Líderes pedem nova política de drogas para a ONU
Desde que o presidente norte-amerciano Richard Nixon declarou há 40 anos a guerra mundial contra as drogas, a grande maioria dos dirigentes mundiais se alinhou com esta política proibicionista. Mas agora, pela primeira vez em meio século, um grupo de líderes de alto nível pediu à ONU que reavalie este modelo e adote de maneira urgente um mais eficiente e humano.
Entre as principais sugestões da Comissão Global de Políticas de Drogas, incluídas em um relatório lançado quinta-feira (2) em Nova York, está a legalização e regulamentação da maconha, o fim da criminalização dos usuários de todas as drogas, o investimento de recursos em pesquisa científica e o uso da repressão de maneira crítica, com ênfase nas estruturas criminosas e não nos cultivadores, mulas humanaos e vendedores de pequenas quantidades de droga.
A Comissão Global é nformada pelos ex-presidentes latino-americanos Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México; pelo ex-secretário-geral da ONU, Koffi Annan; pela ex-presidenta da Suíça, Ruth Dreifuss; pelo ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, George P. Shultz; pelo empresario Richard Branson; entre outros, num total de 19 personalidades (Ver lista completa no final da matéria).
O relatório da Comissão Global argumenta sua solicitação utilizando exemplos e dados concretos de por que a guerra contra as drogas foi um fracasso e como outras abordagens (como a descriminalizção do uso de todas as drogas em Portugal) que tiveram melhores resultados. Por exemplo, o documento cita cifras das Nações Unidas que indicam que o consumo de drogas aumentou entre 1998 e 2008. Neste período, de acordo com os dados da organização, o número de usuários de opiáceos aumentou 34.5%, o de cocaína, 27%, o de cannabis, 8.5%.
“Líderes políticos e figuras públicas devem articular publicamente o que muitos deles reconhecem em caráter privado: que as evidências demonstram de maneira assustadora que as estratégias repressivas não resolverão o problema das drogas e que a guerra contra as drogas não pôde, não pode e não poderá ser ganha”, afirma o documento.
Outra maneira de agir
Durante o lançamento do relatório, o ex-presidente brasileiro disse que a crítica à guerra contra as drogas não significa que não haja nada a fazer a respeito. “Temos que agir. As drogas estão se infiltrando no poder local em muitos lugares do mundo e a corrupção está aumentando assim como o consumo”, afirmou Cardoso durante a coletiva de imprensa. Aos 80 anos de idade, o ex-presidente brasileiro se converteu em um dos mais ilustres defensores de uma nova política de drogas.
Também membro da Comissão Global, o empresario britânico Richard Branson, destacou que a guerra contra as drogas tem um alto custo e que não rende frutos. “A ironia é que um mercado altamente regulado – que seria estritamente controlado e que poderia oferecer apoio e não prisão a quem tem problemas com as drogas - custaria muito menos aos contribuintes”, disse.
O ex-presidente de Colômbia, César Gaviria, exigiu a abertura dos Estados Unidos à necessidade de participar deste debate. “Nossa meta é que os Estados Unidos discutam este problema em toda sua magnitude, em lgar de fechar-se em torno de uma política que fracassou. A crença de que este é um tema intocável por razões eleitoreiras não é aceitável”, afirmou Gavíria, que também foi secretério-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A organização Avaaz, uma comunidade global de mobilização online que integra ações políticas impulsionadas pela cidadania, respaldou o pedido da Comissão Global com a apresentação de quase 600 mil assinaturas de cidadãos ao redor do mundo que estão clamando pelo fim da guerra às drogas. A campanha ainda está vigente, clique para assinar a petição. (Na foto, o ex-presidente brasileiro recebendo as assinaturas do representante da Avaaz)
De acordo com o relatório da Comissão Global, “as aparentes vitórias em eliminar uma fonte ou uma organização de narcotráfico são negadas quase instantaneamente pelo surgimento de outras fontes e traficantes. Os esforços repressivos dirigidos aos consumidores impedem a implementação de medidas de saúde pública para reduzir as infecções por HIV/Aids, as mortes por overdose e outras consequências perjudiciais do uso de drogas. Os gastos governamentais com estratégias frustradas de redução da oferta e de prisões, substituem investimentos mais eficazes e baseados em evidências orientados para a redução da demanda e de danos”.
O relatório recomenda ainda “colocar o foco das ações repressivas nas organizações criminosas violentas, mas fazê-lo de maneira a acabar com seu poder e seu alcance, enquanto se dá prioridade para a redução da violência e da intimidação. Os esforços para impor o cumprimento da lei não devem ter o foco na redução dos mercados de drogas em si, mas na redução de seus danos sobre os indivíduos, as comunidades e na segurança nacional”.
Boa recepção
Da mesma forma que a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), a Comissão Global se inspira na experiência bem-sucedida da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia. No Brasil, a CBDD serve como difusora das ideias da Comissão Global, já que compartilha do mesmo ideal de encontrar uma política de drogas mais eficiente que a atual. O presidente da CBDD e também presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Gadelha, viu de maneira positiva a solicitação que a Comissão Global fez à ONU.
Para Gadelha, a abordagem exclusivamente repressiva comum em todo o mundo até o momento revelou falhas. “A Comissão Brasileira, que é aliada da Comissão Global, considera que o uso de drogas deve ser tratado como uma questão de saúde e de assistência pública, como está claro na Declaração que lançamos em março deste ano depois de 18 meses de debate, reflexão e reuniões das quais participaram representantes de diversos segmentos da sociedade brasileira”, destacou Gadelha.
O presidente da Fiocruz, declarou que a postura da CBDD não se confunde de forma alguma com tolerância em relação à violência ligada ao narcotráfico, que deve ser castigada com severidade e afirmou que a CBDD se reunirá em breve para estudar o conteúdo do relatório e posicionar-se colegiadamente a respeito.
Na Colômbia, durante a cerimônia pública de posse dos oficiais da Escola Militar de Cadetes, o atual presidente colombiano, Juan Manuel Santos, se mostrou interessado em conhecer o documento e disse que “a Colômbia tem autoridade moral como nenhum outro país para participar desta discussão global porque se há um país que fez sacrifícios nesta luta contra o narcotráfico, foi a Colômbia”, afirmou o presidente. ,
A defesa de FHC por uma mudança na política de drogas continua no próximo domingo em Vigário Geral, favela da periferia do Rio de Janeiro, onde o ex-presidente brasileiro assistirá ao lançamento do documentário “Quebrando o tabu”, do qual participou como âncora, sob a direção de Fernando Grostein Andrade.
O encontro, realizado pela ONG Afroreggae, incluirá um debate com convidados e pessoas da comunidade que sofre as consequências da presença do crime organizado e os resultados colaterais da guerra contra as drogas.
Membros da Comissão Global de Políticas de Drogas:
Kofi Annan, ex secretário-geral das Nações Unidas, Gana
Louise Arbour, ex-alto comissário da ONU para os Direitos Humanos, presidente do International Crisis Group, Canadá
Richard Branson, empresário, defensor de causas sociais, fundador do Virgin Group, um dos fundadores da organização The Elders, Reino Unido
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil
Marion Caspers-Merk, ex-secretária de Estado do Ministério Federal Alemão de Saúde
Maria Cattaui, membro do conselho Petroplus Holdings, ex-secretário-geral da Câmara de Comércio Internacional, na Suíça
Ruth Dreifuss, ex-presidente da Suíça e Ministra da Administração Interna
Carlos Fuentes, escritor e intelectual, México
César Gaviria, ex-presidente da Colômbia
Asma Jahangir, ativista dos Direitos Humanos, relatora rspecial sobre a execuções arbitrárias, sumárias e extrajudiciais, Paquistão
Michel Kazatchkine, diretor-executivo do Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, França
Mario Vargas Llosa, escritor e intelectual, Peru
George Papandreou, primeiro-ministro da Grécia
George P. Shultz, ex-secretário de Estado, Estados Unidos (presidente honorário)
Javier Solana, ex-alto representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança Comum, Espanha
Thorvald Stoltenberg, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e Alto Comissário da ONU para os Refugiados, Noruega
Paul Volcker, ex-presidente do FED, Banco Central dos Estados Unidos e do Conselho de Recuperação Econômica
John Whitehead, banqueiro e funcionário público, presidente da Fundação World Trade Center Memorial, Estados Unidos
Ernesto Zedillo, ex-presidente do México
domingo, 26 de junho de 2011
sábado, 25 de junho de 2011
Uma História Não Contada
Vai chegando o 7 de Setembro, e é hora de contar uma história que pouquíssimas pessoas conhecem. Uma história passada em 1987, onde mais de 300 pessoas, entre eles punks, anarquistas e skatistas sofreram uma das maiores repressões da história deste país, numa manifestação antimilitarista em São Paulo.
Mas antes de entrar nessa história. Vamos contar como surgiu essas manifestações antimilitaristas no 7 de setembro, dia da “Independência do Brasil”, onde acontecem desfiles militares por todo o país.
O primeiro ato antimilitarista nessa data aconteceu em Brasília, em 1986, durante o desfile de 10 mil soldados, armamentos bélicos e politicagem em geral, em frente ao palanque do então presidente da república, o bigodudo José Sarney. Um grupo de anarquistas, punks e carecas, notadamente de São Paulo e Brasília, juntos, ergueram uma faixa, que dizia “Mais Armas, Mais Fome”, além de bandeiras negras, e palavras de ordem gritadas.
Com o enorme aparato de repressão, fardados ou à paisana, não demorou muito para o “pau comer”. Faixas, bandeiras e folhetos foram recolhidos pelos esbirros. Só não aconteceram prisões pelo receio do governo temer um tumulto generalizado.
Apesar da intimidação, os libertários continuaram protestando aos gritos, que se perdiam no meio da multidão.
E assim começa a história dos atos antimilitaristas nessa data “cívica”, se espalhando rapidamente por várias cidades do Brasil.
300 libertários presos e torturados em São Paulo
Agora estamos em 1987. Em São Paulo, resolvemos organizar um ato antimilitarista no dia do desfile militar, para dar continuação ao ato de Brasília. Quem estava puxando o protesto éramos nós, do Coletivo Libertário, que tinha participado da mani de BSB. Nessa época atuava nesse grupo, que era um dos mais ativos do Brasil.
Na verdade, o ato que tínhamos organizado era contra o armamentismo e contra a miséria existente no país. Tratava-se de uma manifestação pacifica, isto estava bem explicito nos cartazes e folhetos que confeccionamos, pois já temíamos a repressão.
Bem, dias antes do ato, o folheto de convocação da mani caiu nas mãos do Redson, do Cólera, uma banda punk, que tinha um programa na rádio 89 FM, com bastante audiência. Nesse período, o movimento punk numericamente tinha uma força, as bandas punks tocavam em algumas rádios, existia uma agitação punk, o skate estava na moda... Dizem que foi o segundo “boom” punk no Brasil.
Enfim...
O Redson, que tinha um perfil pacifista, gostou do texto, e leu na rádio, dando todas as dicas, local de concentração etc. Tínhamos marcado a concentração na estação Ponte Pequena do metrô. Não deu outra, no dia do ato, apareceram centenas de punks, libertários, skatistas. Mas também a polícia, que armou um dos maiores cercos repressivos aos libertários na história desse país. Nunca tinha visto algo igual. Praticamente em todas as estações do metrô tinha um grupo de policiais detendo pessoas com visual punk.
Eu, por sorte, não fui pego, pois não andava de visual. Porém, se fosse estaria frito, já que as faixas e folhetos para serem distribuídos na mani estavam comigo. Mas eu vi companheiros ficarem nus em praça pública para averiguação.
Os punks nem desciam do metrô e já eram jogados em caminhões da Polícia Militar, amarrados e levados para alguma delegacia. Nessas delegacias eram agredidos, torturados, tinham seus moicanos cortados. Eram obrigados a fazer a limpeza das delegacias, mulheres eram assediadas por policiais. Foi um horror! Só depois de muitas horas de humilhações que o pessoal foi solto. Mas alguns punks, como o punk Revolta, ficaram dias presos, sem sabermos onde estava detido.
Foi uma loucura, pois não tínhamos nenhuma estrutura de advogados, contatos... Foi desesperador não fazer nada, só esperar o tempo passar para que os companheiros fossem soltos. A manifestação mesmo nem aconteceu.
Moésio Rebouças
Folheto de convocação do ato
A consciência dos brasileiros fica suja ao permitir que no nosso país sejam feitos desfiles enaltecendo o desenvolvimento enaltecendo o desenvolvimento bélico. Devemos nos envergonhar por sermos o 3º maior exportador de armamentos leves do planeta. Assim é que ajudamos a se manterem no poder ditadores que armam suas polícias contra seus povos.
Assim é que nos alimentamos de guerras fatricidas em outros países enquanto a fome e a miséria social se tornam realidades cada vez mais presentes entre nós.
Toda riqueza vem do trabalho! Deveríamos orientar nossa força produtiva comum ao desenvolvimento do individuo e da coletividade, ao invés disso, 85% do resultado de nosso esforço comum se dirige à indústria bélica.
Quem é que se beneficia com o fabrico, exposição e venda de armas? Militares, políticos e banqueiros!!!
Eles fazem as guerras em que os melhores filhos do povo morrem como bucha de canhão.
Assim, de acordo com a nossa posição, convocamos uma manifestação pacífica, que acontecerá no dia do desfile militar de São Paulo, 7 de setembro. Concentração a partir das 8:00 horas da manhã na Estação Ponte Pequena do metrô.
Apelamos à participação de todas as pessoas que aspirem a uma sociedade livre e igualitária. Preparem suas faixas, fanzines, panfletos...
CONTRA ESTA SOCIEDADE MILITARIZADA
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Coletivo Libertário
Mas antes de entrar nessa história. Vamos contar como surgiu essas manifestações antimilitaristas no 7 de setembro, dia da “Independência do Brasil”, onde acontecem desfiles militares por todo o país.
O primeiro ato antimilitarista nessa data aconteceu em Brasília, em 1986, durante o desfile de 10 mil soldados, armamentos bélicos e politicagem em geral, em frente ao palanque do então presidente da república, o bigodudo José Sarney. Um grupo de anarquistas, punks e carecas, notadamente de São Paulo e Brasília, juntos, ergueram uma faixa, que dizia “Mais Armas, Mais Fome”, além de bandeiras negras, e palavras de ordem gritadas.
Com o enorme aparato de repressão, fardados ou à paisana, não demorou muito para o “pau comer”. Faixas, bandeiras e folhetos foram recolhidos pelos esbirros. Só não aconteceram prisões pelo receio do governo temer um tumulto generalizado.
Apesar da intimidação, os libertários continuaram protestando aos gritos, que se perdiam no meio da multidão.
E assim começa a história dos atos antimilitaristas nessa data “cívica”, se espalhando rapidamente por várias cidades do Brasil.
300 libertários presos e torturados em São Paulo
Agora estamos em 1987. Em São Paulo, resolvemos organizar um ato antimilitarista no dia do desfile militar, para dar continuação ao ato de Brasília. Quem estava puxando o protesto éramos nós, do Coletivo Libertário, que tinha participado da mani de BSB. Nessa época atuava nesse grupo, que era um dos mais ativos do Brasil.
Na verdade, o ato que tínhamos organizado era contra o armamentismo e contra a miséria existente no país. Tratava-se de uma manifestação pacifica, isto estava bem explicito nos cartazes e folhetos que confeccionamos, pois já temíamos a repressão.
Bem, dias antes do ato, o folheto de convocação da mani caiu nas mãos do Redson, do Cólera, uma banda punk, que tinha um programa na rádio 89 FM, com bastante audiência. Nesse período, o movimento punk numericamente tinha uma força, as bandas punks tocavam em algumas rádios, existia uma agitação punk, o skate estava na moda... Dizem que foi o segundo “boom” punk no Brasil.
Enfim...
O Redson, que tinha um perfil pacifista, gostou do texto, e leu na rádio, dando todas as dicas, local de concentração etc. Tínhamos marcado a concentração na estação Ponte Pequena do metrô. Não deu outra, no dia do ato, apareceram centenas de punks, libertários, skatistas. Mas também a polícia, que armou um dos maiores cercos repressivos aos libertários na história desse país. Nunca tinha visto algo igual. Praticamente em todas as estações do metrô tinha um grupo de policiais detendo pessoas com visual punk.
Eu, por sorte, não fui pego, pois não andava de visual. Porém, se fosse estaria frito, já que as faixas e folhetos para serem distribuídos na mani estavam comigo. Mas eu vi companheiros ficarem nus em praça pública para averiguação.
Os punks nem desciam do metrô e já eram jogados em caminhões da Polícia Militar, amarrados e levados para alguma delegacia. Nessas delegacias eram agredidos, torturados, tinham seus moicanos cortados. Eram obrigados a fazer a limpeza das delegacias, mulheres eram assediadas por policiais. Foi um horror! Só depois de muitas horas de humilhações que o pessoal foi solto. Mas alguns punks, como o punk Revolta, ficaram dias presos, sem sabermos onde estava detido.
Foi uma loucura, pois não tínhamos nenhuma estrutura de advogados, contatos... Foi desesperador não fazer nada, só esperar o tempo passar para que os companheiros fossem soltos. A manifestação mesmo nem aconteceu.
Moésio Rebouças
Folheto de convocação do ato
A consciência dos brasileiros fica suja ao permitir que no nosso país sejam feitos desfiles enaltecendo o desenvolvimento enaltecendo o desenvolvimento bélico. Devemos nos envergonhar por sermos o 3º maior exportador de armamentos leves do planeta. Assim é que ajudamos a se manterem no poder ditadores que armam suas polícias contra seus povos.
Assim é que nos alimentamos de guerras fatricidas em outros países enquanto a fome e a miséria social se tornam realidades cada vez mais presentes entre nós.
Toda riqueza vem do trabalho! Deveríamos orientar nossa força produtiva comum ao desenvolvimento do individuo e da coletividade, ao invés disso, 85% do resultado de nosso esforço comum se dirige à indústria bélica.
Quem é que se beneficia com o fabrico, exposição e venda de armas? Militares, políticos e banqueiros!!!
Eles fazem as guerras em que os melhores filhos do povo morrem como bucha de canhão.
Assim, de acordo com a nossa posição, convocamos uma manifestação pacífica, que acontecerá no dia do desfile militar de São Paulo, 7 de setembro. Concentração a partir das 8:00 horas da manhã na Estação Ponte Pequena do metrô.
Apelamos à participação de todas as pessoas que aspirem a uma sociedade livre e igualitária. Preparem suas faixas, fanzines, panfletos...
CONTRA ESTA SOCIEDADE MILITARIZADA
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Coletivo Libertário
sexta-feira, 24 de junho de 2011
Ecologia Social
Murray Bookchin
Porque Ecologia Social?
É hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses" os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta em virtude do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera, a descoberta de enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis ao uso exagerado de clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das radiações ultravioletas, a poluição maciça dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas e pelo abate incontrolado, a disseminação de material radioativo ao longo de toda a cadeia alimentar... tudo isto conferiu à ecologia uma importância que não tinha no passado. A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis que superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos do momento em que a Terra não estará em formas de manter a espécie humana nem as complexas formas de vida não humana, que se desenvolveram ao longo de milhões de anos de evolução orgânica.
Face a este cenário catastrófico há o risco, a julgar pelas tendências em curso na América do Norte e nalguns países da Europa ocidental, de se tentar curar os sintomas em vez das causas e de pessoas ecologicamente empenhadas procurarem soluções cosméticas em vez de respostas duradouras. O crescimento dos movimentos "verdes" um pouco por todo o mundo - inclusive no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo impulso para combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se cada vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um "impulso". Por importante que seja deter a construção de centrais nucleares, de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas ou reduzir a utilização de produtos químicos na agricultura e na indústria alimentar, é necessário darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a destruição planetária têm as suas raízes na economia mercantil do "cresce ou morres", num modo de produção que tem de expandir-se enquanto sistema concorrencial. O que está em causa não é a simples questão de "moralidade", de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo competitivo em que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor e em que cada empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento limitado é inevitável. Adquiriu a inexorabilidade duma lei física, funcionando independentemente de intenções individuais, de propensões psicológicas ou de considerações éticas.
Hecatombes de Quarenta Milhões de Bizontes
Atribuir toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia ou à "mentalidade tecnológica" e ao crescimento demográfico (para citar dois dos argumentos que mais freqüentemente emergem na mídia) é como castigar a porta que nos trancou ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A tecnologia - mesmo a má como os reatores nucleares- amplifica problemas existentes, não os cria. O crescimento populacional é um problema relativo, se efetivamente o é. Não é possível dizer com segurança quantas pessoas poderiam viver decentemente no planeta sem produzir transtornos ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, chacinaram quarenta milhões de bisontes, exterminaram espécies como o pombo correio, cujos bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta original e entregaram à erosão ótima terra cultivável, de superfície comparável à de um grande país europeu... e todo este dano foi levado a cabo com uma população de menos de cem milhões de habitantes e uma tecnologia atrasada, pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além da tecnologia e da pressão demográfica quando este drama se desenrolou. A praga que afligiu o continente americano era mais devastadora que uma praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar sem cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua versão privada a Ocidente e na sua forma burocrática a Oriente. Eufemismos como "sociedade tecnológica" ou "sociedade industrial", termos muito difundidos na literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição e não nas necessidades dos seres humanos e da vida não humana. Assim a tecnologia e a indústria são representadas como os protagonistas perversos deste drama, em vez do mercado e da ilimitada acumulação de capital, sistema de "crescimento" que por fim devorará toda a biosfera se para tanto se lhe consentir sobrevivência suficiente.
