O presidente Lula, na semana passada, questionou a legitimidade dos países que detêm o monopólio da bomba para se apresentarem como críticos do governo de Teerã. Mais ainda: colocou como pressuposto para um acordo sólido e democrático o desmantelamento de todos os arsenais nucleares. Foi o que bastou para a indignação estridente de alguns comentaristas.
O mandatário brasileiro colocou o dedo em uma ferida. Quem possui autoridade para determinar quais países podem ingressar no clube atômico e quais não?
Por exemplo, por que o Irã deve ser pressionado a abrir mão de seus projetos e Israel merece tolerância? A qual lógica obedece essa discriminação?
Retornemos um pouco no tempo. O documento que serve de base institucional para essa arbitragem é o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e foi assinado em 1968. Naquele momento, no auge da Guerra Fria, cumpriu papel de conjurar os riscos de um conflito atômico.
Com o mundo dividido em dois campos, a restrição ao uso militar da energia
nuclear nas mãos das duas superpotências, União Soviética e Estados Unidos, limitava as possibilidades de conflagração a partir de países que escapassem da hegemonia bipolar.
Na prática, os Estados alinhados a uma ou outra das superpotências delegavam sua defesa estratégica à nação-líder do sistema político-econômico a que pertenciam. Não foi uma regra de fácil implantação: França e China, membros do Conselho de Segurança da ONU, assinaram o tratado apenas em 1992.
Obviamente um acordo com esse perfil reforçava o papel hegemônico de
soviéticos e norte-americanos.
A fórmula continha, além do duopólio nuclear, regras de contenção que
forçavam relativa paridade entre os dois campos, evitando que a supremacia de um ou outro lado, geradora de vantagem comparativa insuperável, servisse de incentivo a puxar o gatilho.
O equilíbrio atômico impedia o choque entre União Soviética e Estados
Unidos. Também estabelecia limites para intervenção militar em guerras
regionais, como foi o caso do Vietnã, onde as forças americanas não puderam recorrer a seus arsenais nucleares. Por fim, ao bloquear a proliferação de armas dessa natureza, reduzia as chances de uma hecatombe que fluísse da periferia para o centro dos sistemas em disputa.
Mas o cenário que deu origem a esse tratado caducou. Após o colapso
soviético, o mundo mergulhou em uma situação de forte desigualdade militar, marcada pela preponderância dos Estados Unidos, que assumiram uma função pretoriana e unilateral sobre a questão atômica.
As conseqüências geopolíticas dessa disparidade são visíveis. A Casa Branca pode, nos últimos vinte anos, comandar guerras de dominação ou ocupação que possivelmente seriam inviáveis no passado. Apenas para lembrarmos os fatos mais notórios: os processos de pacificação da Iugoslávia, do Iraque e do Afeganistão, teriam ocorrido na era da bipolaridade?
Os aliados regionais de Washington passaram a contar com uma margem de manobra muito ampla. A situação mais emblemática é no Oriente Médio. O desequilíbrio bélico a favor de Israel, apesar desse país até hoje ter se
recusado a assinar o tratado de não-proliferação, é pedra angular na
política norte-americana.
A fragilidade defensiva e ofensiva de palestinos e países árabes, além do
Irã, garante ao sionismo não apenas a segurança das fronteiras israelenses como também a execução de uma política expansionista praticamente ilimitada. O desequilíbrio militar, afinal, é uma premissa para a hegemonia imperialista.
A verdade é que os Estados Unidos, com a cumplicidade de outras potências atômicas, lograram fazer do velho tratado um instrumento de sua supremacia, exatamente um dos cenários que se desejava evitar há quarenta anos. Os norte-americanos não são fortes o suficiente, por exemplo, para exigir a liquidação dos arsenais de Rússia e China, mas tratam de impedir que surjam novos protagonistas nucleares que desorganizem sua estratégia de poder.
Afinal, até países com economia frágil, incapazes de manter exércitos
regulares dotados com os equipamentos mais modernos, poderiam desenvolver o ciclo atômico completo e criar um arsenal tático, com poder dissuasório ou de médio alcance, ampliando sua capacidade defensiva. A Coréia do Norte, que rompeu com o tratado em 2003, é uma evidência dessa possibilidade.
Não há qualquer sensatez, é evidente, em se apostar na disseminação do
poderio nuclear como caminho para a paz. Mas a renúncia unilateral ou
forçada à soberania atômica, nos termos atuais, significaria aceitar como
imutável a geopolítica da supremacia.
O presidente Lula, com seu modo cordato, deixou claro que o antigo tratado
está com validade vencida. Suas palavras apontam para outro tipo de acordo, baseado na igualdade de todas as nações perante a lei internacional. Fora desse parâmetro, é o reino da hipocrisia.
Breno Altman é jornalista e diretor de redação do site Opera Mundi
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