a presença de sintomas psicóticos (Giuffrida et al., 2004). Também foi evidenciada maior densidade de receptores CB1 no córtex pré-frontal de pacientes com esquizofrenia (Dean et al., 2001), embora ainda sem uma relação causal definitiva. Do mesmo modo, ainda não está claro como ocorrem as interações dos endocanabinóides com a dopamina e o glutamato (os principais neurotransmissores envolvidos na esquizofrenia). Apesar destas considerações, o antagonista CB1 SR141716A não demonstrou eficácia no tratamento de pacientes com esquizofrenia (Meltzer et al., 2004).
Um importante papel fisiológico desempenhado pelos endocanabinóides é a neuroproteção. A hiperatividade glutamatérgica e outros processos que causam dano neuronal parecem desempenhar importante papel em doenças degenerativas crônicas como o transtorno de Alzheimer. Os mecanismos neuroprotetores dos canabinóides observados em estudos com animais incluem inibição da produção excessiva de glutamato e propriedades antioxidantes, que reduzem o dano causado pelos radicais oxigênios.
A alta densidade de receptores CB1 nos gânglios da base – uma área intimamente envolvida na regulação do controle motor – e da já mencionada interação com a dopamina, sugerem uma importante relação do sistema canabinóide endógeno com os transtornos de movimento, como o Parkinson e a Coréia de Huntington. Porém, a participação dos endocanabinóides nos processos fisiopatológicos ainda não está clara, e as abordagens farmacológicas ainda estão inconsistentes (Fernandez-Ruiz et al., 2002).
Vários casos têm sido relatados sugerindo que a maconha é uma substância efetiva para combater sintomas de abstinência na dependência de benzodiazepínicos, álcool e – especialmente – dos opióides. Aparentemente, há um importante relação entre os sistemas canabinóide e opióide no controle de processos fisiológicos como dor e recompensa, na distribuição neuroanatômica e nos seus mecanismos de transdução de sinal. O fenômeno de tolerância cruzada pode ocorrer para alguns efeitos dos agonistas canabinóides e opióides. Demonstrou-se também que tanto agonistas CB1 quanto inibidores de internalização/metabolismo da anandamida atenuam a síndrome de abstinência e a auto-administração de opióides, sugerindo que esta pode ser uma abordagem promissora para estudos clínicos (Van der Stelt et al., 2003). Os antagonistas também têm sido estudados em modelos de auto-administração de opióides, etanol ou cocaína.
Finalmente, outras importantes contribuições dos receptores CB1 incluem a mediação de efeito orexígeno, antiepiléptico e antiemético especialmente em indivíduos utilizando quimioterápicos.

Conclusões
O considerável progresso nas ações fisiológicas e farmacológicas do 9-THC e de outros canabinóides levou à identificação do sistema canabinóide endógeno no SNC. Este é um dos mais recentes sistemas de neurotransmissores descobertos, ainda havendo muitos aspectos a serem elucidados. Dentre estes se destacam: (i) os processos enzimáticos de síntese e inativação dos canabinóides; (ii) os efeitos dos canabinóides que parecem ser mediados por mecanismos independentes dos receptores CB1 ou CB2; (iii) identificação de um possível receptor “CB3”. Além disto, a maior compreensão das interações dos endocanabinóides com outros sistemas, como opióides, dopamina, GABA e glutamato parece necessária e oportuna.
Assim, este melhor entendimento dos mecanismos de ação dos canabinóides e da fisiologia deste sistema, poderá aumentar a nossa compreensão da neurobiologia de alguns transtornos neuropsiquiátricos, o que poderá permitir o desenvolvimento de novas e mais eficazes terapias psicofarmacológicas.

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