Sem Hierarquia e Sem Classes
Aos enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os criados por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes do nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me à mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio, em que o domínio do homem sobre o homem originou o conceito do domínio sobre a natureza como destino e necessidade da humanidade. É reconfortante que se haja insinuado no pensamento ecológico a idéia de que esta concepção do destino humano é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente como surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção. E se se quer achar remédio para o cataclismo ecológico, deve procurar-se a origem da hierarquia e do domínio. O fato da hierarquia sob todas as formas - domínio do jovem pelo velho, da mulher pelo homem, do homem pelo homem na forma de subordinação de classe, de casta, de etnia ou de qualquer outra estratificação da sociedade - não haver sido identificada como tendo âmbito mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das carências cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não forem erradicadas todas as hierarquias e não apenas a de classe, todas as formas de domínio e não apenas a exploração econômica.
Estas idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção de ecologia social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho cuidadosamente o uso que faço do termo "social", quando me ocupo de questões ecológicas, para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas ecológicos que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação social. Esta é uma idéia cujas implicações não foram ainda plenamente assimiladas pelo movimento ecológico. Levada ás suas conclusões lógicas significa que se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças são entraves que apenas reduzem a velocidade louca a que se está a destruir a biosfera. Devemos certamente ganhar o máximo tempo possível nesta corrida contra o biocídio e fazer todo o possível para a deter. Não obstante o biocídio prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade duma mudança radical e da de se organizarem para esse efeito. Deve aceitar-se a substituição da sociedade capitalista atual pelo que denomino "sociedade ecológica", isto é, por uma sociedade que implique as mutações sociais indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos.
É imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza de tal "sociedade ecológica". Algumas conclusões são quase óbvias. Uma sociedade ecológica deve ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar mesmo o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm de se retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora da instrução, defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor, os ideais humanistas que guiaram os pensadores anarquistas do passado devem ser recuperados na globalidade e transformados num humanismo ecológico que incarne nova racionalidade, nova ciência e nova tecnologia.
O motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários não é redutível aos meus gostos e predileções ideológicas. Trata-se realmente de ideais que não podem dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo empenhado ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo, sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma espécie de doença espiritual, uma atitude contra iluminista que, em nome do "regresso à natureza", evoca racionalismos atávicos, misticismos e religiosidade de índole "pagã". Culto de "divindades femininas", "tradições paleolíticas" (ou "neolíticas", consoante os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de ecologia vodu da administração Reagan) vão tomando forma deste e do outro lado do Atlântico em nome duma nova "espiritualidade". Este revivalismo do primitivismo não é fenômeno inócuo: frequentemente está imbuído de um neo-malthusianismo pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo, com a finalidade de "reduzir a população". A Natureza, diz-se, deve ser deixada livre para "seguir o seu curso". A fome e a carestia não são causadas, diz-se, pelos negócios agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas, pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm a sua origem na superpopulação. Deste modo o problema econômico é completamente esvaziado de conteúdo social e reduzido à interação mítica das forças naturais, freqüentemente com forte carga racista de pendor fascistizante. Por outro lado está em construção o mito tecnocrático segundo o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos. Como nas utopias de H. G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade duma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fantasias deste tipo estão implícitas na concepção da terra como "astronave" (segundo a grotesca metáfora de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela engenharia genética, nuclear eletrônica e política (para dar um nome altissonante à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização do Estado, desembocando na formação de "mega-Estados", em paralelo arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia se tornou popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo em versão ecológica, o sistema tecnoburocrático logrou grande popularidade entre os "eco-tecnocratas", criadores dum futurismo em versão ecológica. Nos dois casos o ideal libertário do iluminismo - valorização da liberdade, da instrução, da autonomia individual - são negados pela pretensão de nos impedir a quatro patas para um "passado" obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos catapultar como míssil para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e sinistro.
O Que É a Natureza
A ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posição singular, extraordinária - sem cair num mundo de cavernícolas anti-tecnológicos, nem levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e estações orbitais de fição científica. A humanidade faz parte da natureza, embora difira profundamente da vida não humana pela sua capacidade de pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente. A natureza, por sua vez, não é simplesmente cena panorâmica a olhar passivamente através da janela, é a evolução na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria biografia e não a simples edição de dados numéricos que exprimem o seu peso, altura, talvez "inteligência" e assim por diante. Os seres humanos não são unicamente uma entre muitas formas de vida, forma especializada para ocupar um dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres que, pelo menos potencialmente, podem tornar auto-consciente e, por conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica. Com isto não quero dizer que a humanidade chegue a ter conhecimento suficiente da complexidade do mundo natural para poder ser o tomoneiro da sua evolução, dirigindo-a à sua vontade. As minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que se requer) grande cautela nas modificações a empreender. Mas, como disse em "Pensar Ecologicamente", o que verdadeiramente nos faz únicos é podermos intervir na natureza com um grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido nas outras espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva é problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre a nossa interação com a natureza. Se as potencialidades humanas de auto-direção consciente da natureza são enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda menos que humanos.
A nossa espécie é uma espécie dividida - dividida antagonisticamente por idade, carácter, classe, rendimento, etnia, etc. - e não uma espécie unida. Falar de "humanidade" em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos ecologistas - inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não como seres sociais que vivem em complexas criações institucionais - é ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para se dar conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas uma realidade, um "dever ser" e não um "ser". Enquanto não tivermos criado uma sociedade ecológica, a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o planeta fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie menos evoluída do que as outras. Não conseguir ver que atingir a humanidade plena é problema social que depende de mutações institucionais e culturais fundamentais é reduzir a ecologia radical à zoologia e tornar quimérica qualquer tentativa de realizar uma sociedade ecológica.
Vínculos Comunitários
Como é possível conseguir as transformações sociais de grande alcance que preconizo? Não creio que possam vir do aparelho de Estado, quer dizer, num sistema parlamentar de substituição dum partido por outro (por altamente inspirado que este último possa parecer durante o seu período heróico de formação). A minha experiência com o movimento verde alemão demonstrou-me (partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração) que o parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos e totalmente corrupto na pior das hipóteses. A representação dos verdes no Bundestag confirmou, nestes últimos tempos, os meus piores temores: a sua maioria "realista" é favorável à participação da Alemanha Ocidental na NATO e apoia uma forma de "eco-capitalismo" (contradição nos termos) incompatível com qualquer abordagem ecológica radical.
Além disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação popular na política, no significado que há muitos séculos lhe é atribuído. Para os antigos atenienses política significava a gestão da polis, isto é, da cidade, diretamente pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através de burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente os homens eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros e escravos eram igualmente excluídos. É ainda verdade que os cidadãos ricos dispunham de recursos materiais e gozavam de privilégios recusados aos cidadãos pobres. Mas é também verdade que a antiga cidade mediterrânea não havia ainda alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu pleno desenvolvimento, a "sua verdade" como diria Hegel. A liberdade do cidadão participar na vida política não dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade em admitir que quando os teares tecessem sozinhos os gregos não necessitariam de escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho alheio para dispôr de tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas fazem o que Aristóteles dizia e muito mais. Podemos finalmente fruir o tempo livre necessário para nos desenvolvermos e participar amplamente na vida pública sem precisarmos de pôr em perigo o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia radical não pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas. O delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores e o seu uso com fins destrutivos para o planeta é matéria de apreciação social, mas tal apreciação é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis denunciam a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude indiscutível. Curiosamente, místicos e tecnocratas têm importante característica em comum: nem uns nem outros examinam a fundo os problemas nem seguem a lógica para além das premissas mais elementares e simplistas.
Uma nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação duma esfera pública "de base" extremamente participativa, a nível da cidade, do campo, das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruição tanto dos vínculos comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos encontramo-nos face a simplificação das relações humanas e não humanas, à sua redução a formas interativas e comunitárias elementares. Mas onde existam ainda laços comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades - possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e desenvolvidos. Estudei este tipo de política comunal (repito: entendo política no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino "estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização e o Declínio da Cidadania". Por difícil que pareça, na Europa (e em menor grau, creio, nos Estados Unidos) acredito na possibilidade duma confederação de municípios livres como contra-poder de base à centralização crescente do poder por parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo, a política ecológica é em muitos casos não apenas possível mas também coerente com a ecologia concebida como estudo da comunidade, quer humana quer não humana. Uma sociedade ecológica pressupõe formas participativas de base, comunitárias, que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia não é nada se se não ocupar do modo como interagem as formas de vida para construir e se desenvolverem como comunidades (...).
Porque Ecologia Social?
É hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses" os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta em virtude do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera, a descoberta de enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis ao uso exagerado de clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das radiações ultravioletas, a poluição maciça dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas e pelo abate incontrolado, a disseminação de material radioativo ao longo de toda a cadeia alimentar... tudo isto conferiu à ecologia uma importância que não tinha no passado. A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis que superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos do momento em que a Terra não estará em formas de manter a espécie humana nem as complexas formas de vida não humana, que se desenvolveram ao longo de milhões de anos de evolução orgânica.
Face a este cenário catastrófico há o risco, a julgar pelas tendências em curso na América do Norte e nalguns países da Europa ocidental, de se tentar curar os sintomas em vez das causas e de pessoas ecologicamente empenhadas procurarem soluções cosméticas em vez de respostas duradouras. O crescimento dos movimentos "verdes" um pouco por todo o mundo - inclusive no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo impulso para combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se cada vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um "impulso". Por importante que seja deter a construção de centrais nucleares, de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas ou reduzir a utilização de produtos químicos na agricultura e na indústria alimentar, é necessário darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a destruição planetária têm as suas raízes na economia mercantil do "cresce ou morres", num modo de produção que tem de expandir-se enquanto sistema concorrencial. O que está em causa não é a simples questão de "moralidade", de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo competitivo em que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor e em que cada empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento limitado é inevitável. Adquiriu a inexorabilidade duma lei física, funcionando independentemente de intenções individuais, de propensões psicológicas ou de considerações éticas.
Hecatombes de Quarenta Milhões de Bizontes
Atribuir toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia ou à "mentalidade tecnológica" e ao crescimento demográfico (para citar dois dos argumentos que mais freqüentemente emergem na mídia) é como castigar a porta que nos trancou ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A tecnologia - mesmo a má como os reatores nucleares- amplifica problemas existentes, não os cria. O crescimento populacional é um problema relativo, se efetivamente o é. Não é possível dizer com segurança quantas pessoas poderiam viver decentemente no planeta sem produzir transtornos ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, chacinaram quarenta milhões de bisontes, exterminaram espécies como o pombo correio, cujos bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta original e entregaram à erosão ótima terra cultivável, de superfície comparável à de um grande país europeu... e todo este dano foi levado a cabo com uma população de menos de cem milhões de habitantes e uma tecnologia atrasada, pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além da tecnologia e da pressão demográfica quando este drama se desenrolou. A praga que afligiu o continente americano era mais devastadora que uma praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar sem cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua versão privada a Ocidente e na sua forma burocrática a Oriente. Eufemismos como "sociedade tecnológica" ou "sociedade industrial", termos muito difundidos na literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição e não nas necessidades dos seres humanos e da vida não humana. Assim a tecnologia e a indústria são representadas como os protagonistas perversos deste drama, em vez do mercado e da ilimitada acumulação de capital, sistema de "crescimento" que por fim devorará toda a biosfera se para tanto se lhe consentir sobrevivência suficiente.
Sem Hierarquia e Sem Classes
Aos enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os criados por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes do nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me à mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio, em que o domínio do homem sobre o homem originou o conceito do domínio sobre a natureza como destino e necessidade da humanidade. É reconfortante que se haja insinuado no pensamento ecológico a idéia de que esta concepção do destino humano é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente como surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção. E se se quer achar remédio para o cataclismo ecológico, deve procurar-se a origem da hierarquia e do domínio. O fato da hierarquia sob todas as formas - domínio do jovem pelo velho, da mulher pelo homem, do homem pelo homem na forma de subordinação de classe, de casta, de etnia ou de qualquer outra estratificação da sociedade - não haver sido identificada como tendo âmbito mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das carências cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não forem erradicadas todas as hierarquias e não apenas a de classe, todas as formas de domínio e não apenas a exploração econômica.
Estas idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção de ecologia social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho cuidadosamente o uso que faço do termo "social", quando me ocupo de questões ecológicas, para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas ecológicos que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação social. Esta é uma idéia cujas implicações não foram ainda plenamente assimiladas pelo movimento ecológico. Levada ás suas conclusões lógicas significa que se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças são entraves que apenas reduzem a velocidade louca a que se está a destruir a biosfera. Devemos certamente ganhar o máximo tempo possível nesta corrida contra o biocídio e fazer todo o possível para a deter. Não obstante o biocídio prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade duma mudança radical e da de se organizarem para esse efeito. Deve aceitar-se a substituição da sociedade capitalista atual pelo que denomino "sociedade ecológica", isto é, por uma sociedade que implique as mutações sociais indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos.
É imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza de tal "sociedade ecológica". Algumas conclusões são quase óbvias. Uma sociedade ecológica deve ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar mesmo o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm de se retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora da instrução, defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor, os ideais humanistas que guiaram os pensadores anarquistas do passado devem ser recuperados na globalidade e transformados num humanismo ecológico que incarne nova racionalidade, nova ciência e nova tecnologia.
O motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários não é redutível aos meus gostos e predileções ideológicas. Trata-se realmente de ideais que não podem dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo empenhado ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo, sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma espécie de doença espiritual, uma atitude contra iluminista que, em nome do "regresso à natureza", evoca racionalismos atávicos, misticismos e religiosidade de índole "pagã". Culto de "divindades femininas", "tradições paleolíticas" (ou "neolíticas", consoante os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de ecologia vodu da administração Reagan) vão tomando forma deste e do outro lado do Atlântico em nome duma nova "espiritualidade". Este revivalismo do primitivismo não é fenômeno inócuo: frequentemente está imbuído de um neo-malthusianismo pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo, com a finalidade de "reduzir a população". A Natureza, diz-se, deve ser deixada livre para "seguir o seu curso". A fome e a carestia não são causadas, diz-se, pelos negócios agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas, pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm a sua origem na superpopulação. Deste modo o problema econômico é completamente esvaziado de conteúdo social e reduzido à interação mítica das forças naturais, freqüentemente com forte carga racista de pendor fascistizante. Por outro lado está em construção o mito tecnocrático segundo o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos. Como nas utopias de H. G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade duma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fantasias deste tipo estão implícitas na concepção da terra como "astronave" (segundo a grotesca metáfora de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela engenharia genética, nuclear eletrônica e política (para dar um nome altissonante à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização do Estado, desembocando na formação de "mega-Estados", em paralelo arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia se tornou popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo em versão ecológica, o sistema tecnoburocrático logrou grande popularidade entre os "eco-tecnocratas", criadores dum futurismo em versão ecológica. Nos dois casos o ideal libertário do iluminismo - valorização da liberdade, da instrução, da autonomia individual - são negados pela pretensão de nos impedir a quatro patas para um "passado" obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos catapultar como míssil para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e sinistro.
O Que É a Natureza
A ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posição singular, extraordinária - sem cair num mundo de cavernícolas anti-tecnológicos, nem levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e estações orbitais de fição científica. A humanidade faz parte da natureza, embora difira profundamente da vida não humana pela sua capacidade de pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente. A natureza, por sua vez, não é simplesmente cena panorâmica a olhar passivamente através da janela, é a evolução na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria biografia e não a simples edição de dados numéricos que exprimem o seu peso, altura, talvez "inteligência" e assim por diante. Os seres humanos não são unicamente uma entre muitas formas de vida, forma especializada para ocupar um dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres que, pelo menos potencialmente, podem tornar auto-consciente e, por conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica. Com isto não quero dizer que a humanidade chegue a ter conhecimento suficiente da complexidade do mundo natural para poder ser o tomoneiro da sua evolução, dirigindo-a à sua vontade. As minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que se requer) grande cautela nas modificações a empreender. Mas, como disse em "Pensar Ecologicamente", o que verdadeiramente nos faz únicos é podermos intervir na natureza com um grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido nas outras espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva é problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre a nossa interação com a natureza. Se as potencialidades humanas de auto-direção consciente da natureza são enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda menos que humanos.
A nossa espécie é uma espécie dividida - dividida antagonisticamente por idade, carácter, classe, rendimento, etnia, etc. - e não uma espécie unida. Falar de "humanidade" em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos ecologistas - inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não como seres sociais que vivem em complexas criações institucionais - é ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para se dar conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas uma realidade, um "dever ser" e não um "ser". Enquanto não tivermos criado uma sociedade ecológica, a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o planeta fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie menos evoluída do que as outras. Não conseguir ver que atingir a humanidade plena é problema social que depende de mutações institucionais e culturais fundamentais é reduzir a ecologia radical à zoologia e tornar quimérica qualquer tentativa de realizar uma sociedade ecológica.
Vínculos Comunitários
Como é possível conseguir as transformações sociais de grande alcance que preconizo? Não creio que possam vir do aparelho de Estado, quer dizer, num sistema parlamentar de substituição dum partido por outro (por altamente inspirado que este último possa parecer durante o seu período heróico de formação). A minha experiência com o movimento verde alemão demonstrou-me (partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração) que o parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos e totalmente corrupto na pior das hipóteses. A representação dos verdes no Bundestag confirmou, nestes últimos tempos, os meus piores temores: a sua maioria "realista" é favorável à participação da Alemanha Ocidental na NATO e apoia uma forma de "eco-capitalismo" (contradição nos termos) incompatível com qualquer abordagem ecológica radical.
Além disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação popular na política, no significado que há muitos séculos lhe é atribuído. Para os antigos atenienses política significava a gestão da polis, isto é, da cidade, diretamente pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através de burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente os homens eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros e escravos eram igualmente excluídos. É ainda verdade que os cidadãos ricos dispunham de recursos materiais e gozavam de privilégios recusados aos cidadãos pobres. Mas é também verdade que a antiga cidade mediterrânea não havia ainda alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu pleno desenvolvimento, a "sua verdade" como diria Hegel. A liberdade do cidadão participar na vida política não dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade em admitir que quando os teares tecessem sozinhos os gregos não necessitariam de escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho alheio para dispôr de tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas fazem o que Aristóteles dizia e muito mais. Podemos finalmente fruir o tempo livre necessário para nos desenvolvermos e participar amplamente na vida pública sem precisarmos de pôr em perigo o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia radical não pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas. O delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores e o seu uso com fins destrutivos para o planeta é matéria de apreciação social, mas tal apreciação é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis denunciam a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude indiscutível. Curiosamente, místicos e tecnocratas têm importante característica em comum: nem uns nem outros examinam a fundo os problemas nem seguem a lógica para além das premissas mais elementares e simplistas.
Uma nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação duma esfera pública "de base" extremamente participativa, a nível da cidade, do campo, das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruição tanto dos vínculos comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos encontramo-nos face a simplificação das relações humanas e não humanas, à sua redução a formas interativas e comunitárias elementares. Mas onde existam ainda laços comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades - possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e desenvolvidos. Estudei este tipo de política comunal (repito: entendo política no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino "estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização e o Declínio da Cidadania". Por difícil que pareça, na Europa (e em menor grau, creio, nos Estados Unidos) acredito na possibilidade duma confederação de municípios livres como contra-poder de base à centralização crescente do poder por parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo, a política ecológica é em muitos casos não apenas possível mas também coerente com a ecologia concebida como estudo da comunidade, quer humana quer não humana. Uma sociedade ecológica pressupõe formas participativas de base, comunitárias, que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia não é nada se se não ocupar do modo como interagem as formas de vida para construir e se desenvolverem como comunidades (...).
sábado, 18 de junho de 2011
Violência Policial na Unifap
Na madrugada (1:00h) de quinta para sexta feira (16/06 para 17/06), sete policiais militares acompanhados de 2 policiais federais e dos vigilantes, arrombaram o Centro Acadêmico de História (CAHIS) da UNIFAP (Federal do Amapá) e espancaram 6 estudantes que estavam escutando música e bebendo vinho.
Dentre os estudantes quem mais apanhou foi uma companheira, Daiane, do curso de história, que está com várias marcas pelo corpo, ela relata ter sido jogada no chão e espancada pelos PM's. Outro companheiro, Fábio, foi detido e levado para Polícia Federal, depois de ter sido espancado. O estudante Paulinho relata que na saída da viatura, os PM's teriam tentado atropelá-lo (tentativa de homicídio), sendo que ele desviou-se da viatura em sua bicicleta bateu em um buraco e caiu. Teve estudante que estava dormindo (Hugo) e foi acordado com tapa na cara.
