A vitória de Evo Morales na eleição passada, com maioria no Parlamento Nacional, pode significar a definitiva arrancada do país para fora do aprisco de sua pesada herança colonial de 500 anos, rumo ao século XXI. Agora terá o presidente boliviano, com o movimento que o apóia, a oportunidade de construir, no país andino, a arrojada experiência cultural, social, política e, não menos importante, de um estado plurinacional.
O conceito de “estado plurinacional” não é novo; e com uma certa largueza de vistas, ele pode ser aplicado a realidades tão distintas como as do Reino Unido e Índia, passando pelo Canadá, Bélgica, Espanha, Suíça, muitos países do antigo Leste europeu e da África, Timor Leste, além de outros casos. O Paraguai está na fronteira dessa realidade; é, em todo caso, assim como o Peru, um estado plurilingüístico (bilíngüe na versão oficial).
É claro que agora, como se trata da Bolívia, a agenda conservadora do nosso país vai levantar a clava forte da “ameaça de regressão histórica” a poucos metros da nossa fronteira. Muitos dos agentes desse mesmo pensamento não hesitaram em apoiar as sublevações reacionárias das elites de Santa Cruz de la Sierra e de outras províncias contra o governo de Morales, mesmo que isso representasse o risco de uma guerra civil a esses poucos metros da nossa fronteira. Assim como não hesitaram em apoiar, veladamente ou não, o golpe de estado em Honduras, porque isso, enfim, era “contra Hugo Chavez” e logo depois “contra o Lula”.
A construção de um estado plurinacional é a única maneira de manter a unidade administrativa da Bolívia, e aberta a participação dos movimentos populares que se impuseram nos últimos anos e abriram caminho para o governo de Morales. Sem esse reconhecimento, que restaura no plano do Direito e da Cultura Política, comunidades inteiras que foram simplesmente tornadas “invisíveis” ao longo da dominação secular a que foram submetidas, é impossível pensar em reconciliação nacional, integração, e desenvolvimento de fato para os bolivianos.
É claro que esse estado não é nenhuma fórmula mágica aplicável a toda e qualquer situação. A nossa Constituição de 1988 reconheceu a realidade multicultural e multilinguística do país, ao mesmo tempo em que reconhecia/impunha a “unidade nacional”. Talvez, pelas condições presentes, essa seja a nossa conquista e o nosso limite. Mas isso também não é nenhuma fórmula a ser carimbada pelo continente a fora.
Se a Bolívia conseguir consolidar uma política de integração e convívio culturais, no plano das instituições sociais e políticas do país, terá dado um passo enorme no sentido de deixar de ser simplesmente o país estatisticamente mais pobre da América do Sul, para se transformar na sede de uma arrojada experiência histórica.
E lembremos que esse país, agora passível de acusação por estar, supostamente, em “regressão histórica”, tem o certificado da Unesco de eliminação do analfabetismo, coisa que o nosso não tem.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.
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