Um helicóptero abatido desde o morro dos Macacos, como no Iraque ou nos filmes de aventura, foi a grande sensação pelo seu ineditismo entre nós. Como se os fogos cruzados não fossem fatos corriqueiros, vividos no cotidiano das favelas e nas áreas circundantes. O fato, entretanto, teve um resultado positivo. Apesar da tragédia e de mortes de profissionais em serviço, chamou a atenção do grande público para uma realidade que é crônica. Do outro lado, trouxe um elemento negativo: crer que a situação só vai piorando, o que não é bem verdade, como intentaremos dizer adiante.
Esses problemas de drogas, armas e violência não se resolvem de uma hora para outra. É preciso medidas em muitas direções e algumas, isto é importante, já estão sendo tomadas. A Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, recentemente articulada pelo Viva Rio, as vai sinalizando. Não esperemos resultados mágicos, mas um lento e progressivo processo. Um fato importante: se estão concretizando articulações entre o nível federal, o estadual e o municipal, ainda que perdurem velhos ressaibos de dividir atribuições estanques. Frente a um fenômeno global, há que enfrentá-lo por todos os lados, na força pública, na saúde, na educação, com a juventude e os pais, com as religiões.
Em que momento iremos chegar a distinguir a diferença entre os efeitos das diversas drogas: o da maconha, apenas um pouco mais daninha que o cigarro, da cocaína e principalmente o do crack, este mais barato e com resultados devastadores? Uma pesquisa mostrou que as prisões se dão em boa parte entre usuários eventuais que utilizam pequenas doses. Não se ataca a origem. Porque não descriminalizar esses usuários e concentrar-nos nos criminosos maiores, que fazem circular as drogas? Nesse sentido, um projeto está amadurecendo, para ser encaminhado à Câmara de Deputados. Teríamos, a médio prazo, de chegar à legalização do uso da maconha, mas ao que tudo indica, não existe, no momento, clima favorável no legislativo. As religiões e os preconceitos ainda bloqueiam. E os meios de comunicação não ajudam nessa tarefa de colaborar para derrubar barreiras. Mas há que chegar lá.
Quando nos Estados Unidos se levantou a interdição do álcool, ruíram as gangues e os gangsteres que viviam da proibição e da contravenção. O próprio jogo do bicho, ainda formalmente proibido, já está em baixa e não é nele que se concentram as principais medidas. Muitos dos grandes contraventores emigraram para negócios mais rentáveis de drogas e de armas.
Há ações em curso em algumas favelas do Rio, em programas de pacificação, com a presença militar e civil de entidades das próprias comunidades e de ONGs que ali atuam. Existe também um difícil e lento processo de reciclar as polícias e de orientá-las numa direção de prevenção e não de mera repressão.
Em lugar de elencar problemas é tempo de visibilizar ações em curso. E elas estão aí. Não é verdade que a situação agora seja mais violenta do que em anos anteriores. Não nos deixemos enganar pela espetacularidade do caso do helicóptero. Aplaudamos e colaboremos para serem conhecidas ações de cidadania em Dona Marta, Cidade de Deus, Chapéu Mangueira, Manguinhos ou na Maré, com a presença da polícia, do PAC, do BNDES, da Fiocruz, da UFRJ ou de ONGs como Ibase, Viva Rio, Bento Rubião e Ceasm. É possível perceber um movimento em curso, contraditório, que convive com terríveis ações em sentido contrário, como aquela morte de um grupo de jovens que voltavam pacificamente de uma festa. Não nos enganemos, ainda haverá outras mobilizações destruidoras, O assassinato rotineiro convive com práticas em sentido criativo.
E há o grande problema das armas. Compete à polícia federal vigiar as fronteiras, mas também, os corredores internos de armamentos, que não vêm apenas do exterior, mas do próprio exército, cujos membros podem ser cúmplices por omissão, quando não diretamente envolvidos no roubo.
Bogotá conseguiu, com ações integradas, tornar-se uma cidade sem a violência de anos atrás, quando sair desacompanhado à rua era um enorme risco. Segue a insegurança e a luta fratricida em várias áreas do país. Mas uma profilaxia na capital da Colômbia está dando certo.
Nesse sentido, a preparação da copa do mundo de 2014 e as olimpíadas de 2016 podem ser uma excelente oportunidade para ações conjuntas do estado em seus vários âmbitos e da sociedade civil organizada. Despoluir a baía da Guanabara sim, como os ingleses despoluíram o Tâmisa. Mas além e mais do que isso, faz-se necessário expulsar grupos criminosos do Grande Rio, o que não se resume a ações nas favelas. No asfalto também há a necessidade de medidas fortes e eficientes. E não continuemos a ser cidades sitiadas e rodeadas de muros de proteção, num horrível apartheid social e cultural.
Estive folheando velhas crônicas de 1908 de João do Rio, que tão bem conheceu e descreveu esta cidade, “nova – a única talvez no mundo – cheia de tradições” (Cinematógrafo. Crônicas cariocas, ABL, 2009). Observava, naqueles anos, os terríveis problemas da violência: “é assombrosa a proporção de crimes nesta cidade” (p. 28). Pregava já então, certamente ingenuamente iludido: “Com uma boa polícia de costumes, a cidade dentro em pouco estará regenerada”. Mas dizia com acerto: “Não é depois do crime que se é útil. É antes. De posse desse princípio a autoridade procede como um cultivador num jardim. Firme para impedir o crime” (p. 227). E sonhava, desta vez mais lúcido: “A reforma é um resultado da evolução... Reformemos, reformemos, reformemos quanto for possível” (p. 39).
Onde descobrir o bom no meio de maldades e de destruições? Não estarão amarrados uns aos outros, difíceis de separar? Nosso cronista indicava: “A escuridão parecia aumentar, e, involuntariamente ... sentimos n’alma a emoção inenarrável que a bondade do que julgamos mau sempre nos causa” (p. 33). Isso era dito por um observador perspicaz, atento aos meio-tons e aos entreveros da realidade, onde bem e mal nem sempre ficam fáceis de distinguir. Não são, pois, problemas de hoje. Vêm, pelo menos, do começo do século passado. Mas, como João do Rio, podemos esperar e apoiar transformações.
O Rio precisa voltar a ser uma cidade acolhedora, cosmopolita e alegre. Ali conviviam a violência indicada pelo cronista, com a hospitalidade e uma certa euforia irresponsável. Os velhos sambas do morro são uma bela expressão desse último clima. E já existem, repito, medidas nessa direção.
Em lugar de análises de conjuntura paralisantes que só mostram o lado negativo, há que deixar aparecer e valorizar iniciativas que estão acontecendo em vários lugares. Alguns podem não estar de acordo com certos aspectos de políticas federais, do estado ou do município, nem simpatizar com estas ou aquelas pessoas que estão à frente das ações. Deixemos, porém, cair barreiras, preconceitos e antipatias menores. Nosso Rio de Janeiro está em processo de transformação e temos de colaborar para que isso seja cada vez mais efetivo.
Luiz Alberto Gómez de Sousa, sociólogo e ex-funcionário das Nações Unidas, é diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes.
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