Esta ação trata-se claramente de uma ação política da reitoria do reitor TAVARES, que ataca diretamente aqueles que lutam por uma universidade pública gratuita e de qualidade, e não se vendem nem se entregam à essa reitoria, que nas eleições recentes para o DCE bancou uma chapa que não obteve nem o mínimo necessário de votos para compor a diretoria.
Nossa ação foi imediata, fizemos ontem (17/06) mesmo um ato que ocupou o hall da reitoria e exigimos explicações da reitoria a respeito da ação praticada pelos covardes policiais, obviamente não tivemos nenhuma resposta, e o vice reitor, Prof. Filocreão ainda teve a cara de pau de dizer que não sabia de nada, é sempre assim, quando se trata de perseguir, agredir, maltratar estudantes e trabalhadores nunca ninguém sabe de nada.
Os companheiros foram a delegacia prestar queixa e vamos entrar com uma ação contra a UNIFAP.
É interessante dizer que os militantes da ANEL/PSTU e do Contra Ponto/PSOL-APS, inclusive diretores da recém eleita diretoria do DCE/UNIFAP, não se manifestaram e nem participaram dos atos de protesto realizados, o que deixa claro o que já sabiamos, que eles estão preocupados apenas com o aparato, cadeiras no DCE e no CONSU, e tirar delegados para congressos. Mas, os militantes libertários, independentes e do Coletivo Vamos à luta organizaram a resistência e vão continuar na luta ao lado dos estudantes.
Podem me bater, me espancar, me maltratar, me matar. Mas nunca, nunca, NUNCA ME CALARÃO!!!
Saudações Libertárias!
Dentre os estudantes quem mais apanhou foi uma companheira, Daiane, do curso de história, que está com várias marcas pelo corpo, ela relata ter sido jogada no chão e espancada pelos PM's. Outro companheiro, Fábio, foi detido e levado para Polícia Federal, depois de ter sido espancado. O estudante Paulinho relata que na saída da viatura, os PM's teriam tentado atropelá-lo (tentativa de homicídio), sendo que ele desviou-se da viatura em sua bicicleta bateu em um buraco e caiu. Teve estudante que estava dormindo (Hugo) e foi acordado com tapa na cara.
Esta ação trata-se claramente de uma ação política da reitoria do reitor TAVARES, que ataca diretamente aqueles que lutam por uma universidade pública gratuita e de qualidade, e não se vendem nem se entregam à essa reitoria, que nas eleições recentes para o DCE bancou uma chapa que não obteve nem o mínimo necessário de votos para compor a diretoria.
Nossa ação foi imediata, fizemos ontem (17/06) mesmo um ato que ocupou o hall da reitoria e exigimos explicações da reitoria a respeito da ação praticada pelos covardes policiais, obviamente não tivemos nenhuma resposta, e o vice reitor, Prof. Filocreão ainda teve a cara de pau de dizer que não sabia de nada, é sempre assim, quando se trata de perseguir, agredir, maltratar estudantes e trabalhadores nunca ninguém sabe de nada.
Os companheiros foram a delegacia prestar queixa e vamos entrar com uma ação contra a UNIFAP.
É interessante dizer que os militantes da ANEL/PSTU e do Contra Ponto/PSOL-APS, inclusive diretores da recém eleita diretoria do DCE/UNIFAP, não se manifestaram e nem participaram dos atos de protesto realizados, o que deixa claro o que já sabiamos, que eles estão preocupados apenas com o aparato, cadeiras no DCE e no CONSU, e tirar delegados para congressos. Mas, os militantes libertários, independentes e do Coletivo Vamos à luta organizaram a resistência e vão continuar na luta ao lado dos estudantes.
Podem me bater, me espancar, me maltratar, me matar. Mas nunca, nunca, NUNCA ME CALARÃO!!!
Saudações Libertárias!
sexta-feira, 17 de junho de 2011
O PLANETA DOENTE
Guy Debord
A "poluição" está hoje na moda, exatamente da mesma maneira que a revolução: ela se apodera de toda a vida da sociedade e é representada ilusoriamente no espetáculo. Ela é tagarelice tediosa numa pletora de escritos e de discursos errôneos e mistificadores, e ela pega todo mundo pelo pescoço nos fatos. Ela se expõe em todo lugar enquanto ideologia e ganha terreno enquanto processo real. Esses dois movimentos antagônicos, o estágio supremo da produção mercantil e o projeto de sua negação total, igualmente ricos de contradições neles mesmos, crescem em conjunto. São os dois lados pelos quais se manifesta um mesmo momento histórico há muito tempo esperado e freqüentemente previsto sob figuras parciais inadequadas: a impossibilidade da continuação do funcionamento do capitalismo.
A época que tem todos os meios técnicos de alterar as condições de vida na Terra é igualmente a época que, pelo mesmo desenvolvimento técnico e científico separado, dispõe de todos os meios de controle e de previsão matematicamente indubitável para medir com exatidão antecipada para onde conduz - e em que data - o crescimento automático das forças produtivas alienadas da sociedade de classes: isto é, para medir a degradação rápida das condições de sobrevida, no sentido o mais geral e o mais trivial do termo.
Enquanto imbecis passadistas ainda dissertam sobre, e contra, uma crítica estética de tudo isso, e crêem mostrar-se lúcidos e modernos por se mostrarem esposados com seu século, proclamando que a auto-estrada ou Sarcelles têm sua beleza que se deveria preferir ao desconforto dos "pitorescos" bairros antigos ou ainda fazendo observar gravemente que o conjunto da população come melhor, a despeito das nostalgias da boa cozinha, já o problema da degradação da totalidade do ambiente natural e humano deixou completamente de se colocar no plano da pretensa qualidade antiga, estética ou outra, para se tornar radicalmente o próprio problema da possibilidade material de existência do mundo que persegue um tal movimento. A impossibilidade está de fato já perfeitamente demonstrada por todo o conhecimento científico separado, que discute somente sua data de vencimento; e os paliativos que, se fossem aplicados firmemente, a poderiam regular superficialmente. Uma tal ciência apenas pode acompanhar em direção à destruição o mundo que a produziu e que a mantém; mas ela é obrigada a fazê-lo com os olhos abertos. Ela mostra assim, num nível caricatural, a inutilidade do conhecimento sem uso.
Mede-se e se extrapola com uma precisão excelente o aumento rápido da poluição química da atmosfera respirável, da água dos rios, dos lagos e até mesmo dos oceanos; e o aumento irreversível da radioatividade acumulada pelo desenvolvimento pacífico da energia nuclear, dos efeitos do barulho, da invasão do espaço por produtos de materiais plásticos que podem exigir uma eternidade de depósito universal, da natalidade louca, da falsificação insensata dos alimentos, da lepra urbanística que se estende sempre mais no lugar do que antes foram a cidade e o campo; assim como as doenças mentais - aí compreendidas as fobias neuróticas e as alucinações que não poderiam deixar de se multiplicar bem cedo sobre o tema da própria poluição, da qual se mostra em todo lugar a imagem alarmante - e do suicídio, cujas taxas de expansão se entrecruzam já exatamente com as de edificação de um tal ambiente (para não falar dos efeitos da guerra atômica ou bacteriológica, cujos meios estão posicionados como a espada de Dêmocles, mas permanecem evidentemente evitáveis).
Logo, se a amplitude e a própria realidade dos "terrores do Ano Mil" são ainda um assunto controverso entre os historiadores, o terror do Ano Dois Mil é tão patente quanto bem fundado; ele é desde o presente uma certeza científica. Contudo, o que se passa não é em si mesmo nada novo: é somente o fim necessário do antigo processo. Uma sociedade cada vez mais doente, mas cada vez mais poderosa, recriou em todo lugar concretamente o mundo como ambiente e décor de sua doença, enquanto planeta doente. Uma sociedade que não se tornou ainda homogênea e que não é mais determinada por si mesma, mas cada vez mais por uma parte dela mesma que lhe é superior, desenvolveu um movimento de dominação da natureza que contudo não se dominou a si mesmo. O capitalismo finalmente trouxe a prova, por seu próprio movimento, de que ele não pode mais desenvolver as forças produtivas; e isso não quantitativamente, como muitos acreditaram compreender, mas qualitativamente.
Contudo, para o pensamento burguês, metodologicamente, somente o quantitativo é o sério, o mensurável, o efetivo; e o qualitativo é somente a incerta decoração subjetiva ou artística do verdadeiro real estimado em seu verdadeiro peso. Ao contrário, para o pensamento dialético, portanto, para a história e para o proletariado, o qualitativo é a dimensão a mais decisiva do desenvolvimento real. Eis aí o que o capitalismo e nós terminamos por demonstrar.
Os senhores da sociedade são obrigados agora a falar da poluição, tanto para combatê-la (pois eles vivem, apesar de tudo, no mesmo planeta que nós; é este o único sentido ao qual se pode admitir que o desenvolvimento do capitalismo realizou efetivamente uma certa fusão das classes) e para a dissimular, pois a simples verdade dos danos e dos riscos presentes basta para constituir um imenso fator de revolta, uma exigência materialista dos explorados, tão inteiramente vital quanto o foi a luta dos proletários do século XIX pela possibilidade de comer. Após o fracasso fundamental de todos os reformismos do passado - que aspiram todos eles à solução definitiva do problema das classes -, um novo reformismo se desenha, que obedece às mesmas necessidades que os precedentes: lubrificar a máquina e abrir novas oportunidades de lucros às empresas de ponta. O setor mais moderno da indústria se lança nos diferentes paliativos da poluição, como em um novo nicho de mercado, tanto mais rentável quanto mais uma boa parte do capital monopolizado pelo Estado nele está a empregar e a manobrar. Mas se este novo reformismo tem de antemão a garantia de seu fracasso, exatamente pelas mesmas razões que os reformismos passados, ele guarda em face deles a radical diferença de que não tem mais tempo diante de si.
O desenvolvimento da produção se verificou inteiramente até aqui enquanto realização da economia política: desenvolvimento da miséria, que invadiu e estragou o próprio meio da vida. A sociedade em que os produtores se matam no trabalho, e cujo resultado devem somente contemplar, lhes deixa claramente ver, e respirar, o resultado geral do trabalho alienado enquanto resultado de morte. Na sociedade da economia superdesenvolvida, tudo entrou na esfera dos bens econômicos, mesmo a água das fontes e o ar das cidades, quer dizer que tudo se tornou o mal econômico, "negação acabada do homem" que atinge agora sua perfeita conclusão material. O conflito entre as forças produtivas modernas e as relações de produção, burguesas ou burocráticas, da sociedade capitalista entrou em sua fase última. A produção da não-vida prosseguiu cada vez mais seu processo linear e cumulativo; vindo a atravessar um último limiar em seu progresso, ela produz agora diretamente a morte.
A função última, confessada, essencial, da economia desenvolvida hoje, no mundo inteiro em que reina o trabalho-mercadoria, que assegura todo o poder a seus patrões, é a produção dos empregos. Está-se bem longe das idéias "progressistas" do século anterior [século XIX] sobre a diminuição possível do trabalho humano pela multiplicação científica e técnica da produtividade, que se supunha assegurar sempre mais facilmente a satisfação das necessidades anteriormente reconhecidas por todos reais e sem alteração fundamental da qualidade mesma dos bens que se encontrariam disponíveis. É presentemente para produzir empregos, até nos campos esvaziados de camponeses, ou seja, para utilizar o trabalho humano enquanto trabalho alienado, enquanto salariado, que se faz todo o resto; e, portanto, que se ameaça estupidamente as bases, atualmente mais frágeis ainda que a pensamento de um Kennedy ou de um Brejnev, da vida da espécie.
O velho oceano é em si mesmo indiferente à poluição; mas a história não o é. Ela somente pode ser salva pela abolição do trabalho-mercadoria. E nunca a consciência histórica teve tanta necessidade de dominar com tanta urgência seu mundo, pois o inimigo que está à sua porta não é mais a ilusão, mas sua morte.
Quando os pobres senhores da sociedade da qual vemos a deplorável conclusão, bem pior do que todas as condenações que puderam fulminar outrora os mais radicais dos utopistas, devem presentemente reconhecer que nosso ambiente se tornou social, que a gestão de tudo se tornou um negócio diretamente político, até as ervas dos campos e a possibilidade de beber, até a possibilidade de dormir sem muitos soníferos ou de tomar um banho sem sofrer de alergias, num tal momento se deve ver também que a velha política especializada deve reconhecer que ela está completamente finda.
Ela está finda na forma suprema de seu voluntarismo: o poder burocrático totalitário dos regimes ditos socialistas, porque os burocratas no poder não se mostraram capazes nem mesmo de gerir o estágio anterior da economia capitalista. Se eles poluem muito menos - apenas os Estados Unidos produzem sozinhos 50% da poluição mundial - é porque são muito mais pobres. Eles somente podem, como por exemplo a China, reunindo em bloco uma parte desproporcionada de sua contabilidade de miséria, comprar a parte de poluição de prestígio das potências pobres, algumas descobertas e aperfeiçoamentos nas técnicas da guerra termonuclear, ou mais exatamente, do espetáculo ameaçador. Tanta pobreza, material e mental, sustentada por tanto terrorismo, condena as burocracias no poder. E o que condena o poder burguês mais modernizado é o resultado insuportável de tanta riqueza efetivamente empestada. A gestão dita democrática do capitalismo, em qualquer país que seja, somente oferece suas eleições-demissões que, sempre se viu, nunca mudava nada no conjunto, e mesmo muito pouco no detalhe, numa sociedade de classes que se imaginava poder durar indefinidamente. Elas aí não mudam nada de mais no momento em que a própria gestão enlouquece e finge desejar, para cortar certos problemas secundários embora urgentes, algumas vagas diretrizes do eleitorado alienado e cretinizado (U.S.A., Itália, Inglaterra, França). Todos os observadores especializados sempre salientaram - sem se preocuparem em explicar - o fato de que o eleitor não muda nunca de "opinião": é justamente porque é eleitor, o que assume, por um breve instante, o papel abstrato que é precisamente destinado a impedir de ser por si mesmo, e de mudar (o mecanismo foi demonstrado centenas de vezes, tanto pela análise política desmistificada quanto pelas explicações da psicanálise revolucionária). O eleitor não muda mais quando o mundo muda sempre mais precipitadamente em torno dele e, enquanto eleitor, ele não mudaria mesmo às vésperas do fim do mundo. Todo sistema representativo é essencialmente conservador, mesmo se as condições de existência da sociedade capitalista não puderam nunca ser conservadas: elas se modificam sem interrupção, e sempre mais rápido, mas a decisão - que afinal é sempre a decisão de liberar o próprio processo da produção capitalista - é deixada inteiramente aos especialistas da publicidade, quer sejam eles únicos na competição ou em concorrência com aqueles que vão fazer a mesma coisa, e aliás o anunciam abertamente. Contudo, o homem que vota "livremente" nos gaullistas ou no P.C.F., tanto quanto o homem que vota, constrangido e forçado, num Gomulka, é capaz de mostrar o que ele verdadeiramente é, na semana seguinte, participando de uma greve selvagem ou de uma insurreição.
A autoproclamada "luta contra a poluição", por seu aspecto estatal e legalista, vai de início criar novas especializações, serviços ministeriais, cargos, promoção burocrática. E sua eficácia estará completamente na medida de tais meios. Mas ela somente pode se tornar uma vontade real ao transformar o sistema produtivo atual em suas próprias raízes. E somente pode ser aplicada firmemente no instante em que todas suas decisões, tomadas democraticamente em conhecimento pleno de causa, pelos produtores, estiverem a todo instante controladas e executadas pelos próprios produtores (por exemplo, os navios derramarão infalivelmente seu petróleo no mar enquanto não estiverem sob a autoridade de reais soviets de marinheiros). Para decidir e executar tudo isso, é preciso que os produtores se tornem adultos: é preciso que se apoderem todos do poder.
O otimismo científico do século XIX se desmoronou em três pontos essenciais. Primeiro, a pretensão de garantir a revolução como resolução feliz dos conflitos existentes (esta era a ilusão hegelo-esquerdista e marxista; a menos notada na intelligentsia burguesa, mas a mais rica e, afinal, a menos ilusória). Segundo, a visão coerente do universo, e mesmo simplesmente, da matéria. Terceiro, o sentimento eufórico e linear do desenvolvimento das forças produtivas. Se nós dominarmos o primeiro ponto, teremos resolvido o terceiro; e saberemos fazer bem mais tarde do segundo nossa ocupação e nosso jogo. Não é preciso tratar dos sintomas, mas da própria doença. Hoje o medo está em todo lugar, somente sairemos dele confiando-nos em nossas próprias forças, em nossa capacidade de destruir toda alienação existente e toda imagem do poder que nos escapou. Remetendo tudo, com exceção de nós próprios, ao único poder dos Conselhos de Trabalhadores possuindo e reconstruindo a todo instante a totalidade do mundo, ou seja, à racionalidade verdadeira, a uma legitimidade nova.
Em matéria de ambiente "natural" e construído, de natalidade, de biologia, de produção, de "loucura" etc., não haverá que escolher entre a festa e a infelicidade, mas, conscientemente e em cada encruzilhada, entre, de um lado, mil possibilidades felizes ou desastrosas, relativamente corrigíveis, e, de outra parte, o nada. As escolhas terríveis do futuro próximo deixam esta única alternativa: democracia total ou burocracia total. Aqueles que duvidam da democracia total devem esforçar-se para fazer por si mesmos a prova dela, dando-lhe a oportunidade de se provar em marcha; ou somente lhes resta comprar seu túmulo a prestações, pois "a autoridade, se a viu em obra, e suas obras a condenam" (Jacques Déjacque).
"A revolução ou a morte": esse slogan não é mais a expressão lírica da consciência revoltada, é a última palavra do pensamento científico de nosso século [XX]. Isso se aplica aos perigos da espécie como à impossibilidade de adesão pelos indivíduos. Nesta sociedade em que o suicídio progride como se sabe, os especialistas tiveram que reconhecer, com um certo despeito, que ele caíra a quase nada em maio de 1968. Essa primavera obteve assim, sem precisamente subi-lo em assalto, um bom céu, porque alguns carros queimaram e porque a todos os outros faltou combustível para poluir. Quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover. A revolução faz o bom tempo.
A "poluição" está hoje na moda, exatamente da mesma maneira que a revolução: ela se apodera de toda a vida da sociedade e é representada ilusoriamente no espetáculo. Ela é tagarelice tediosa numa pletora de escritos e de discursos errôneos e mistificadores, e ela pega todo mundo pelo pescoço nos fatos. Ela se expõe em todo lugar enquanto ideologia e ganha terreno enquanto processo real. Esses dois movimentos antagônicos, o estágio supremo da produção mercantil e o projeto de sua negação total, igualmente ricos de contradições neles mesmos, crescem em conjunto. São os dois lados pelos quais se manifesta um mesmo momento histórico há muito tempo esperado e freqüentemente previsto sob figuras parciais inadequadas: a impossibilidade da continuação do funcionamento do capitalismo.
A época que tem todos os meios técnicos de alterar as condições de vida na Terra é igualmente a época que, pelo mesmo desenvolvimento técnico e científico separado, dispõe de todos os meios de controle e de previsão matematicamente indubitável para medir com exatidão antecipada para onde conduz - e em que data - o crescimento automático das forças produtivas alienadas da sociedade de classes: isto é, para medir a degradação rápida das condições de sobrevida, no sentido o mais geral e o mais trivial do termo.
Enquanto imbecis passadistas ainda dissertam sobre, e contra, uma crítica estética de tudo isso, e crêem mostrar-se lúcidos e modernos por se mostrarem esposados com seu século, proclamando que a auto-estrada ou Sarcelles têm sua beleza que se deveria preferir ao desconforto dos "pitorescos" bairros antigos ou ainda fazendo observar gravemente que o conjunto da população come melhor, a despeito das nostalgias da boa cozinha, já o problema da degradação da totalidade do ambiente natural e humano deixou completamente de se colocar no plano da pretensa qualidade antiga, estética ou outra, para se tornar radicalmente o próprio problema da possibilidade material de existência do mundo que persegue um tal movimento. A impossibilidade está de fato já perfeitamente demonstrada por todo o conhecimento científico separado, que discute somente sua data de vencimento; e os paliativos que, se fossem aplicados firmemente, a poderiam regular superficialmente. Uma tal ciência apenas pode acompanhar em direção à destruição o mundo que a produziu e que a mantém; mas ela é obrigada a fazê-lo com os olhos abertos. Ela mostra assim, num nível caricatural, a inutilidade do conhecimento sem uso.
Mede-se e se extrapola com uma precisão excelente o aumento rápido da poluição química da atmosfera respirável, da água dos rios, dos lagos e até mesmo dos oceanos; e o aumento irreversível da radioatividade acumulada pelo desenvolvimento pacífico da energia nuclear, dos efeitos do barulho, da invasão do espaço por produtos de materiais plásticos que podem exigir uma eternidade de depósito universal, da natalidade louca, da falsificação insensata dos alimentos, da lepra urbanística que se estende sempre mais no lugar do que antes foram a cidade e o campo; assim como as doenças mentais - aí compreendidas as fobias neuróticas e as alucinações que não poderiam deixar de se multiplicar bem cedo sobre o tema da própria poluição, da qual se mostra em todo lugar a imagem alarmante - e do suicídio, cujas taxas de expansão se entrecruzam já exatamente com as de edificação de um tal ambiente (para não falar dos efeitos da guerra atômica ou bacteriológica, cujos meios estão posicionados como a espada de Dêmocles, mas permanecem evidentemente evitáveis).
Logo, se a amplitude e a própria realidade dos "terrores do Ano Mil" são ainda um assunto controverso entre os historiadores, o terror do Ano Dois Mil é tão patente quanto bem fundado; ele é desde o presente uma certeza científica. Contudo, o que se passa não é em si mesmo nada novo: é somente o fim necessário do antigo processo. Uma sociedade cada vez mais doente, mas cada vez mais poderosa, recriou em todo lugar concretamente o mundo como ambiente e décor de sua doença, enquanto planeta doente. Uma sociedade que não se tornou ainda homogênea e que não é mais determinada por si mesma, mas cada vez mais por uma parte dela mesma que lhe é superior, desenvolveu um movimento de dominação da natureza que contudo não se dominou a si mesmo. O capitalismo finalmente trouxe a prova, por seu próprio movimento, de que ele não pode mais desenvolver as forças produtivas; e isso não quantitativamente, como muitos acreditaram compreender, mas qualitativamente.
Contudo, para o pensamento burguês, metodologicamente, somente o quantitativo é o sério, o mensurável, o efetivo; e o qualitativo é somente a incerta decoração subjetiva ou artística do verdadeiro real estimado em seu verdadeiro peso. Ao contrário, para o pensamento dialético, portanto, para a história e para o proletariado, o qualitativo é a dimensão a mais decisiva do desenvolvimento real. Eis aí o que o capitalismo e nós terminamos por demonstrar.
Os senhores da sociedade são obrigados agora a falar da poluição, tanto para combatê-la (pois eles vivem, apesar de tudo, no mesmo planeta que nós; é este o único sentido ao qual se pode admitir que o desenvolvimento do capitalismo realizou efetivamente uma certa fusão das classes) e para a dissimular, pois a simples verdade dos danos e dos riscos presentes basta para constituir um imenso fator de revolta, uma exigência materialista dos explorados, tão inteiramente vital quanto o foi a luta dos proletários do século XIX pela possibilidade de comer. Após o fracasso fundamental de todos os reformismos do passado - que aspiram todos eles à solução definitiva do problema das classes -, um novo reformismo se desenha, que obedece às mesmas necessidades que os precedentes: lubrificar a máquina e abrir novas oportunidades de lucros às empresas de ponta. O setor mais moderno da indústria se lança nos diferentes paliativos da poluição, como em um novo nicho de mercado, tanto mais rentável quanto mais uma boa parte do capital monopolizado pelo Estado nele está a empregar e a manobrar. Mas se este novo reformismo tem de antemão a garantia de seu fracasso, exatamente pelas mesmas razões que os reformismos passados, ele guarda em face deles a radical diferença de que não tem mais tempo diante de si.
O desenvolvimento da produção se verificou inteiramente até aqui enquanto realização da economia política: desenvolvimento da miséria, que invadiu e estragou o próprio meio da vida. A sociedade em que os produtores se matam no trabalho, e cujo resultado devem somente contemplar, lhes deixa claramente ver, e respirar, o resultado geral do trabalho alienado enquanto resultado de morte. Na sociedade da economia superdesenvolvida, tudo entrou na esfera dos bens econômicos, mesmo a água das fontes e o ar das cidades, quer dizer que tudo se tornou o mal econômico, "negação acabada do homem" que atinge agora sua perfeita conclusão material. O conflito entre as forças produtivas modernas e as relações de produção, burguesas ou burocráticas, da sociedade capitalista entrou em sua fase última. A produção da não-vida prosseguiu cada vez mais seu processo linear e cumulativo; vindo a atravessar um último limiar em seu progresso, ela produz agora diretamente a morte.
A função última, confessada, essencial, da economia desenvolvida hoje, no mundo inteiro em que reina o trabalho-mercadoria, que assegura todo o poder a seus patrões, é a produção dos empregos. Está-se bem longe das idéias "progressistas" do século anterior [século XIX] sobre a diminuição possível do trabalho humano pela multiplicação científica e técnica da produtividade, que se supunha assegurar sempre mais facilmente a satisfação das necessidades anteriormente reconhecidas por todos reais e sem alteração fundamental da qualidade mesma dos bens que se encontrariam disponíveis. É presentemente para produzir empregos, até nos campos esvaziados de camponeses, ou seja, para utilizar o trabalho humano enquanto trabalho alienado, enquanto salariado, que se faz todo o resto; e, portanto, que se ameaça estupidamente as bases, atualmente mais frágeis ainda que a pensamento de um Kennedy ou de um Brejnev, da vida da espécie.
O velho oceano é em si mesmo indiferente à poluição; mas a história não o é. Ela somente pode ser salva pela abolição do trabalho-mercadoria. E nunca a consciência histórica teve tanta necessidade de dominar com tanta urgência seu mundo, pois o inimigo que está à sua porta não é mais a ilusão, mas sua morte.
Quando os pobres senhores da sociedade da qual vemos a deplorável conclusão, bem pior do que todas as condenações que puderam fulminar outrora os mais radicais dos utopistas, devem presentemente reconhecer que nosso ambiente se tornou social, que a gestão de tudo se tornou um negócio diretamente político, até as ervas dos campos e a possibilidade de beber, até a possibilidade de dormir sem muitos soníferos ou de tomar um banho sem sofrer de alergias, num tal momento se deve ver também que a velha política especializada deve reconhecer que ela está completamente finda.
Ela está finda na forma suprema de seu voluntarismo: o poder burocrático totalitário dos regimes ditos socialistas, porque os burocratas no poder não se mostraram capazes nem mesmo de gerir o estágio anterior da economia capitalista. Se eles poluem muito menos - apenas os Estados Unidos produzem sozinhos 50% da poluição mundial - é porque são muito mais pobres. Eles somente podem, como por exemplo a China, reunindo em bloco uma parte desproporcionada de sua contabilidade de miséria, comprar a parte de poluição de prestígio das potências pobres, algumas descobertas e aperfeiçoamentos nas técnicas da guerra termonuclear, ou mais exatamente, do espetáculo ameaçador. Tanta pobreza, material e mental, sustentada por tanto terrorismo, condena as burocracias no poder. E o que condena o poder burguês mais modernizado é o resultado insuportável de tanta riqueza efetivamente empestada. A gestão dita democrática do capitalismo, em qualquer país que seja, somente oferece suas eleições-demissões que, sempre se viu, nunca mudava nada no conjunto, e mesmo muito pouco no detalhe, numa sociedade de classes que se imaginava poder durar indefinidamente. Elas aí não mudam nada de mais no momento em que a própria gestão enlouquece e finge desejar, para cortar certos problemas secundários embora urgentes, algumas vagas diretrizes do eleitorado alienado e cretinizado (U.S.A., Itália, Inglaterra, França). Todos os observadores especializados sempre salientaram - sem se preocuparem em explicar - o fato de que o eleitor não muda nunca de "opinião": é justamente porque é eleitor, o que assume, por um breve instante, o papel abstrato que é precisamente destinado a impedir de ser por si mesmo, e de mudar (o mecanismo foi demonstrado centenas de vezes, tanto pela análise política desmistificada quanto pelas explicações da psicanálise revolucionária). O eleitor não muda mais quando o mundo muda sempre mais precipitadamente em torno dele e, enquanto eleitor, ele não mudaria mesmo às vésperas do fim do mundo. Todo sistema representativo é essencialmente conservador, mesmo se as condições de existência da sociedade capitalista não puderam nunca ser conservadas: elas se modificam sem interrupção, e sempre mais rápido, mas a decisão - que afinal é sempre a decisão de liberar o próprio processo da produção capitalista - é deixada inteiramente aos especialistas da publicidade, quer sejam eles únicos na competição ou em concorrência com aqueles que vão fazer a mesma coisa, e aliás o anunciam abertamente. Contudo, o homem que vota "livremente" nos gaullistas ou no P.C.F., tanto quanto o homem que vota, constrangido e forçado, num Gomulka, é capaz de mostrar o que ele verdadeiramente é, na semana seguinte, participando de uma greve selvagem ou de uma insurreição.
A autoproclamada "luta contra a poluição", por seu aspecto estatal e legalista, vai de início criar novas especializações, serviços ministeriais, cargos, promoção burocrática. E sua eficácia estará completamente na medida de tais meios. Mas ela somente pode se tornar uma vontade real ao transformar o sistema produtivo atual em suas próprias raízes. E somente pode ser aplicada firmemente no instante em que todas suas decisões, tomadas democraticamente em conhecimento pleno de causa, pelos produtores, estiverem a todo instante controladas e executadas pelos próprios produtores (por exemplo, os navios derramarão infalivelmente seu petróleo no mar enquanto não estiverem sob a autoridade de reais soviets de marinheiros). Para decidir e executar tudo isso, é preciso que os produtores se tornem adultos: é preciso que se apoderem todos do poder.
O otimismo científico do século XIX se desmoronou em três pontos essenciais. Primeiro, a pretensão de garantir a revolução como resolução feliz dos conflitos existentes (esta era a ilusão hegelo-esquerdista e marxista; a menos notada na intelligentsia burguesa, mas a mais rica e, afinal, a menos ilusória). Segundo, a visão coerente do universo, e mesmo simplesmente, da matéria. Terceiro, o sentimento eufórico e linear do desenvolvimento das forças produtivas. Se nós dominarmos o primeiro ponto, teremos resolvido o terceiro; e saberemos fazer bem mais tarde do segundo nossa ocupação e nosso jogo. Não é preciso tratar dos sintomas, mas da própria doença. Hoje o medo está em todo lugar, somente sairemos dele confiando-nos em nossas próprias forças, em nossa capacidade de destruir toda alienação existente e toda imagem do poder que nos escapou. Remetendo tudo, com exceção de nós próprios, ao único poder dos Conselhos de Trabalhadores possuindo e reconstruindo a todo instante a totalidade do mundo, ou seja, à racionalidade verdadeira, a uma legitimidade nova.
Em matéria de ambiente "natural" e construído, de natalidade, de biologia, de produção, de "loucura" etc., não haverá que escolher entre a festa e a infelicidade, mas, conscientemente e em cada encruzilhada, entre, de um lado, mil possibilidades felizes ou desastrosas, relativamente corrigíveis, e, de outra parte, o nada. As escolhas terríveis do futuro próximo deixam esta única alternativa: democracia total ou burocracia total. Aqueles que duvidam da democracia total devem esforçar-se para fazer por si mesmos a prova dela, dando-lhe a oportunidade de se provar em marcha; ou somente lhes resta comprar seu túmulo a prestações, pois "a autoridade, se a viu em obra, e suas obras a condenam" (Jacques Déjacque).
"A revolução ou a morte": esse slogan não é mais a expressão lírica da consciência revoltada, é a última palavra do pensamento científico de nosso século [XX]. Isso se aplica aos perigos da espécie como à impossibilidade de adesão pelos indivíduos. Nesta sociedade em que o suicídio progride como se sabe, os especialistas tiveram que reconhecer, com um certo despeito, que ele caíra a quase nada em maio de 1968. Essa primavera obteve assim, sem precisamente subi-lo em assalto, um bom céu, porque alguns carros queimaram e porque a todos os outros faltou combustível para poluir. Quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover. A revolução faz o bom tempo.
quarta-feira, 15 de junho de 2011
SOBRE A GEOGRAFIA CULTURAL
Roberto Lobato Corrêa
Departamento de Geografia – UFRJ
O presente texto procura encaminhar alguns pontos relativos à natureza da geografia cultural, visando clarificar aspectos pouco claros ou mal assimilados por parte de muitos geógrafos, decorridos mais de 12 anos de existência do periódico Espaço e Cultura e após a publicação de 13 volumes de livros da série “Geografia Cultural”.
A pouca clareza em relação à geografia cultural decorre, em grande parte, do fato dela estar, em sua trajetória no Brasil, em um terceiro momento. O primeiro momento, que pode ser visto como estendendo-se do começo da década de 1990 até o seu final, caracterizou-se pela não aceitação do sub-campo que, percebido como novo, foi visto, como qualquer sub-campo novo, como capaz de abalar as estruturas do poder acadêmico. O segundo momento, entre 2001 e 2005 aproximadamente, caracterizou-se por uma relativa aceitação do sub-campo, incluindo aqueles que no primeiro momento foram os seus críticos. A geografia cultural passa a ser vista progressivamente como uma novidade interessante. O terceiro momento é o de sua vulgarização, no qual a antiga “novidade” é adotada, via de regra apressadamente, sem reflexões ou críticas consistentes, tendendo a cultura a ser tratada segundo noções do senso comum e por procedimentos usuais, positivistas em muitos casos. Esta vulgarização é tanto maior quando estimulada por órgãos de fomento à pesquisa, que cobram produtividade da parte de professores, doutorandos, mestrandos e mesmo de alunos de graduação. Esta trajetória não é incomum no âmbito da geografia brasileira e acreditamos estar na hora de refletir sobre ela.
Este texto tenta clarificar sobre a natureza da geografia cultural a partir de seis pontos que serão a seguir abordados.
1 – O Conceito de Cultura
Cultura constitui-se em termo dotado de diversas acepções, sendo um termo empregado no senso comum e inteligível no âmbito das idéias em discussão. No âmbito das ciências sociais a polissemia é ampla e os debates em torno do conceito são numerosos. A este respeito consulte-se, entre outros, as coletâneas organizadas por Bohannan e Glazer (1973) e Moore (1997), nas quais o conceito de cultural é discutido por cientistas sociais de diversas matizes. Hoefle (1998), por sua vez, apresenta um quadro no qual a cultura pode ser entendida segundo três eixos. No primeiro a cultura é vista ou numa perspectiva abrangente ou restrita, abarcando, respectivamente inúmeros fenômenos (crença, hábitos, conhecimentos, linguagem, arte, etc.) ou limitada aos significados construídos a respeito das diferentes esferas da vida. A geografia cultural saueriana ou Escola de Berkeley, está calcada na visão abrangente de cultura, enquanto na perspectiva da denominada geografia cultural renovada, a visão de cultura é restrita. No segundo eixo a cultura é vista de acordo com o papel que desempenha na sociedade. Determinada pela natureza ou pela base econômica, de um lado, ou tendo o papel de determinação, sendo então considerada como entidade supra-orgânica ou, ainda, em terceiro lugar, como um contexto, isto é, simultaneamente reflexo, meio e condição. Na Escola de Berkeley o conceito de cultura associa-se à sua visão como entidade supra-orgânica, conforme discutido por Duncan (2003), enquanto na geografia cultural renovada a cultura é entendida como um contexto. No terceiro eixo, finalmente, a cultura é considerada em relação ao processo de mudança. Evolução linear, comum a todos os grupos, evolução própria, específica para cada grupo ou impossibilidade de se realizar estudos que não sejam sincrônicos. A geografia cultural saueriana apóia-se na perspectiva de uma evolução específica, enquanto a geografia cultural renovada tende a privilegiar a terceira via.
Por mais simplificado que seja este enquadramento, ele permite encaminhar as diferenças essenciais, com base no conceito de cultura, entre as duas visões mais importantes a respeito da geografia cultural. A implicação dessa distinção reside no caminho que será dado pelo pesquisador. E não há, a priori, um caminho melhor que o outro, mas caminhos a serem consistentemente seguidos.
2 – Geografia Cultural: Uma Prática com Um Século
Segundo Claval (1999) a geografia cultural tem suas origens por volta de 1890, no âmbito da própria formação da geografia, no bojo da qual debatia-se, particularmente na Alemanha, os caminhos a serem seguidos, visando estabelecer a identidade da geografia.
Entre 1890 e 1940 Claval identifica a primeira fase da geografia cultural. Caracteriza-se ela, na Alemanha, na França e, após 1925 nos Estados Unidos, por privilegiar a paisagem cultural e os gêneros de vida, resultantes das relações entre sociedade e natureza. Estes temas desdobravam-se em ouros como as regiões culturais, a ecologia cultural ou o papel do homem destruindo a natureza, a difusão cultural e outros associados, via de regra, à dimensão material da cultura. Consulte-se, além de Claval (1999), o texto de Wagner e Mikesell (2003). Veja-se ainda Corrêa (2001) e Cosgrove (2003), com a crítica à geografia cultural saueriana.
O segundo período estende-se de 1940 a 1970, segundo aponta Claval (1999). Trata-se de período de retração da geografia cultural, colocada em segundo plano face à força da geografia regional hartshorniana, em um primeiro momento, entre 1940 e 1955, e à revolução teorético-quantitativa no segundo, entre 1955 e 1970. A 2a Guerra Mundial e a retomada da expansão capitalista alterando a organização do espaço e tendendo a eclipsar culturas tradicionais, regionais, levou à valorização de estudos com perspectivas pragmáticas, voltados para as transformações em curso e esperadas. A preferência mudou dos estudos sobre paisagens culturais, habitat rural, sistemas agrícolas e difusão cultural para estudos sobre lógicas locacionais e estudos urbanos, entre outros. O trabalho de campo foi em grande parte substituído pelas inferências estatísticas. Mas a geografia cultural prosseguiu. Foi em 1962 que Philip Wagner e Marvin Mikesell lançaram a coletânea Readings in Cultural Geography.
A partir de 1970 a geografia cultural passa por uma profunda reformulação, como sempre com base em jovens geógrafos. A década de 1970 foi, em realidade, uma arena de embates epistemológicos, teóricos e metodológicos, no âmbito dos quais emergem uma geografia crítica e diferentes sub-campos que, nos anos 80 iriam confluir, em parte, para gerar a denominada geografia cultural renovada. A década de 1980 vê configurar-se esta nova versão da geografia cultural. Na década seguinte surgem periódicos especializados, Géographie et Cultures, na França, criado por Paul Claval em 1992 e Ecumene, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em 1994, posteriormente redenominado de Cultural Geographies. Ambos se juntam ao Journal of Cultural Geography criado nos Estados Unidos. A criação posterior do Social and Cultural Geography veio ampliar as possibilidades de publicar textos em geografia cultural. A publicação de coletâneas ampliou mais ainda essas possibilidades. Veja-se, entre outras, Re-Reading Cultural Geography, de 1994, organizada por K. Foote, P.J. Hugill e K. Mathewson, Handbook of Cultural Geography, organizado por K. Anderson, M. Domosh, S. Pyle e N. Thrift, e A Companion in Cultural Geography, de 2004, organizado por J. Duncan, N. Johnson, e R. Schein.
No Brasil a geografia cultural ganha existência a partir de 1993, com a criação do NEPEC (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Cultura) do Departamento de Geografia da UERJ, que edita o periódico Espaço e Cultura, a publicação eletrônica Textos NEPEC e a coleção de livros Geografia Cultural. Veja-se a respeito Corrêa e Rosendahl (2005). Trata-se, agora, de um sub-campo plenamente estabelecido no país.
3 – Significados: A Palavra-Chave
A produção e reprodução da vida material é mediada na consciência e sustentada pela produção simbólica – língua, gestos, costumes, rituais, artes, a concepção da paisagem, etc. De acordo com Cosgrove (2003, p. 103), “toda atividade humana é, ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e comunicação”.
Os símbolos constituem traços fundamentais do ser humano. “Todo comportamento humano é comportamento simbólico, todo comportamento simbólico é comportamento humano”, argumenta White (1973, p. 335). O homem vive em uma floresta de símbolos socialmente criados, que expressam significados associados às diversas esferas da vida, como aponta, entre ouros, Salomon (1955).
O reconhecimento da importância dos significados aparece claramente em 1923 com Cassirer (2001) que argumentava que para a compreensão do ser tornava-se necessário apreende-lo não apenas no que se refere à sua organização, constituição e estrutura, mas também em relação aos significados que dele se faz. Isto implica em interpreta-lo e, mais do que isto, em interpretar o que os outros pensam de suas práticas e construções materiais e intelectuais, como enfatiza Geertz (1989).
Os símbolos, contudo, não expressam um único significado, ainda que haja a intenção, por parte daqueles que os criaram, de dota-los de um único sentido. Hall (1997) reafirma a perspectiva construcionista, na qual os símbolos são abertos a diferentes interpretações, calcadas cada uma na experiência, valores, crenças, mitos e utopias do grupo social que interpreta. Os significados são, assim, instáveis e essa instabilidade atravessa o tempo. Fala-se, então, em polivocalidade, isto é, diversas interpretações a respeito do mesmo símbolo. Esta polivocalidade é o antídoto a um significado imposto, único, que as elites, em sua hegemonia cultural, pretendem impor. Sobre essa instabilidade consulte-se, entre os geógrafos, Duncan e Sharp (1993) e Mondada e Soderstrom (2004). Adicionalmente, e visando o processo de interpretação, consulte-se Barthes (1977, 1986) e Panofsky (2004).
Trata-se, em realidade, de se penetrar nos “mundos de significados” (Cosgrove, 2000) que reafirmam a diversidade de interpretações atribuídas à existência humana, inclusive à sua espacialidade. Cosgrove reconhece o papel da imaginação na ação criadora do homem. A imaginação re-elabora metaforicamente tudo aquilo que os sentidos capturam, criando e recriando significados que enriquecem a compreensão a respeito da existência humana.
Mas os significados não são apenas um produto social. Constituem também uma condição para a reprodução social, incluindo não apenas valores, crenças, mitos e utopias, mas também as relações sociais e a espacialidade humana. A este respeito consulte-se o artigo de Berque (1998), escrito em 1981, sobre paisagem-marca e paisagem-matriz, no qual os significados estão atuando por intermédio das formas materiais criadas e criadoras da ação humana.
Os significados constituem o foco da atenção do geógrafo cultural. É nesta perspectiva que Claval acrescenta ao clássico questionamento formulado no passado sobre as causas da diferenciação entre lugares a seguinte indagação (Claval, 2001, p. 40).
“Por que os indivíduos e os grupos não vivem os lugares do mesmo modo, não os percebem da mesma maneira, não recortam o real segundo as mesmas perspectivas e em função dos mesmos critérios, não descobrem neles as mesmas vantagens e os mesmos riscos, não associam a eles os mesmos sonhos e as mesmas aspirações, não investem neles os mesmos sentimentos e a mesma afetividade?”
A natureza espacial da cultura, entendida enquanto significados, levou o grupo de Birmingham a referir-se a ela como “mapas de significados” (Jackson, 1989). Esta conceituação é importante para o geógrafo, reafirmando a geograficidade da cultura.
A espacialidade da cultura permite que a expressão “mapas de significados” não seja apenas uma metáfora, sendo possível elaborar mapas de significados que ampliem o escopo da cartografia geográfica. Os mapas não se limitam às representações com base em dados estatísticos, mas podem incluir também representações gráficas de tudo aquilo que é “lembrado, imaginado e contemplado (...) material ou imaterial, real ou desejado, do todo ou da parte (...) vivenciado ou projetado” (Cosgrove, 1999, p. 2).
A importância desses mapas, ou a cartografia do campo cultural, como se refere Bonnemaison (2002) é enorme. Pode permitir representações cartográficas da geograficidade de que nos fala Dardel (1952), possibilitando outros olhares sobre a ação humana. Mais do que uma rica metáfora, mapas de significados são instrumentos de que grupos oprimidos podem dispor. Como construções sociais os mapas são veículos a partir dos quais se pode exercer poder, como afirmam Short (1991) e Crampton (2001), transformando-se assim em contra-cultura, permitindo descobrir novos significados no espaço geográfico.
Exemplos de estudos sobre as interpretações a respeito da organização espacial encontram-se nas coletâneas organizadas por Stephen Daniels e Denis Cosgrove, The Iconography of Landscape, publicada em 1988, e por Trevor Barnes e James Duncan, publicada em 1992, Writing Worlds-Discourse, Text and Metaphor in the Representation of Landscape.
4 – A Natureza Política
A geografia cultura que emerge renovada a partir da década de 1970 tem um nítido sentido político. A dimensão política das práticas culturais tem sido, já há algum tempo, apontada pelos cientistas sociais e intelectuais em geral. Williams (2003), por exemplo, no começo dos anos 70, distingue cultura da classe dominante e culturas alternativas, isto é, residuais e emergentes. Nesta distinção há um nítido sentido político, no qual a idéia gramsciana de hegemonia cultural se faz presente e a cultura deixa de ser considerada exclusivamente em termos de etnicidade, religião e outros atributos. A relação entre cultura e política remete às diferenças entre classes sociais, às estruturas de poder e às políticas culturais de diferenciação, conforme apontam Amariglio, Resnick e Wolff (1988). A partir desta relação a cultura passa a ser considerada simultaneamente como reflexo, meio e condição de existência e reprodução, e não mais como superestrutura, determinada pela base (Williams, 2003), nem como entidade supra-orgânica, independente e pairando acima da sociedade, conforme discutido por Duncan (2003). Reflexo, meio e condição conferem à cultura um nítido caráter político.
As relações entre cultura e política foram também explicitadas por Geertz (1989), ao desfazer a idéia de que ambas constituíam esferas distintas da vida social. Argumenta ele que esta relação advém do entendimento da cultura como estruturas de significados e da política como um poderoso meio pelo qual essas estruturas tornam-se públicas. Trata-se de política de produção e circulação de significados.
A natureza política da cultura foi também enfatizada por geógrafos, entre eles Taillard (2003) e Mitchell (2000). O primeiro aponta três funções políticas da cultura, as funções de integração, que envolve as noções de pertencimento e identificação, de regulação, que controla o comportamento individual em sociedades tradicionais, e de enquadramento, associadas às sociedades com escrita, em relação às quais o poder elabora uma constante re-interpretação da cultura. Mitchell, por sua vez, enfatiza o caráter político da geografia cultural, sugerindo mesmo que ela intervenha em políticas culturais.
As relações entre cultura e política manifestam-se de modo material e imaterial. Códigos, normas e leis são exemplos dos últimos, enquanto a paisagem cultural constitui-se na manifestação mais corrente do primeiro modo. A paisagem cultural está impregnada de sentido político, constituindo-se, segundo Rowntree e Conley (1980, p. 465), em “mecanismos regulatórios que controlam significados”. Os exemplos das inúmeras paisagens da cultura dominante, que exibem, por meio de formas simbólicas, o poder que a classe dominante detém (Cosgrove, 1998), são notáveis. A paisagem palladiana, concebida pelo arquiteto Andréas Palladio, da Veneza e arredores dos séculos XV e XVI, é um exemplo (Cosgrove, 1993a), assim como a paisagem da capital do reino de Kandy, no Sri Lanka do primeiro quartel do século XIX, como analisado por Duncan (1990). Os altos edifícios construídos em Nova York no último quartel do século XIX, e daí para frente, exibem o poder e legitimidade das grandes empresas, conforme aponta Domosh (1994). Nos três exemplos verificam-se políticas de significados estabelecidas pelos grupos dominantes.
A dimensão política da cultura manifesta-se ainda por meio da polivocalidade, isto é, das diversas possibilidades de interpretação da mesma paisagem. Esta não emite um único e inequívoco sentido, nem um sentido a ser descoberto ao se decodificar as intenções daqueles que produziram as formas materiais que constituem a paisagem cultural. O sentido da paisagem cultural pode ser construído e reconstruído pelos diversos grupos sociais a partir de suas experiências. Esta perspectiva construcionista advém das diferenças de classe, étnicas, religiosas e de acordo com outros atributos, conforme discutido por Hall (1997). A polivocalidade contém um sentido político que pode opor, em relação a uma mesma paisagem, o sentido de celebração e de contestação.
Leib (2002), baseado em Jean Gottmann, refere-se à iconografia política do território expressa por meio de monumentos que, localizados em espaços públicos, compõem a paisagem de certas áreas. Estes monumentos emitem mensagens de celebração ou de contestação ou de ambas. Cabe ao geógrafo descrever e interpretar o sentido político desses monumentos, como fez Leib em seu estudo sobre os monumentos dedicados ao general Robert Lee, herói sulista da Guerra de Secessão norte-americana e ao líder negro Arthur Ashe, tenista renomado e defensor dos direitos cívicos. Ambos os monumentos localizam-se à mesma avenida na cidade de Richmond, Virgínia. O monumento ao líder confederado foi erguido em 1890 e representa ideais dos confederados. O monumento a Arthur Ashe, por sua vez, foi inaugurado em 1996, após longos debates, primeiramente sobre a validade do próprio monumento e, após, sobre a sua localização, denotando o papel do espaço na valorização dos monumentos e da capacidade destes em transmitir eficientemente mensagens de contestação, de um lado, e de afirmação, de outro, em uma cidade branca e negra, como Richmond. Os exemplos de estudos dessa natureza são numerosos e sugere-se que seja consultado o estudo de Corrêa (2005), sobre monumentos, política e espaço.
A toponímia, finalmente, pode ser interpretada em muitos casos como uma articulação entre linguagem, poder territorial e identidade, denotando um nítido sentido político, sentido capturado por Azaryahu (1996) e Brunet (2001), entre outros. O primeiro comenta sobre o poder envolvido no processo de nomear logradouros públicos, enquanto o segundo discute o processo de desrussificação dos nomes de lugares, rios e montanhas do Cazaquistão após a independência do país em 1991: a nova toponímia é parte da política de criação da identidade nacional. O estudo da toponímia constitui-se em meio pelo qual a natureza política da geografia cultural é plenamente evidenciada. Mas não se trata de interpretar pura e simplesmente toda a toponímia de qualquer área ou unidade político-administrativa, pois a toponímia deriva de diversas razões. Consulte-se, adicionalmente, entre outros, Alderman (2003), Cohen e Kliot (1992), Herman (1999) e Yeoh (1996).
5 – Objeto, Tempo e Escala
A cultura, entendida como significados, direciona a atenção dos geógrafos para a escolha de seus objetos de investigação. Por ser uma abordagem, um modo de olhar a realidade, uma interpretação daquilo que os outros grupos pensam e praticam, a geografia cultural não é definida por um objeto específico, como a própria cultura, concebida segundo o senso comum ou segundo uma visão abrangente.
A geografia cultural está focalizada na interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir de suas próprias experiências e práticas. A noção de “descrição densa” de Geertz (1989) aplica-se bem.
O estudo da religião, por exemplo, que muitos aceitariam como sendo nitidamente de geografia cultural, não o é assim necessariamente. Assim, o estudo da distribuição espacial dos templos de uma dada religião insere-se em uma perspectiva locacional, ainda que possa ser extremamente útil para a geografia cultural renovada. Mas pode se inserir também na perspectiva da geografia cultural saueriana, como, de fato, foi analisada. Na perspectiva da geografia cultural renovada o estudo da religião deve estar centrado na espacialidade do sagrado, impondo ao geógrafo o conhecimento dos preceitos da religião em estudo.
O estudo de uma área operária, que se enquadra em uma geografia econômica ou social ou ainda política, passa a enquadrar-se no campo da geografia cultural quando analisada com base nas representações que os operários fazem do espaço onde vivem e trabalham. Esta perspectiva complementa as anteriores; enriquecendo-as.
A natureza e a distância aos lugares e grupos culturais podem ser de interesse para a geografia cultural. Ao se considerar o espaço vivido, no âmbito do qual estabelecem-se práticas, percepções, afetividades e distanciamento ao que é estranho, o geógrafo depara-se com significados distintos, segundo cada grupo cultural, face à natureza e ao espaço social. Gallais (2002) ao analisar a diversidade ecológica e cultural do delta interior do Niger, aponta para as noções de distância estrutural, distância ecológica e distância afetiva entre os habitantes da área. Evidencia, assim, como a abordagem cultural engloba temas que, aparentemente, não seriam de interesse da geografia cultural.
A partir do interesse pelo estudo de sociedades agrárias e do peso que a história desempenhava entre os geógrafos sauerianos, o passado foi muito privilegiado como recorte temporal. Análises sincrônicas e diacrônicas foram elaboradas, privilegiando-se, contudo, o passado ou estabelecendo a gênese, evolução e difusão espacial de traços culturais. Esta ênfase no passado constituiu-se, mesmo, em marca dos geógrafos culturais sauerianos.
A renovação da geografia cultural não deixou de lado o passado, mas privilegia o presente ou o passado recente. Mas o que é mais importante ressaltar não é o recorte temporal mas a análise dos significados que são ou foram atribuídos à espacialidade humana. Pois, repita-se, a abordagem cultural está precisamente centrada nos significados que os diversos grupos sociais constroem relativos à espacialidade passada, do presente e mesmo do futuro.
Semelhantemente, não há uma escala geográfica que seja, a priori, melhor que outra. A geografia cultural renovada interessa-se tanto em estudar os significados construídos em minúsculas áreas, como uma rua, um vale ou mesmo um prédio, como no estudo de um bairro, uma cidade, uma região ou mesmo um país. Em realidade não há limites em termos de escala para a pesquisa em geografia cultural, quer seja a geografia saueriana, quer seja a geografia cultural renovada.
A escolha da escala geográfica depende dos questionamentos que foram elaborados e para cada escala adotada o geógrafo, cultural ou não, deve ter em mente que o foco de investigação e os procedimentos não podem ser os mesmos. Afinal, para um mesmo grupo os significados variam segundo a escala geográfica, pois derivam de experiências e práticas que variam de acordo com as escalas com que a vida se desenrola.
6 – A Heterotopia Epistemológica
A geografia cultural não se constitui em um sub-campo caracterizado por uma uniformidade epistemológica, presa a uma ortodóxica. A partir de 1980 torna-se nitidamente claro que a geografia cultural pode ser epistemologicamente definida como uma heterotopia, conforme aponta Duncan (2000), uma característica que não lhe é exclusiva e que tem correspondência com o que Geertz (2004) denomina de mistura de gêneros. Nesta heterotopia epistemológica estão ora justapostas, ora combinadas, matrizes distintas e posições individualizadas.
Segundo Myers, McGeevy, Carney e Kenny (2003) ao avaliarem a geografia cultural norte-americana dos anos 90, esta pode ser dividida em três correntes principais, não se esquecendo da corrente saueriana, ainda ativa no país. Estas três correntes são, a corrente humanista, a corrente pós-estruturalista e aquela calcada no materialismo histórico. São correntes pós-positivistas, que emergiram a partir dos anos 70. Significados, ressalta-se, é a palavra-chave para elas.
A corrente humanista foi fortemente influenciada pela fenomenologia de Husserl e Heidegger, e tem em Yi-Fu Tuan o seu maior expoente. Absorvida pelo movimento de valorização da cultura, o “cultural turn”, a corrente humanista vincula-se a “questões associadas aos significados e valores humanos relacionados à interpretação das paisagens culturais e lugares” (Myers, McGeevy, Carney e Kenny, 2003, p. 83). O interesse na criatividade, consciência e compreensão da condição humana leva essa corrente a estabelecer relações com as humanidades, história, literatura e filosofia.
A corrente pós-estruturalista caracteriza-se por uma variedade de caminhos a serem seguidos, em sua crítica ao estruturalismo e ao positivismo. O traço comum a esta corrente é a recusa a aceitar uma única interpretação a respeito da sociedade e seu espaço. A influência de Geertz, Foucault e Said é considerável para essa corrente. O estudo de Duncan (1990) sobre a política de interpretação da paisagem na capital do reino de Kandy, Sri Lanka, no primeiro quartel do século XIX, constitui-se em notável exemplo, assim como os estudos focalizando as controvérsias a respeito das formas simbólicas espaciais: sobre isto consulte-se Corrêa (2005).
Na constituição da geografia cultural renovada os aportes do marxismo foram consideráveis e ainda continuam a sê-lo. Esta influência advém, de um lado, da geografia social inglesa e, de outro, deriva dos contatos com membros do Centre for Contemporary Cultural Studies, de Birmingham, particularmente Stuart Hall, e com Raymond Williams, professor em Cambridge. Ele e Stuart Hall são os fundadores do periódico New Left Review.
Geógrafos marxistas produziram importantes textos em geografia cultural, como se exemplifica com Harvey (1979), Peet (1996) e Mitchell (1999a e 2000). Os dois primeiros discutem formas simbólicas espaciais em uma visão crítica, respectivamente a Basílica de Sacré-Coeur de Montmartre, em Paris, e um monumento em pequena cidade da Nova Inglaterra, enquanto Mitchell é autor de importantes textos sobre a natureza da cultura e da geografia cultural. Consulte-se ainda o livro de Denis Cosgrove, publicado em 1984, Social Formations and Symbolic Landscape.
A heterotopia suscitou importantes debates internos, isto é, entre geógrafos, nos quais posições antagônicas eram confrontadas. Debates que serviram para o enriquecimento do sub-campo. Entre eles estão os debates envolvendo Price e Lewis (1993a, 1993b), de um lado, e Cosgrove (1993b), Duncan (1993) e Jackson (1993), de outro, em defesa, respectivamente, da geografia saueriana e da nova geografia cultural. Mais acirrado foi o debate entre Mitchell (1999a, 1999b), de um lado e Cosgrove (1999b), os Duncans (1999) e Jackson (1999), de outro. Críticas e sugestões foram também feitas, exemplificadas com Philo (1999) e Barnett (1998). Mais do que enriquecedoras, as discussões evidenciaram o vigor do sub-campo, atestado pela sua própria renovação, realizada, e em realização, numa heterotopia, conforme aponta Duncan (2000).
À Guisa de Conclusão
Este texto procurou evidenciar as principais características da geografia cultural que emergiram das mudanças verificadas após 1970 no bojo da geografia. Lacunas certamente existem. Diversa em propósitos e métodos, a geografia cultural oferece ao geógrafo vários caminhos para tornar inteligível a ação humana. Não há um único caminho que, a priori, seja melhor que outro. O pesquisador deve decidir que caminho seguir a partir de suas indagações, a partir de sua criatividade indagadora.
Bibliografia
ALDERMAN, D.M. – Street Names and the Scaling of Memory: The Politics of Commemorating Martin Luther King Jr. within the African-American Community. Area, 35(2), p. 163-172, 2003.
AMARIGLIO, S., RESNICK, A. e WOLFF, R.D. – Class, Power and Culture. In Marxism and Interpretation of Culture, org. L. Grossberg e G. Nelson, Urbana e Chicago. University of Illinois Press, 1988.
AZARYAHU, M. The Power of Commemorative Street Names. Environment and Planning D – Society and Space, 14, pp. 311-330, 1996.
BARNETT, C. – The Cultural Turn: Fashion or Progress in Human Geography? Antipode – A Radical Journal of Geography, 30(4), pp. 379-394, 1998.
BARTHES, R. – Rhetoric of the Image. In Image, Music, Text. New York, Hill and Wang, 1977.
BARTHES, R. – Semiology and the Urban. In The City and the Sign, org. M. Gottdiener e A.P. Lagopoulos. New York, Columbia University Press, 1986.
BERQUE, A. – Paisagem–Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia Cultural. In Paisagem, Tempo e Cultura, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1998.
BOHANNAN, P. e GLAZER, M. (org.) – High Points in Anthropology. New York, Alfred Knopf, 1973.
BONNEMAISON, J. – Viagem em Torno do Território. In Geografia Cultural: Um Século (3), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2002.
BRUNET, R. – Hauts Lieux et Mauvais Lieux du Kazakistan. L’Espace Géographique, 30(1), pp. 37-52, 2001.
CASSIRER, E. – A Filosofia das Formas Simbólicas – I A Linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 2001 (original de 1923).
CLAVAL, P. – Geografia Cultural. Florianópolis, EDUSC, 1999.
CLAVAL, P. – O Papel da Nova Geografia Cultural na Compreensão da Ação Humana. In Matrizes da Geografia Cultural, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2001.
COHEN, S.B. e KLIOT, N. – Place – Names in Israel’s Ideological Struggle over the Administered Territories. Annals of the Association of American Geographers, 82(4), pp. 653-680, 1992.
CORRÊA, R.L. – Carl Sauer e a Escola de Berkeley – Uma Apreciação. In Matrizes da Geografia Cultural, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2001.
CORRÊA, R.L. – Monumentos, Política e Espaço. In Geografia: Temas sobre Cultural e Espaço, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2005.
CORRÊA, R.L. e ROSENDAHL, Z. – A Geografia Cultural no Brasil. Revista da ANPEGE, 2, 2005.
COSGROVE, D. – The Palladian Landscape - Geographical Change and Its Representation. University Park, Pennsylvania State University Press, 1993a.
COSGROVE, D. – The “Reinvention of Cultural Geography” by Price and Lewis. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 515-517, 1993b.
COSGROVE, D. – A Geografia Está em Toda Parte: Cultura e Simbolismo nas Paisagens Humanas. In Paisagem, Tempo e Cultura, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1998.
COSGROVE, D. (org.) – Mappings. London, Reaktion Books, 1999a.
COSGROVE, D. – A Idéia de Cultural: Uma Resposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 59-61, 1993b.
COSGROVE, D. – Mundos de Significados: Geografia Cultural e Imaginação. In Geografia Cultural: Um Século (2), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2000.
COSGROVE, D. – Em Direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
CRAMPTON, J.W. – Maps as Social Construction: Power, Communication and Visualization. Progress in Human Geography, 25(2), pp. 235-252, 2001.
DARDEL, E. – L’Homme sur la Terre. Nature de la Realilté Géographique. Paris, PUF, 1952.
DUNCAN, J. – The City as Text. The Politics of Interpretation in the Kandyan Kingdom. Cambridge, Cambridge University Press, 1990
DUNCAN, J. – On “The Reinvention of Cultural Geography” by Price and Lewis. Commentary. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 517-519, 1993.
DUNCAN, J. – Após a Guerra Civil – Reconstruindo a Geografia Cultural como Heterotopia. In Geografia Cultural: Um Século (2), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2000.
DUNCAN, J. – O Supra-orgânico na Geografia Cultural Americana. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
DUNCAN, J. e DUNCAN, N. – Reconceitualizando a Idéia de Cultura em Geografia: Uma Resposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 63-67, 1999.
DUNCAN, N. e SHARP, J. – Confronting Representations. Environment and Planning, D, Society and Space, 11, pp. 475-486, 1986.
GALLAIS, J. – Alguns Aspectos do Espaço Vivido nas Civilizações do Mundo Tropical. In Geografia Cultural: Um Século (3), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 200__.
GEERTZ, C. – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1989.
GEERTZ, C. – O Saber Local. Petrópolis, Vozes, 2004.
HALL, S. Representations. Cultural Representations and Signifying Practices. London, Routledge Publications, 1997.
HARVEY, D. – Monument and Myth. Annals of the Association of American Geographers, 69(3), pp. 362-381, 1979.
HERMAN, R.D.K. – The Aloha State: Place Names and the Anti-Conquest of Hawaii. Annals of the Association of American Geographers, 89(1), pp. 76-102, 1999.
HOEFLE, S.W. – Cultura na História do Pensamento Científico. Revista da Pós-Graduação em Geografia, UFRJ, no 2, pp. 6-29, 1998.
JACKSON, P. – Maps of Meaning. London, Routledge, 1989.
JACKSON, P. – Berkeley and Beyond: Broadening the Horizons of Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 519-520, 1989.
JACKSON, P. – A Idéia de Cultura: Uma Reposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 55-57, 1999.
LEIB, J.I. – Separated Times, Shared Spaces: Arthur Ashe, Monument Avenue and the Politics of Richmond, Virginia’s Symbolic Landscape. Cultural Geographies, 9, pp. 286-312, 2002.
MITCHELL, D. – Não Existe Aquilo que Chamamos de Cultura: Para uma Reconceitualização da Idéia de Cultura em Geografia. Espaço e Cultura, 8, pp. 31-53, 1999a.
MITCHELL, D. – Explicação em Geografia Cultural: Uma Reposta a Cosgrove, Jackson e aos Duncans. Espaço e Cultura, 8, p. 69-73, 1999b.
MITCHELL, D. – Cultural Geography. A Critical Introduction. Oxford, Blackwell, 2000.
MONDADA, L. e SÖDERSTROM, O. – Do Texto à Interação: Percurso Através da Geografia Cultural. In Paisagem, Textos e Identidade, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2004.
MOORE, J. – Visions of Culture: An Introduction to Anthropological Theory and Theorists. Walnut Creek, Altamira, 1997.
MYERS, G.A., MCGEEVY, P., CARNEY, G.O. e KENNY, J. – Cultural Geography. In Geography in America at the Dawn of 21st Century, org. G.L. Gaile e C.J. Willmott. Oxford, Oxford University Press, 2003.
PANOFSKY, E. – Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao Estudo da Arte na Renascença. In Significados das Artes Visuais. São Paulo, Perspectiva, Série Debates, 2004.
PEET, R. – A Sign Taken for History. Daniel Shays Memorial in Petersham, Massachusetts. Annals of the Association of American Geographers, 86(1), pp. 21-43, 1996.
PHILO, C. – Más Palabras, Más Mundos: Reflexiones en torno al “Giro Cultural” y a la Geografia Social. Documents e Analisis en Geografia, 34, pp. 81-99, 1999.
PRICE, M. e LEWIS, M. – The Reinvention of Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(1), pp. 1-17, 1993a.
PRICE, M.E. e LEWIS, M. – Reply: On Reading Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 520-422, 1993b.
ROWNTREE, L.B. e CONLEY, M.W. – Symbolism and the Cultural Landscape. Annals of the Association of American Geographers, 70(4), pp. 459-479, 1980.
SALOMON, A. – Symbols and Images in the Constitution of Society. In Symbols and Society, org. L. Bryson et al. New York, Harper and Brothers, 1955.
SHORT, J.R. – Imagined Countries. London, Routledge, 1991.
TAILLARD, C. – Diversidade de Definições e Diferenciações das Práticas Geográficas: Contribuição para o Debate. Espaço e Cultura, 14, pp. 23-32, 2003.
YEOH, B.S. – Street-naming and Nation-building: Toponymic Inscriptions of Nationhood in Singapore. Area, 28(3), pp. 298-307, 1996.
WAGNER, P. e MIKESELL, M. – Os Temas da Geografia Cultural. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003 (original de 1962).
WHITE, L. – Leslie White. In High Points in Anthropology, org. P. Bohannan e M. Glazer. New York, Alfred Knopf, 1973.
WILLIAMS, R. – Base e Superestrutura na Teoria Cultural Marxista. Espaço e Cultura, 14, pp. 7-21, 2003.
Departamento de Geografia – UFRJ
O presente texto procura encaminhar alguns pontos relativos à natureza da geografia cultural, visando clarificar aspectos pouco claros ou mal assimilados por parte de muitos geógrafos, decorridos mais de 12 anos de existência do periódico Espaço e Cultura e após a publicação de 13 volumes de livros da série “Geografia Cultural”.
A pouca clareza em relação à geografia cultural decorre, em grande parte, do fato dela estar, em sua trajetória no Brasil, em um terceiro momento. O primeiro momento, que pode ser visto como estendendo-se do começo da década de 1990 até o seu final, caracterizou-se pela não aceitação do sub-campo que, percebido como novo, foi visto, como qualquer sub-campo novo, como capaz de abalar as estruturas do poder acadêmico. O segundo momento, entre 2001 e 2005 aproximadamente, caracterizou-se por uma relativa aceitação do sub-campo, incluindo aqueles que no primeiro momento foram os seus críticos. A geografia cultural passa a ser vista progressivamente como uma novidade interessante. O terceiro momento é o de sua vulgarização, no qual a antiga “novidade” é adotada, via de regra apressadamente, sem reflexões ou críticas consistentes, tendendo a cultura a ser tratada segundo noções do senso comum e por procedimentos usuais, positivistas em muitos casos. Esta vulgarização é tanto maior quando estimulada por órgãos de fomento à pesquisa, que cobram produtividade da parte de professores, doutorandos, mestrandos e mesmo de alunos de graduação. Esta trajetória não é incomum no âmbito da geografia brasileira e acreditamos estar na hora de refletir sobre ela.
Este texto tenta clarificar sobre a natureza da geografia cultural a partir de seis pontos que serão a seguir abordados.
1 – O Conceito de Cultura
Cultura constitui-se em termo dotado de diversas acepções, sendo um termo empregado no senso comum e inteligível no âmbito das idéias em discussão. No âmbito das ciências sociais a polissemia é ampla e os debates em torno do conceito são numerosos. A este respeito consulte-se, entre outros, as coletâneas organizadas por Bohannan e Glazer (1973) e Moore (1997), nas quais o conceito de cultural é discutido por cientistas sociais de diversas matizes. Hoefle (1998), por sua vez, apresenta um quadro no qual a cultura pode ser entendida segundo três eixos. No primeiro a cultura é vista ou numa perspectiva abrangente ou restrita, abarcando, respectivamente inúmeros fenômenos (crença, hábitos, conhecimentos, linguagem, arte, etc.) ou limitada aos significados construídos a respeito das diferentes esferas da vida. A geografia cultural saueriana ou Escola de Berkeley, está calcada na visão abrangente de cultura, enquanto na perspectiva da denominada geografia cultural renovada, a visão de cultura é restrita. No segundo eixo a cultura é vista de acordo com o papel que desempenha na sociedade. Determinada pela natureza ou pela base econômica, de um lado, ou tendo o papel de determinação, sendo então considerada como entidade supra-orgânica ou, ainda, em terceiro lugar, como um contexto, isto é, simultaneamente reflexo, meio e condição. Na Escola de Berkeley o conceito de cultura associa-se à sua visão como entidade supra-orgânica, conforme discutido por Duncan (2003), enquanto na geografia cultural renovada a cultura é entendida como um contexto. No terceiro eixo, finalmente, a cultura é considerada em relação ao processo de mudança. Evolução linear, comum a todos os grupos, evolução própria, específica para cada grupo ou impossibilidade de se realizar estudos que não sejam sincrônicos. A geografia cultural saueriana apóia-se na perspectiva de uma evolução específica, enquanto a geografia cultural renovada tende a privilegiar a terceira via.
Por mais simplificado que seja este enquadramento, ele permite encaminhar as diferenças essenciais, com base no conceito de cultura, entre as duas visões mais importantes a respeito da geografia cultural. A implicação dessa distinção reside no caminho que será dado pelo pesquisador. E não há, a priori, um caminho melhor que o outro, mas caminhos a serem consistentemente seguidos.
2 – Geografia Cultural: Uma Prática com Um Século
Segundo Claval (1999) a geografia cultural tem suas origens por volta de 1890, no âmbito da própria formação da geografia, no bojo da qual debatia-se, particularmente na Alemanha, os caminhos a serem seguidos, visando estabelecer a identidade da geografia.
Entre 1890 e 1940 Claval identifica a primeira fase da geografia cultural. Caracteriza-se ela, na Alemanha, na França e, após 1925 nos Estados Unidos, por privilegiar a paisagem cultural e os gêneros de vida, resultantes das relações entre sociedade e natureza. Estes temas desdobravam-se em ouros como as regiões culturais, a ecologia cultural ou o papel do homem destruindo a natureza, a difusão cultural e outros associados, via de regra, à dimensão material da cultura. Consulte-se, além de Claval (1999), o texto de Wagner e Mikesell (2003). Veja-se ainda Corrêa (2001) e Cosgrove (2003), com a crítica à geografia cultural saueriana.
O segundo período estende-se de 1940 a 1970, segundo aponta Claval (1999). Trata-se de período de retração da geografia cultural, colocada em segundo plano face à força da geografia regional hartshorniana, em um primeiro momento, entre 1940 e 1955, e à revolução teorético-quantitativa no segundo, entre 1955 e 1970. A 2a Guerra Mundial e a retomada da expansão capitalista alterando a organização do espaço e tendendo a eclipsar culturas tradicionais, regionais, levou à valorização de estudos com perspectivas pragmáticas, voltados para as transformações em curso e esperadas. A preferência mudou dos estudos sobre paisagens culturais, habitat rural, sistemas agrícolas e difusão cultural para estudos sobre lógicas locacionais e estudos urbanos, entre outros. O trabalho de campo foi em grande parte substituído pelas inferências estatísticas. Mas a geografia cultural prosseguiu. Foi em 1962 que Philip Wagner e Marvin Mikesell lançaram a coletânea Readings in Cultural Geography.
A partir de 1970 a geografia cultural passa por uma profunda reformulação, como sempre com base em jovens geógrafos. A década de 1970 foi, em realidade, uma arena de embates epistemológicos, teóricos e metodológicos, no âmbito dos quais emergem uma geografia crítica e diferentes sub-campos que, nos anos 80 iriam confluir, em parte, para gerar a denominada geografia cultural renovada. A década de 1980 vê configurar-se esta nova versão da geografia cultural. Na década seguinte surgem periódicos especializados, Géographie et Cultures, na França, criado por Paul Claval em 1992 e Ecumene, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em 1994, posteriormente redenominado de Cultural Geographies. Ambos se juntam ao Journal of Cultural Geography criado nos Estados Unidos. A criação posterior do Social and Cultural Geography veio ampliar as possibilidades de publicar textos em geografia cultural. A publicação de coletâneas ampliou mais ainda essas possibilidades. Veja-se, entre outras, Re-Reading Cultural Geography, de 1994, organizada por K. Foote, P.J. Hugill e K. Mathewson, Handbook of Cultural Geography, organizado por K. Anderson, M. Domosh, S. Pyle e N. Thrift, e A Companion in Cultural Geography, de 2004, organizado por J. Duncan, N. Johnson, e R. Schein.
No Brasil a geografia cultural ganha existência a partir de 1993, com a criação do NEPEC (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Cultura) do Departamento de Geografia da UERJ, que edita o periódico Espaço e Cultura, a publicação eletrônica Textos NEPEC e a coleção de livros Geografia Cultural. Veja-se a respeito Corrêa e Rosendahl (2005). Trata-se, agora, de um sub-campo plenamente estabelecido no país.
3 – Significados: A Palavra-Chave
A produção e reprodução da vida material é mediada na consciência e sustentada pela produção simbólica – língua, gestos, costumes, rituais, artes, a concepção da paisagem, etc. De acordo com Cosgrove (2003, p. 103), “toda atividade humana é, ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e comunicação”.
Os símbolos constituem traços fundamentais do ser humano. “Todo comportamento humano é comportamento simbólico, todo comportamento simbólico é comportamento humano”, argumenta White (1973, p. 335). O homem vive em uma floresta de símbolos socialmente criados, que expressam significados associados às diversas esferas da vida, como aponta, entre ouros, Salomon (1955).
O reconhecimento da importância dos significados aparece claramente em 1923 com Cassirer (2001) que argumentava que para a compreensão do ser tornava-se necessário apreende-lo não apenas no que se refere à sua organização, constituição e estrutura, mas também em relação aos significados que dele se faz. Isto implica em interpreta-lo e, mais do que isto, em interpretar o que os outros pensam de suas práticas e construções materiais e intelectuais, como enfatiza Geertz (1989).
Os símbolos, contudo, não expressam um único significado, ainda que haja a intenção, por parte daqueles que os criaram, de dota-los de um único sentido. Hall (1997) reafirma a perspectiva construcionista, na qual os símbolos são abertos a diferentes interpretações, calcadas cada uma na experiência, valores, crenças, mitos e utopias do grupo social que interpreta. Os significados são, assim, instáveis e essa instabilidade atravessa o tempo. Fala-se, então, em polivocalidade, isto é, diversas interpretações a respeito do mesmo símbolo. Esta polivocalidade é o antídoto a um significado imposto, único, que as elites, em sua hegemonia cultural, pretendem impor. Sobre essa instabilidade consulte-se, entre os geógrafos, Duncan e Sharp (1993) e Mondada e Soderstrom (2004). Adicionalmente, e visando o processo de interpretação, consulte-se Barthes (1977, 1986) e Panofsky (2004).
Trata-se, em realidade, de se penetrar nos “mundos de significados” (Cosgrove, 2000) que reafirmam a diversidade de interpretações atribuídas à existência humana, inclusive à sua espacialidade. Cosgrove reconhece o papel da imaginação na ação criadora do homem. A imaginação re-elabora metaforicamente tudo aquilo que os sentidos capturam, criando e recriando significados que enriquecem a compreensão a respeito da existência humana.
Mas os significados não são apenas um produto social. Constituem também uma condição para a reprodução social, incluindo não apenas valores, crenças, mitos e utopias, mas também as relações sociais e a espacialidade humana. A este respeito consulte-se o artigo de Berque (1998), escrito em 1981, sobre paisagem-marca e paisagem-matriz, no qual os significados estão atuando por intermédio das formas materiais criadas e criadoras da ação humana.
Os significados constituem o foco da atenção do geógrafo cultural. É nesta perspectiva que Claval acrescenta ao clássico questionamento formulado no passado sobre as causas da diferenciação entre lugares a seguinte indagação (Claval, 2001, p. 40).
“Por que os indivíduos e os grupos não vivem os lugares do mesmo modo, não os percebem da mesma maneira, não recortam o real segundo as mesmas perspectivas e em função dos mesmos critérios, não descobrem neles as mesmas vantagens e os mesmos riscos, não associam a eles os mesmos sonhos e as mesmas aspirações, não investem neles os mesmos sentimentos e a mesma afetividade?”
A natureza espacial da cultura, entendida enquanto significados, levou o grupo de Birmingham a referir-se a ela como “mapas de significados” (Jackson, 1989). Esta conceituação é importante para o geógrafo, reafirmando a geograficidade da cultura.
A espacialidade da cultura permite que a expressão “mapas de significados” não seja apenas uma metáfora, sendo possível elaborar mapas de significados que ampliem o escopo da cartografia geográfica. Os mapas não se limitam às representações com base em dados estatísticos, mas podem incluir também representações gráficas de tudo aquilo que é “lembrado, imaginado e contemplado (...) material ou imaterial, real ou desejado, do todo ou da parte (...) vivenciado ou projetado” (Cosgrove, 1999, p. 2).
A importância desses mapas, ou a cartografia do campo cultural, como se refere Bonnemaison (2002) é enorme. Pode permitir representações cartográficas da geograficidade de que nos fala Dardel (1952), possibilitando outros olhares sobre a ação humana. Mais do que uma rica metáfora, mapas de significados são instrumentos de que grupos oprimidos podem dispor. Como construções sociais os mapas são veículos a partir dos quais se pode exercer poder, como afirmam Short (1991) e Crampton (2001), transformando-se assim em contra-cultura, permitindo descobrir novos significados no espaço geográfico.
Exemplos de estudos sobre as interpretações a respeito da organização espacial encontram-se nas coletâneas organizadas por Stephen Daniels e Denis Cosgrove, The Iconography of Landscape, publicada em 1988, e por Trevor Barnes e James Duncan, publicada em 1992, Writing Worlds-Discourse, Text and Metaphor in the Representation of Landscape.
4 – A Natureza Política
A geografia cultura que emerge renovada a partir da década de 1970 tem um nítido sentido político. A dimensão política das práticas culturais tem sido, já há algum tempo, apontada pelos cientistas sociais e intelectuais em geral. Williams (2003), por exemplo, no começo dos anos 70, distingue cultura da classe dominante e culturas alternativas, isto é, residuais e emergentes. Nesta distinção há um nítido sentido político, no qual a idéia gramsciana de hegemonia cultural se faz presente e a cultura deixa de ser considerada exclusivamente em termos de etnicidade, religião e outros atributos. A relação entre cultura e política remete às diferenças entre classes sociais, às estruturas de poder e às políticas culturais de diferenciação, conforme apontam Amariglio, Resnick e Wolff (1988). A partir desta relação a cultura passa a ser considerada simultaneamente como reflexo, meio e condição de existência e reprodução, e não mais como superestrutura, determinada pela base (Williams, 2003), nem como entidade supra-orgânica, independente e pairando acima da sociedade, conforme discutido por Duncan (2003). Reflexo, meio e condição conferem à cultura um nítido caráter político.
As relações entre cultura e política foram também explicitadas por Geertz (1989), ao desfazer a idéia de que ambas constituíam esferas distintas da vida social. Argumenta ele que esta relação advém do entendimento da cultura como estruturas de significados e da política como um poderoso meio pelo qual essas estruturas tornam-se públicas. Trata-se de política de produção e circulação de significados.
A natureza política da cultura foi também enfatizada por geógrafos, entre eles Taillard (2003) e Mitchell (2000). O primeiro aponta três funções políticas da cultura, as funções de integração, que envolve as noções de pertencimento e identificação, de regulação, que controla o comportamento individual em sociedades tradicionais, e de enquadramento, associadas às sociedades com escrita, em relação às quais o poder elabora uma constante re-interpretação da cultura. Mitchell, por sua vez, enfatiza o caráter político da geografia cultural, sugerindo mesmo que ela intervenha em políticas culturais.
As relações entre cultura e política manifestam-se de modo material e imaterial. Códigos, normas e leis são exemplos dos últimos, enquanto a paisagem cultural constitui-se na manifestação mais corrente do primeiro modo. A paisagem cultural está impregnada de sentido político, constituindo-se, segundo Rowntree e Conley (1980, p. 465), em “mecanismos regulatórios que controlam significados”. Os exemplos das inúmeras paisagens da cultura dominante, que exibem, por meio de formas simbólicas, o poder que a classe dominante detém (Cosgrove, 1998), são notáveis. A paisagem palladiana, concebida pelo arquiteto Andréas Palladio, da Veneza e arredores dos séculos XV e XVI, é um exemplo (Cosgrove, 1993a), assim como a paisagem da capital do reino de Kandy, no Sri Lanka do primeiro quartel do século XIX, como analisado por Duncan (1990). Os altos edifícios construídos em Nova York no último quartel do século XIX, e daí para frente, exibem o poder e legitimidade das grandes empresas, conforme aponta Domosh (1994). Nos três exemplos verificam-se políticas de significados estabelecidas pelos grupos dominantes.
A dimensão política da cultura manifesta-se ainda por meio da polivocalidade, isto é, das diversas possibilidades de interpretação da mesma paisagem. Esta não emite um único e inequívoco sentido, nem um sentido a ser descoberto ao se decodificar as intenções daqueles que produziram as formas materiais que constituem a paisagem cultural. O sentido da paisagem cultural pode ser construído e reconstruído pelos diversos grupos sociais a partir de suas experiências. Esta perspectiva construcionista advém das diferenças de classe, étnicas, religiosas e de acordo com outros atributos, conforme discutido por Hall (1997). A polivocalidade contém um sentido político que pode opor, em relação a uma mesma paisagem, o sentido de celebração e de contestação.
Leib (2002), baseado em Jean Gottmann, refere-se à iconografia política do território expressa por meio de monumentos que, localizados em espaços públicos, compõem a paisagem de certas áreas. Estes monumentos emitem mensagens de celebração ou de contestação ou de ambas. Cabe ao geógrafo descrever e interpretar o sentido político desses monumentos, como fez Leib em seu estudo sobre os monumentos dedicados ao general Robert Lee, herói sulista da Guerra de Secessão norte-americana e ao líder negro Arthur Ashe, tenista renomado e defensor dos direitos cívicos. Ambos os monumentos localizam-se à mesma avenida na cidade de Richmond, Virgínia. O monumento ao líder confederado foi erguido em 1890 e representa ideais dos confederados. O monumento a Arthur Ashe, por sua vez, foi inaugurado em 1996, após longos debates, primeiramente sobre a validade do próprio monumento e, após, sobre a sua localização, denotando o papel do espaço na valorização dos monumentos e da capacidade destes em transmitir eficientemente mensagens de contestação, de um lado, e de afirmação, de outro, em uma cidade branca e negra, como Richmond. Os exemplos de estudos dessa natureza são numerosos e sugere-se que seja consultado o estudo de Corrêa (2005), sobre monumentos, política e espaço.
A toponímia, finalmente, pode ser interpretada em muitos casos como uma articulação entre linguagem, poder territorial e identidade, denotando um nítido sentido político, sentido capturado por Azaryahu (1996) e Brunet (2001), entre outros. O primeiro comenta sobre o poder envolvido no processo de nomear logradouros públicos, enquanto o segundo discute o processo de desrussificação dos nomes de lugares, rios e montanhas do Cazaquistão após a independência do país em 1991: a nova toponímia é parte da política de criação da identidade nacional. O estudo da toponímia constitui-se em meio pelo qual a natureza política da geografia cultural é plenamente evidenciada. Mas não se trata de interpretar pura e simplesmente toda a toponímia de qualquer área ou unidade político-administrativa, pois a toponímia deriva de diversas razões. Consulte-se, adicionalmente, entre outros, Alderman (2003), Cohen e Kliot (1992), Herman (1999) e Yeoh (1996).
5 – Objeto, Tempo e Escala
A cultura, entendida como significados, direciona a atenção dos geógrafos para a escolha de seus objetos de investigação. Por ser uma abordagem, um modo de olhar a realidade, uma interpretação daquilo que os outros grupos pensam e praticam, a geografia cultural não é definida por um objeto específico, como a própria cultura, concebida segundo o senso comum ou segundo uma visão abrangente.
A geografia cultural está focalizada na interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir de suas próprias experiências e práticas. A noção de “descrição densa” de Geertz (1989) aplica-se bem.
O estudo da religião, por exemplo, que muitos aceitariam como sendo nitidamente de geografia cultural, não o é assim necessariamente. Assim, o estudo da distribuição espacial dos templos de uma dada religião insere-se em uma perspectiva locacional, ainda que possa ser extremamente útil para a geografia cultural renovada. Mas pode se inserir também na perspectiva da geografia cultural saueriana, como, de fato, foi analisada. Na perspectiva da geografia cultural renovada o estudo da religião deve estar centrado na espacialidade do sagrado, impondo ao geógrafo o conhecimento dos preceitos da religião em estudo.
O estudo de uma área operária, que se enquadra em uma geografia econômica ou social ou ainda política, passa a enquadrar-se no campo da geografia cultural quando analisada com base nas representações que os operários fazem do espaço onde vivem e trabalham. Esta perspectiva complementa as anteriores; enriquecendo-as.
A natureza e a distância aos lugares e grupos culturais podem ser de interesse para a geografia cultural. Ao se considerar o espaço vivido, no âmbito do qual estabelecem-se práticas, percepções, afetividades e distanciamento ao que é estranho, o geógrafo depara-se com significados distintos, segundo cada grupo cultural, face à natureza e ao espaço social. Gallais (2002) ao analisar a diversidade ecológica e cultural do delta interior do Niger, aponta para as noções de distância estrutural, distância ecológica e distância afetiva entre os habitantes da área. Evidencia, assim, como a abordagem cultural engloba temas que, aparentemente, não seriam de interesse da geografia cultural.
A partir do interesse pelo estudo de sociedades agrárias e do peso que a história desempenhava entre os geógrafos sauerianos, o passado foi muito privilegiado como recorte temporal. Análises sincrônicas e diacrônicas foram elaboradas, privilegiando-se, contudo, o passado ou estabelecendo a gênese, evolução e difusão espacial de traços culturais. Esta ênfase no passado constituiu-se, mesmo, em marca dos geógrafos culturais sauerianos.
A renovação da geografia cultural não deixou de lado o passado, mas privilegia o presente ou o passado recente. Mas o que é mais importante ressaltar não é o recorte temporal mas a análise dos significados que são ou foram atribuídos à espacialidade humana. Pois, repita-se, a abordagem cultural está precisamente centrada nos significados que os diversos grupos sociais constroem relativos à espacialidade passada, do presente e mesmo do futuro.
Semelhantemente, não há uma escala geográfica que seja, a priori, melhor que outra. A geografia cultural renovada interessa-se tanto em estudar os significados construídos em minúsculas áreas, como uma rua, um vale ou mesmo um prédio, como no estudo de um bairro, uma cidade, uma região ou mesmo um país. Em realidade não há limites em termos de escala para a pesquisa em geografia cultural, quer seja a geografia saueriana, quer seja a geografia cultural renovada.
A escolha da escala geográfica depende dos questionamentos que foram elaborados e para cada escala adotada o geógrafo, cultural ou não, deve ter em mente que o foco de investigação e os procedimentos não podem ser os mesmos. Afinal, para um mesmo grupo os significados variam segundo a escala geográfica, pois derivam de experiências e práticas que variam de acordo com as escalas com que a vida se desenrola.
6 – A Heterotopia Epistemológica
A geografia cultural não se constitui em um sub-campo caracterizado por uma uniformidade epistemológica, presa a uma ortodóxica. A partir de 1980 torna-se nitidamente claro que a geografia cultural pode ser epistemologicamente definida como uma heterotopia, conforme aponta Duncan (2000), uma característica que não lhe é exclusiva e que tem correspondência com o que Geertz (2004) denomina de mistura de gêneros. Nesta heterotopia epistemológica estão ora justapostas, ora combinadas, matrizes distintas e posições individualizadas.
Segundo Myers, McGeevy, Carney e Kenny (2003) ao avaliarem a geografia cultural norte-americana dos anos 90, esta pode ser dividida em três correntes principais, não se esquecendo da corrente saueriana, ainda ativa no país. Estas três correntes são, a corrente humanista, a corrente pós-estruturalista e aquela calcada no materialismo histórico. São correntes pós-positivistas, que emergiram a partir dos anos 70. Significados, ressalta-se, é a palavra-chave para elas.
A corrente humanista foi fortemente influenciada pela fenomenologia de Husserl e Heidegger, e tem em Yi-Fu Tuan o seu maior expoente. Absorvida pelo movimento de valorização da cultura, o “cultural turn”, a corrente humanista vincula-se a “questões associadas aos significados e valores humanos relacionados à interpretação das paisagens culturais e lugares” (Myers, McGeevy, Carney e Kenny, 2003, p. 83). O interesse na criatividade, consciência e compreensão da condição humana leva essa corrente a estabelecer relações com as humanidades, história, literatura e filosofia.
A corrente pós-estruturalista caracteriza-se por uma variedade de caminhos a serem seguidos, em sua crítica ao estruturalismo e ao positivismo. O traço comum a esta corrente é a recusa a aceitar uma única interpretação a respeito da sociedade e seu espaço. A influência de Geertz, Foucault e Said é considerável para essa corrente. O estudo de Duncan (1990) sobre a política de interpretação da paisagem na capital do reino de Kandy, Sri Lanka, no primeiro quartel do século XIX, constitui-se em notável exemplo, assim como os estudos focalizando as controvérsias a respeito das formas simbólicas espaciais: sobre isto consulte-se Corrêa (2005).
Na constituição da geografia cultural renovada os aportes do marxismo foram consideráveis e ainda continuam a sê-lo. Esta influência advém, de um lado, da geografia social inglesa e, de outro, deriva dos contatos com membros do Centre for Contemporary Cultural Studies, de Birmingham, particularmente Stuart Hall, e com Raymond Williams, professor em Cambridge. Ele e Stuart Hall são os fundadores do periódico New Left Review.
Geógrafos marxistas produziram importantes textos em geografia cultural, como se exemplifica com Harvey (1979), Peet (1996) e Mitchell (1999a e 2000). Os dois primeiros discutem formas simbólicas espaciais em uma visão crítica, respectivamente a Basílica de Sacré-Coeur de Montmartre, em Paris, e um monumento em pequena cidade da Nova Inglaterra, enquanto Mitchell é autor de importantes textos sobre a natureza da cultura e da geografia cultural. Consulte-se ainda o livro de Denis Cosgrove, publicado em 1984, Social Formations and Symbolic Landscape.
A heterotopia suscitou importantes debates internos, isto é, entre geógrafos, nos quais posições antagônicas eram confrontadas. Debates que serviram para o enriquecimento do sub-campo. Entre eles estão os debates envolvendo Price e Lewis (1993a, 1993b), de um lado, e Cosgrove (1993b), Duncan (1993) e Jackson (1993), de outro, em defesa, respectivamente, da geografia saueriana e da nova geografia cultural. Mais acirrado foi o debate entre Mitchell (1999a, 1999b), de um lado e Cosgrove (1999b), os Duncans (1999) e Jackson (1999), de outro. Críticas e sugestões foram também feitas, exemplificadas com Philo (1999) e Barnett (1998). Mais do que enriquecedoras, as discussões evidenciaram o vigor do sub-campo, atestado pela sua própria renovação, realizada, e em realização, numa heterotopia, conforme aponta Duncan (2000).
À Guisa de Conclusão
Este texto procurou evidenciar as principais características da geografia cultural que emergiram das mudanças verificadas após 1970 no bojo da geografia. Lacunas certamente existem. Diversa em propósitos e métodos, a geografia cultural oferece ao geógrafo vários caminhos para tornar inteligível a ação humana. Não há um único caminho que, a priori, seja melhor que outro. O pesquisador deve decidir que caminho seguir a partir de suas indagações, a partir de sua criatividade indagadora.
Bibliografia
ALDERMAN, D.M. – Street Names and the Scaling of Memory: The Politics of Commemorating Martin Luther King Jr. within the African-American Community. Area, 35(2), p. 163-172, 2003.
AMARIGLIO, S., RESNICK, A. e WOLFF, R.D. – Class, Power and Culture. In Marxism and Interpretation of Culture, org. L. Grossberg e G. Nelson, Urbana e Chicago. University of Illinois Press, 1988.
AZARYAHU, M. The Power of Commemorative Street Names. Environment and Planning D – Society and Space, 14, pp. 311-330, 1996.
BARNETT, C. – The Cultural Turn: Fashion or Progress in Human Geography? Antipode – A Radical Journal of Geography, 30(4), pp. 379-394, 1998.
BARTHES, R. – Rhetoric of the Image. In Image, Music, Text. New York, Hill and Wang, 1977.
BARTHES, R. – Semiology and the Urban. In The City and the Sign, org. M. Gottdiener e A.P. Lagopoulos. New York, Columbia University Press, 1986.
BERQUE, A. – Paisagem–Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia Cultural. In Paisagem, Tempo e Cultura, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1998.
BOHANNAN, P. e GLAZER, M. (org.) – High Points in Anthropology. New York, Alfred Knopf, 1973.
BONNEMAISON, J. – Viagem em Torno do Território. In Geografia Cultural: Um Século (3), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2002.
BRUNET, R. – Hauts Lieux et Mauvais Lieux du Kazakistan. L’Espace Géographique, 30(1), pp. 37-52, 2001.
CASSIRER, E. – A Filosofia das Formas Simbólicas – I A Linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 2001 (original de 1923).
CLAVAL, P. – Geografia Cultural. Florianópolis, EDUSC, 1999.
CLAVAL, P. – O Papel da Nova Geografia Cultural na Compreensão da Ação Humana. In Matrizes da Geografia Cultural, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2001.
COHEN, S.B. e KLIOT, N. – Place – Names in Israel’s Ideological Struggle over the Administered Territories. Annals of the Association of American Geographers, 82(4), pp. 653-680, 1992.
CORRÊA, R.L. – Carl Sauer e a Escola de Berkeley – Uma Apreciação. In Matrizes da Geografia Cultural, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2001.
CORRÊA, R.L. – Monumentos, Política e Espaço. In Geografia: Temas sobre Cultural e Espaço, org. Z. Rosendahl e R.L. Corrêa. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2005.
CORRÊA, R.L. e ROSENDAHL, Z. – A Geografia Cultural no Brasil. Revista da ANPEGE, 2, 2005.
COSGROVE, D. – The Palladian Landscape - Geographical Change and Its Representation. University Park, Pennsylvania State University Press, 1993a.
COSGROVE, D. – The “Reinvention of Cultural Geography” by Price and Lewis. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 515-517, 1993b.
COSGROVE, D. – A Geografia Está em Toda Parte: Cultura e Simbolismo nas Paisagens Humanas. In Paisagem, Tempo e Cultura, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1998.
COSGROVE, D. (org.) – Mappings. London, Reaktion Books, 1999a.
COSGROVE, D. – A Idéia de Cultural: Uma Resposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 59-61, 1993b.
COSGROVE, D. – Mundos de Significados: Geografia Cultural e Imaginação. In Geografia Cultural: Um Século (2), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2000.
COSGROVE, D. – Em Direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
CRAMPTON, J.W. – Maps as Social Construction: Power, Communication and Visualization. Progress in Human Geography, 25(2), pp. 235-252, 2001.
DARDEL, E. – L’Homme sur la Terre. Nature de la Realilté Géographique. Paris, PUF, 1952.
DUNCAN, J. – The City as Text. The Politics of Interpretation in the Kandyan Kingdom. Cambridge, Cambridge University Press, 1990
DUNCAN, J. – On “The Reinvention of Cultural Geography” by Price and Lewis. Commentary. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 517-519, 1993.
DUNCAN, J. – Após a Guerra Civil – Reconstruindo a Geografia Cultural como Heterotopia. In Geografia Cultural: Um Século (2), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2000.
DUNCAN, J. – O Supra-orgânico na Geografia Cultural Americana. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
DUNCAN, J. e DUNCAN, N. – Reconceitualizando a Idéia de Cultura em Geografia: Uma Resposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 63-67, 1999.
DUNCAN, N. e SHARP, J. – Confronting Representations. Environment and Planning, D, Society and Space, 11, pp. 475-486, 1986.
GALLAIS, J. – Alguns Aspectos do Espaço Vivido nas Civilizações do Mundo Tropical. In Geografia Cultural: Um Século (3), org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 200__.
GEERTZ, C. – A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1989.
GEERTZ, C. – O Saber Local. Petrópolis, Vozes, 2004.
HALL, S. Representations. Cultural Representations and Signifying Practices. London, Routledge Publications, 1997.
HARVEY, D. – Monument and Myth. Annals of the Association of American Geographers, 69(3), pp. 362-381, 1979.
HERMAN, R.D.K. – The Aloha State: Place Names and the Anti-Conquest of Hawaii. Annals of the Association of American Geographers, 89(1), pp. 76-102, 1999.
HOEFLE, S.W. – Cultura na História do Pensamento Científico. Revista da Pós-Graduação em Geografia, UFRJ, no 2, pp. 6-29, 1998.
JACKSON, P. – Maps of Meaning. London, Routledge, 1989.
JACKSON, P. – Berkeley and Beyond: Broadening the Horizons of Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 519-520, 1989.
JACKSON, P. – A Idéia de Cultura: Uma Reposta a Don Mitchell. Espaço e Cultura, 8, pp. 55-57, 1999.
LEIB, J.I. – Separated Times, Shared Spaces: Arthur Ashe, Monument Avenue and the Politics of Richmond, Virginia’s Symbolic Landscape. Cultural Geographies, 9, pp. 286-312, 2002.
MITCHELL, D. – Não Existe Aquilo que Chamamos de Cultura: Para uma Reconceitualização da Idéia de Cultura em Geografia. Espaço e Cultura, 8, pp. 31-53, 1999a.
MITCHELL, D. – Explicação em Geografia Cultural: Uma Reposta a Cosgrove, Jackson e aos Duncans. Espaço e Cultura, 8, p. 69-73, 1999b.
MITCHELL, D. – Cultural Geography. A Critical Introduction. Oxford, Blackwell, 2000.
MONDADA, L. e SÖDERSTROM, O. – Do Texto à Interação: Percurso Através da Geografia Cultural. In Paisagem, Textos e Identidade, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2004.
MOORE, J. – Visions of Culture: An Introduction to Anthropological Theory and Theorists. Walnut Creek, Altamira, 1997.
MYERS, G.A., MCGEEVY, P., CARNEY, G.O. e KENNY, J. – Cultural Geography. In Geography in America at the Dawn of 21st Century, org. G.L. Gaile e C.J. Willmott. Oxford, Oxford University Press, 2003.
PANOFSKY, E. – Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao Estudo da Arte na Renascença. In Significados das Artes Visuais. São Paulo, Perspectiva, Série Debates, 2004.
PEET, R. – A Sign Taken for History. Daniel Shays Memorial in Petersham, Massachusetts. Annals of the Association of American Geographers, 86(1), pp. 21-43, 1996.
PHILO, C. – Más Palabras, Más Mundos: Reflexiones en torno al “Giro Cultural” y a la Geografia Social. Documents e Analisis en Geografia, 34, pp. 81-99, 1999.
PRICE, M. e LEWIS, M. – The Reinvention of Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(1), pp. 1-17, 1993a.
PRICE, M.E. e LEWIS, M. – Reply: On Reading Cultural Geography. Annals of the Association of American Geographers, 83(3), pp. 520-422, 1993b.
ROWNTREE, L.B. e CONLEY, M.W. – Symbolism and the Cultural Landscape. Annals of the Association of American Geographers, 70(4), pp. 459-479, 1980.
SALOMON, A. – Symbols and Images in the Constitution of Society. In Symbols and Society, org. L. Bryson et al. New York, Harper and Brothers, 1955.
SHORT, J.R. – Imagined Countries. London, Routledge, 1991.
TAILLARD, C. – Diversidade de Definições e Diferenciações das Práticas Geográficas: Contribuição para o Debate. Espaço e Cultura, 14, pp. 23-32, 2003.
YEOH, B.S. – Street-naming and Nation-building: Toponymic Inscriptions of Nationhood in Singapore. Area, 28(3), pp. 298-307, 1996.
WAGNER, P. e MIKESELL, M. – Os Temas da Geografia Cultural. In Introdução à Geografia Cultural, org. R.L. Corrêa e Z. Rosendahl. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003 (original de 1962).
WHITE, L. – Leslie White. In High Points in Anthropology, org. P. Bohannan e M. Glazer. New York, Alfred Knopf, 1973.
WILLIAMS, R. – Base e Superestrutura na Teoria Cultural Marxista. Espaço e Cultura, 14, pp. 7-21, 2003.
terça-feira, 14 de junho de 2011
Violência e colaboração de classe: o assassinato de militantes camponeses e a aprovação do “novo código florestal”
No último dia 24 de maio foi aprovado na Câmara dos Deputados o relatório do deputado Aldo Rebelo (PCdoB) sobre o Código Florestal por esmagadora maioria. No mesmo dia e a na mesma seção grande parte dos deputados saudaram o assassinato dos líderes extrativistas José Cláudio Ribeiro da SIlva e Maria do Espírito Santo Silva. Os dois foram assassinados a tiros no interior do Projeto de Assentamento Extrativista, Praia Alta Piranheira, no município de Nova Ipixuna, sudeste do Pará. Na sexta-feria, dia 27 de maio, Adelino Ramos, o Dinho, sobrevivente do massacre de Corumbiara, foi assassinado no distrito Ponta de Abunã, em Rondônia. Sábado, dia 28 de maio, foi a vez do camponês-extrativista Erenilto Batista Afonso, ele também era integrante do assentamento extrativista Praia Alta Piranheira e segundo a CPT, foi morto por ter testemunhado o assassinato de José Claúdio Ribeiro e Maria do Espirito Santo.Na quarta-feira, dia 01 de Junho, Marcos Gomes da Silva, trabalhador rural do acampamento Nova Sapucaia, em El Dorado dos Carajás, no Pará, foi mais um assassinado.
Esses quatro assassinatos em menos de uma semana ganharam a mídia burguesa na semana que o agronegócio teve sua grande vitória na câmara dos deputados aprovando o Código Florestal. De maneira geral este novo código favorece ainda mais a expansão da fronteira agrícola. Na matéria do Causa do Povo Nº 52, de novembro de 2009, “O governo Lula/PT e a luta pela terra no Brasil” já indicávamos que os sete anos do governo Lula geraram uma contra-reforma agrária do agronegócio.
A aliança com o chamado “agronegócio” (corporações e setores agro-exportadores diretamente coligados, usineiros, empresários do ramo de celulose, laticínios e frigoríficos) foi fundamental para o governo de Lula (PT), tanto que um de seus ministros da agricultura, Roberto Rodrigues, era representante da União da Indústria de Cana-de-açúcar (UNICA). O sucesso do crescimento econômico brasileiro esteve diretamente associado ao alto preço das commodities no mercado internacional, que favoreceram as exportações brasileiras. Tal situação elevou o peso deste setor no PIB e na economia brasileira, fruto dos ajustes neoliberais feitos pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB/DEM). Hoje o setor representa 36% das exportações brasileiras.
Assim, a pressão para mudança da legislação ambiental, que de certo modo dificultava a expansão do “agronegócio”, aumentou na medida em que o setor tornava-se peça fundamental na composição do governo e na economia do país. A violência no campo contra o camponês, o assalariado rural, o sem terra, a população ribeirinha e os trabalhadores extrativistas não pararam. Pelo contrário. Os assassinatos, portanto, infelizmente não são novidades.
A reforma agrária não avançou um centímetro no país, e inclusive deixou de ser o eixo de luta principal dos movimentos, em especial do MST. Mudando da luta pela terra e pela reforma agrária, para uma luta “contra o agronegócio”, adotando assim uma política governista. Política que também se revigorou nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e na CONTAG - hoje controlada pelo PCdoB, um dos principais partidos do governo e hoje aliado do agronegócio. Esse deslocamento da “luta pela reforma agrária” para a “luta contra o agronegócio” implicou na prática numa abdicação da tática da ação direta.
Para lutar contra o agronegócio é preciso continuar fazer a luta direta pela terra. E a abdicação dessa luta (especialmente das ocupações de terras) que marcou a tática do MST durante o governo Lula.
Por fim, os trabalhadores do campo no Brasil continuarão a ser assassinatos - como foram agora JOSÉ CLÁUDIO, MARIA DO ESPÍRITO SANTO, DINHO, ERENILTO e MARCOS - Enquanto os que matam forem os que governam. A responsabilidade da morte dos cinco trabalhadores rurais é toda do atual governo e dos representantes do agronegócio. Para ampliar seus lucros, não só superexploram os trabalhadores como matam aqueles que lutam bravamente pelo seu pedaço de terra e pela defesa do meio ambiente contra a exploração e dominação capitalista. Corumbiara, Califórnia Paulista e tantos outros ficaram impunes. É a força deste latifúndio que tem assassinado homens e mulheres do campo.
Para avançar na luta dos trabalhadores no campo hoje, é preciso denunciar a conciliação das direções dos movimentos de luta pela terra e das Centrais e confederações sindicais. Também é necessário criar e organizar oposições de luta, retomando as bandeiras de luta pela terra; por emprego, piso e aumento salarial nacional para todos os trabalhadores rurais; e pela destruição do latifúndio. Para isso, é fundamental organizar nossa autodefesa e retomar as ocupações de terras e dos prédios do governo; os saques de alimentos e remédios. Caso contrário, veremos companheiros caírem mortos pela ação do agronegócio, hoje representado pela CNA, e pela omissão dos seguidos governos. Ontem de Fernando Henrique e Lula. Hoje de Dilma Roussef (PT).
Aos nossos mortos nenhum minuto de silêncio. Mas toda uma vida de luta!
Comunicado Nº 33 da União Popular Anarquista - UNIPA - Junho de 2011
Esses quatro assassinatos em menos de uma semana ganharam a mídia burguesa na semana que o agronegócio teve sua grande vitória na câmara dos deputados aprovando o Código Florestal. De maneira geral este novo código favorece ainda mais a expansão da fronteira agrícola. Na matéria do Causa do Povo Nº 52, de novembro de 2009, “O governo Lula/PT e a luta pela terra no Brasil” já indicávamos que os sete anos do governo Lula geraram uma contra-reforma agrária do agronegócio.
A aliança com o chamado “agronegócio” (corporações e setores agro-exportadores diretamente coligados, usineiros, empresários do ramo de celulose, laticínios e frigoríficos) foi fundamental para o governo de Lula (PT), tanto que um de seus ministros da agricultura, Roberto Rodrigues, era representante da União da Indústria de Cana-de-açúcar (UNICA). O sucesso do crescimento econômico brasileiro esteve diretamente associado ao alto preço das commodities no mercado internacional, que favoreceram as exportações brasileiras. Tal situação elevou o peso deste setor no PIB e na economia brasileira, fruto dos ajustes neoliberais feitos pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB/DEM). Hoje o setor representa 36% das exportações brasileiras.
Assim, a pressão para mudança da legislação ambiental, que de certo modo dificultava a expansão do “agronegócio”, aumentou na medida em que o setor tornava-se peça fundamental na composição do governo e na economia do país. A violência no campo contra o camponês, o assalariado rural, o sem terra, a população ribeirinha e os trabalhadores extrativistas não pararam. Pelo contrário. Os assassinatos, portanto, infelizmente não são novidades.
A reforma agrária não avançou um centímetro no país, e inclusive deixou de ser o eixo de luta principal dos movimentos, em especial do MST. Mudando da luta pela terra e pela reforma agrária, para uma luta “contra o agronegócio”, adotando assim uma política governista. Política que também se revigorou nos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e na CONTAG - hoje controlada pelo PCdoB, um dos principais partidos do governo e hoje aliado do agronegócio. Esse deslocamento da “luta pela reforma agrária” para a “luta contra o agronegócio” implicou na prática numa abdicação da tática da ação direta.
Para lutar contra o agronegócio é preciso continuar fazer a luta direta pela terra. E a abdicação dessa luta (especialmente das ocupações de terras) que marcou a tática do MST durante o governo Lula.
Por fim, os trabalhadores do campo no Brasil continuarão a ser assassinatos - como foram agora JOSÉ CLÁUDIO, MARIA DO ESPÍRITO SANTO, DINHO, ERENILTO e MARCOS - Enquanto os que matam forem os que governam. A responsabilidade da morte dos cinco trabalhadores rurais é toda do atual governo e dos representantes do agronegócio. Para ampliar seus lucros, não só superexploram os trabalhadores como matam aqueles que lutam bravamente pelo seu pedaço de terra e pela defesa do meio ambiente contra a exploração e dominação capitalista. Corumbiara, Califórnia Paulista e tantos outros ficaram impunes. É a força deste latifúndio que tem assassinado homens e mulheres do campo.
Para avançar na luta dos trabalhadores no campo hoje, é preciso denunciar a conciliação das direções dos movimentos de luta pela terra e das Centrais e confederações sindicais. Também é necessário criar e organizar oposições de luta, retomando as bandeiras de luta pela terra; por emprego, piso e aumento salarial nacional para todos os trabalhadores rurais; e pela destruição do latifúndio. Para isso, é fundamental organizar nossa autodefesa e retomar as ocupações de terras e dos prédios do governo; os saques de alimentos e remédios. Caso contrário, veremos companheiros caírem mortos pela ação do agronegócio, hoje representado pela CNA, e pela omissão dos seguidos governos. Ontem de Fernando Henrique e Lula. Hoje de Dilma Roussef (PT).
Aos nossos mortos nenhum minuto de silêncio. Mas toda uma vida de luta!
Comunicado Nº 33 da União Popular Anarquista - UNIPA - Junho de 2011
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Os 140 anos da Comuna de Paris e a Teoria do Anti-Estado
A insurreição proletária de março de 1871, que ocorreu na capital francesa, instaurou uma experiência de autogoverno dos trabalhadores, conhecida como a Comuna de Paris.
Sendo um dos marcos da luta dos trabalhadores contra a exploração e opressão burguesa, a Comuna da Paris suscitou importantes debates a cerca da ideologia, da teoria, da estratégia e do programa revolucionários. Entretanto, o predomínio das
análises de orientação marxista tem negligenciado aspectos centrais dessa experiência revolucionária, especialmente, no que diz respeito à participação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), o papel da Aliança e a teoria do anti-Estado.
A União Popular Anarquista (UNIPA) aproveita os 140 anos da Comuna para saldar essa
insurreição proletária e destacar o papel da ideologia e da teoria anarquista nessa experiência de autogoverno dos trabalhadores.
1. O contexto político da Comuna de Paris
A derrota na guerra contra a Prússia (1870) pôs fim ao regime do imperador francês Napoleão III, Luís Bonaparte, e deu início ao Governo Provisório liderado pela burguesia. Inicialmente o Governo Provisório foi exercido por Leon Gambetta, posteriormente passou ao comando de Adolphe Thiers.
Sob a liderança de Bismarck, a Alemanha estava em processo de unificação e disputava a hegemonia européia com a França e a Inglaterra. Os alemães já tinham conquistado as regiões francesas de Alsácia e Lorena, pelo Tratado de Frankfurt.
O exército prussiano sitiou a cidade de Paris e o Governo Provisório francês propôs um armistício.
Por sua vez, o movimento operário na França estava consolidando sua organização política e sua consciência de classe, através da AIT. Estava mobilizado para a luta reivindicativa e começava a tomar parte nas questões da guerra. O movimento dos trabalhadores se deu conta que somente a sua iniciativa seria capaz de derrotar a ameaça de invasão prussiana, uma vez que a burguesia havia capitulado.
A insurreição começa em 1871 com a rebelião da Guarda Nacional que não aceitou a ordem de depor as armas. A Guarda Nacional executou seus generais e tomou a prefeitura de Paris. Thiers transferiu a sede do governo burguês para Versalhes e organizou a invasão da capital francesa. A resposta da classe trabalhadora foi a organização da Comuna de Paris – o autogoverno dos trabalhadores. A insurreição dos communards estabeleceu uma dualidade de poder: de um lado o poder burguês representado pelo Governo Provisório e seus aliados alemães; do outro lado, um poder operário-popular materializado na Comuna de Paris.
2. O papel da AIT e da Aliança na Comuna de Paris
O predomínio das interpretações marxistas sobre a Comuna produziu dois grandes equívocos: primeiro, a idéia de que o movimento insurrecional teve um caráter
espontâneo, isto é, não foi o resultado de uma ação consciente dos trabalhadores,
e, o segundo equívoco, é a defesa, feita por Engels e por Lênin, de que a Comuna foi a primeira experiência da “Ditadura do Proletariado”.
Em 1870 a AIT já se constituía com uma das principais forças políticas da Europa, o espaço de organização das lutas dos trabalhadores europeus. A Associação Internacional dos Trabalhadores aprovou resolução contra a Guerra Franco-Prussiana, conclamando a unidade dos trabalhadores dos dois países.
Por sua vez, o movimento operário francês, responsável pela fundação da AIT juntamente com os trabalhadores ingleses em 1864, encontra-se fortemente organizados, enfrentando o governo absolutista de Napoleão III. Entre as lideranças dos trabalhadores franceses destaca-se Eugène Varlin (1839-1871), encadernador de livros, um dos principais organizadores da seção francesa da AIT e membro da Aliança (organização revolucionária anarquista da qual fazia parte Mikhail Bakunin).
Varlin participou ativamente da insurreição de março, sendo eleito para o Comitê Central da Guarda Nacional, convocando os demais membros da AIT à participação no Comitê, também foi eleito para três distritos da Comuna e participando da resistência da última barricada.
Antes da eclosão da insurreição, o posicionamento da Aliança, a partir dos escritos e das ações de Bakunin e Varlin, é bem explícito: somente a Revolução Social poderia garantir a proteção do povo francês diante da opressão interna, o governo monárquico de Napoleão III, e da opressão externa, a invasão prussiana.
Em 1870, Bakunin estava em Lyon e organizou o Comitê para a Salvação da França e a
Comuna de Lyon (também foram proclamadas Comunas em Marseille, Narbonne, Saint-tienne, Toulouse e Creusot), defendendo a destruição do Estado e a organização do autogoverno dos trabalhadores.
Na sua obra, Cartas a um francês, de 1870, Bakunin afirmava de maneira categórica: Está aqui provado que a França não pode salvar... o Estado. Mas, separadamente desta instituição parasitária e artificial, uma nação somente consiste em seu povo;
consequentemente, somente a ação imediata, não partidária, do povo pode salvar a França, por meio de um levante massivo de todo o povo francês, espontaneamente organizado de baixo para cima, por uma guerra de destruição, uma guerra sem misericórdia, até a morte”.
No início do mês de março de 1871, escrevia Varlin, no texto As sociedades operárias: “Enquanto os nossos estadistas procuram substituir o regime do governo pessoal por um governo parlamentar e liberal (estilo Orléans), esperando assim desviar o avanço de uma revolução que ameaça os seus privilégios. (...) Devemos dedicar ativamente à preparação dos elementos de organização da sociedade futura, de modo a tornar mais fácil e mais certeira a obra de transformação social que se impõe à Revolução”.
Portanto, não há dúvidas de que a teoria e a estratégia revolucionárias anarquistas foram determinantes da deflagração do movimento insurrecional da Comuna de Paris.
Do mesmo modo, o programa dos communards foi o programa da Aliança. Isto é, a abolição do Estado, o povo em armas, a coletivização das fábricas, a igualdade entre homens e mulheres, entre outras...
Sendo assim, o programa da Comuna, por suas características e natureza ideológica,
não tem nenhuma relação com a “Ditadura do Proletariado”. Muito pelo contrário, a Comuna de Paris foi, como conclui Bakunin, a negação do Estado: “Sou um partidário da Comuna de Paris, (...) sou seu partidário em grande parte porque foi uma negação audaz, bem pronunciada, do Estado” (A Comuna de Paris e a noção de Estado).
Também encontramos no texto já citado de Varlin sua defesa da teoria do anti-Estado: “Até agora, os Estados políticos mais não têm sido do que a continuação de regime de conquista que presidiu ao estabelecimento da autoridade e à opressão das massas. (...) Se não quisermos converter tudo num Estado centralizador e autoritário, que nomearia os diretores das fábricas, das manufaturas, dos estabelecimentos de distribuição, os quais por sua vez nomeariam os subdiretores, os contramestres, etc., organizando-se assim hierarquicamente o trabalho de alto a baixo e deixando-se o trabalhador como uma mera engrenagem inconsciente, sem liberdade nem iniciativa, se não quisermos nada disto temos de admitir que os próprios trabalhadores devem dispor livremente dos seus instrumentos de trabalho, possuí-los, com a condição de trocar os seus produtos ao preço de custo, para que exista reciprocidade de serviços entre os trabalhadores das diferentes especialidades”.
Não se pode negar que a Comuna foi composta majoritariamente por republicanos radicais e que os setores socialistas (os chamados “internacionalistas”) eram minoritários. Entretanto, a partir da análise histórica correta sobre a Comuna de Paris não se pode negar que ela foi a primeira experiência do anti-Estado. Resultante de uma insurreição proletária que buscava a abolição do Estado e a construção da Federação e do autogoverno dos trabalhadores. Essa experiência histórica deve ser lembrada pela coragem dos communards em levar as últimas consequências o lema da AIT: A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores!
Viva a Comuna de Paris!
Os communards vivem e vencerão!
Sendo um dos marcos da luta dos trabalhadores contra a exploração e opressão burguesa, a Comuna da Paris suscitou importantes debates a cerca da ideologia, da teoria, da estratégia e do programa revolucionários. Entretanto, o predomínio das
análises de orientação marxista tem negligenciado aspectos centrais dessa experiência revolucionária, especialmente, no que diz respeito à participação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), o papel da Aliança e a teoria do anti-Estado.
A União Popular Anarquista (UNIPA) aproveita os 140 anos da Comuna para saldar essa
insurreição proletária e destacar o papel da ideologia e da teoria anarquista nessa experiência de autogoverno dos trabalhadores.
1. O contexto político da Comuna de Paris
A derrota na guerra contra a Prússia (1870) pôs fim ao regime do imperador francês Napoleão III, Luís Bonaparte, e deu início ao Governo Provisório liderado pela burguesia. Inicialmente o Governo Provisório foi exercido por Leon Gambetta, posteriormente passou ao comando de Adolphe Thiers.
Sob a liderança de Bismarck, a Alemanha estava em processo de unificação e disputava a hegemonia européia com a França e a Inglaterra. Os alemães já tinham conquistado as regiões francesas de Alsácia e Lorena, pelo Tratado de Frankfurt.
O exército prussiano sitiou a cidade de Paris e o Governo Provisório francês propôs um armistício.
Por sua vez, o movimento operário na França estava consolidando sua organização política e sua consciência de classe, através da AIT. Estava mobilizado para a luta reivindicativa e começava a tomar parte nas questões da guerra. O movimento dos trabalhadores se deu conta que somente a sua iniciativa seria capaz de derrotar a ameaça de invasão prussiana, uma vez que a burguesia havia capitulado.
A insurreição começa em 1871 com a rebelião da Guarda Nacional que não aceitou a ordem de depor as armas. A Guarda Nacional executou seus generais e tomou a prefeitura de Paris. Thiers transferiu a sede do governo burguês para Versalhes e organizou a invasão da capital francesa. A resposta da classe trabalhadora foi a organização da Comuna de Paris – o autogoverno dos trabalhadores. A insurreição dos communards estabeleceu uma dualidade de poder: de um lado o poder burguês representado pelo Governo Provisório e seus aliados alemães; do outro lado, um poder operário-popular materializado na Comuna de Paris.
2. O papel da AIT e da Aliança na Comuna de Paris
O predomínio das interpretações marxistas sobre a Comuna produziu dois grandes equívocos: primeiro, a idéia de que o movimento insurrecional teve um caráter
espontâneo, isto é, não foi o resultado de uma ação consciente dos trabalhadores,
e, o segundo equívoco, é a defesa, feita por Engels e por Lênin, de que a Comuna foi a primeira experiência da “Ditadura do Proletariado”.
Em 1870 a AIT já se constituía com uma das principais forças políticas da Europa, o espaço de organização das lutas dos trabalhadores europeus. A Associação Internacional dos Trabalhadores aprovou resolução contra a Guerra Franco-Prussiana, conclamando a unidade dos trabalhadores dos dois países.
Por sua vez, o movimento operário francês, responsável pela fundação da AIT juntamente com os trabalhadores ingleses em 1864, encontra-se fortemente organizados, enfrentando o governo absolutista de Napoleão III. Entre as lideranças dos trabalhadores franceses destaca-se Eugène Varlin (1839-1871), encadernador de livros, um dos principais organizadores da seção francesa da AIT e membro da Aliança (organização revolucionária anarquista da qual fazia parte Mikhail Bakunin).
Varlin participou ativamente da insurreição de março, sendo eleito para o Comitê Central da Guarda Nacional, convocando os demais membros da AIT à participação no Comitê, também foi eleito para três distritos da Comuna e participando da resistência da última barricada.
Antes da eclosão da insurreição, o posicionamento da Aliança, a partir dos escritos e das ações de Bakunin e Varlin, é bem explícito: somente a Revolução Social poderia garantir a proteção do povo francês diante da opressão interna, o governo monárquico de Napoleão III, e da opressão externa, a invasão prussiana.
Em 1870, Bakunin estava em Lyon e organizou o Comitê para a Salvação da França e a
Comuna de Lyon (também foram proclamadas Comunas em Marseille, Narbonne, Saint-tienne, Toulouse e Creusot), defendendo a destruição do Estado e a organização do autogoverno dos trabalhadores.
Na sua obra, Cartas a um francês, de 1870, Bakunin afirmava de maneira categórica: Está aqui provado que a França não pode salvar... o Estado. Mas, separadamente desta instituição parasitária e artificial, uma nação somente consiste em seu povo;
consequentemente, somente a ação imediata, não partidária, do povo pode salvar a França, por meio de um levante massivo de todo o povo francês, espontaneamente organizado de baixo para cima, por uma guerra de destruição, uma guerra sem misericórdia, até a morte”.
No início do mês de março de 1871, escrevia Varlin, no texto As sociedades operárias: “Enquanto os nossos estadistas procuram substituir o regime do governo pessoal por um governo parlamentar e liberal (estilo Orléans), esperando assim desviar o avanço de uma revolução que ameaça os seus privilégios. (...) Devemos dedicar ativamente à preparação dos elementos de organização da sociedade futura, de modo a tornar mais fácil e mais certeira a obra de transformação social que se impõe à Revolução”.
Portanto, não há dúvidas de que a teoria e a estratégia revolucionárias anarquistas foram determinantes da deflagração do movimento insurrecional da Comuna de Paris.
Do mesmo modo, o programa dos communards foi o programa da Aliança. Isto é, a abolição do Estado, o povo em armas, a coletivização das fábricas, a igualdade entre homens e mulheres, entre outras...
Sendo assim, o programa da Comuna, por suas características e natureza ideológica,
não tem nenhuma relação com a “Ditadura do Proletariado”. Muito pelo contrário, a Comuna de Paris foi, como conclui Bakunin, a negação do Estado: “Sou um partidário da Comuna de Paris, (...) sou seu partidário em grande parte porque foi uma negação audaz, bem pronunciada, do Estado” (A Comuna de Paris e a noção de Estado).
Também encontramos no texto já citado de Varlin sua defesa da teoria do anti-Estado: “Até agora, os Estados políticos mais não têm sido do que a continuação de regime de conquista que presidiu ao estabelecimento da autoridade e à opressão das massas. (...) Se não quisermos converter tudo num Estado centralizador e autoritário, que nomearia os diretores das fábricas, das manufaturas, dos estabelecimentos de distribuição, os quais por sua vez nomeariam os subdiretores, os contramestres, etc., organizando-se assim hierarquicamente o trabalho de alto a baixo e deixando-se o trabalhador como uma mera engrenagem inconsciente, sem liberdade nem iniciativa, se não quisermos nada disto temos de admitir que os próprios trabalhadores devem dispor livremente dos seus instrumentos de trabalho, possuí-los, com a condição de trocar os seus produtos ao preço de custo, para que exista reciprocidade de serviços entre os trabalhadores das diferentes especialidades”.
Não se pode negar que a Comuna foi composta majoritariamente por republicanos radicais e que os setores socialistas (os chamados “internacionalistas”) eram minoritários. Entretanto, a partir da análise histórica correta sobre a Comuna de Paris não se pode negar que ela foi a primeira experiência do anti-Estado. Resultante de uma insurreição proletária que buscava a abolição do Estado e a construção da Federação e do autogoverno dos trabalhadores. Essa experiência histórica deve ser lembrada pela coragem dos communards em levar as últimas consequências o lema da AIT: A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores!
Viva a Comuna de Paris!
Os communards vivem e vencerão!
Assinar:
Postagens (Atom)