As reações de militares ao atacar o debate sobre a tortura praticada durante a ditadura não estão em sintonia com o regime democrático vigente no país nem com o sentimento do povo brasileiro.Após afirmar ao sair de ato no Clube Militar, no último dia 7, que “o único erro foi torturar e não matar”, além de agredir manifestantes com palavrões, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), na sessão da Câmara no dia 12, voltou a cometer xingamentos e ofensas, contra ministros do governo Lula.O fato irritou o presidente da sessão, deputado José Inocêncio (PR-PE), a ponto dele determinar ao Serviço de Taquigrafia o corte das indevidas expressões proferidas pelo defensor da tortura e do assassinato. O deputado Bolsonaro responderá a processo regimental e poderá perder o mandato pela permanente quebra do decoro parlamentar.Nota conjunta dos clubes Militar, Naval e da Aeronáutica, classificou como “imoral e fora de propósito” a iniciativa dos titulares da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e da Justiça, Tarso Genro, de defender o direito à memória e à verdade, bem como a apuração de responsabilidade de torturadores, pois, enfatizaram os ministros, a tortura é crime de lesa-humanidade e imprescritível.A mídia dominante de direita procurou desinformar a população. Embora ambos os ministros sublinhassem não estar em jogo a revisão da Lei de Anistia, de 1979, o assunto assim foi apresentado. O Globo, por exemplo, se superou, chegou a apontar os insatisfeitos com a discussão sobre a tortura como os grandes defensores da anistia. A vitoriosa luta democrática e popular da anistia, em nenhum momento, se propôs a “anistiar” torturadores. Eles continuaram a desfrutar de impunidade por conta de um “pequeno detalhe”, a ditadura, na ocasião, continuava a existir no país e ainda nos infelicitaria por quase cinco anos.“Olha que eu chamo o Pires”O inesquecível general Figueiredo, o último dos ditadores do regime de 1964, diante do avanço da luta democrática e popular, vez ou outra ameaçava: “Olha que eu chamo o Pires”, numa referência ao então ministro do Exército, o general Walter Pires.Hoje, com a democracia existente no país, ao se entrar no “site” do Comando Militar do Leste, ainda se depara com a mesma retórica da ditadura, e aparece imediatamente em destaque uma citação do general Walter Pires, de 1983: “Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade, cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores e terroristas de armas na mão para que a nação não fosse levada à anarquia”. O atual comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira, participou, com traje civil, da reunião do Clube Militar, no último dia 7, em que um dos presentes foi o torturador Brilhante Ustra, o tenebroso Dr. Tibiriçá, ex-comandante do terrorista DOI-Codi paulista.Quanto a terrorismo, o general Walter Pires, e seu superior hierárquico imediato, o inesquecível general Figueiredo, apesar de terem todas as armas à mão, não se contrapuseram aos terroristas do Riocentro, os mesmos que cometeram diversos atentados, incendiaram bancas de jornais, atacaram com bombas jornais de esquerda, assassinaram D. Lyda Monteiro da Silva no atentado à OAB, mutilaram e cegaram o funcionário José Ribamar de Freitas no atentado ao gabinete do vereador Antonio Carlos Carvalho e à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.Note-se, tudo isso em 1980, após a anistia, inconformados com ela e os rumos democráticos para os quais o país se encaminhava. Note-se também que, hoje, o plenário da Câmara carioca, reflexo da democracia, se chama Plenário Vereador Antonio Carlos Carvalho.“Anistia não é amnésia”É o que diz o presidente da OAB, Cezar Britto. Da mesma opinião é Augustino Veit, que foi presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça: “A Lei de Anistia não abrange atrocidades cometidas por agentes de Estado contra brasileiros. Os atos a que me refiro são a tortura, o desaparecimento e a morte, que foram perpetrados por agentes do Estado brasileiro em decorrência de uma decisão política do governo militar na época da ditadura”. Para ele, “se nós não reconhecermos que o Estado brasileiro efetivamente praticou essas atrocidades, corremos o risco de retornar ao Estado ditatorial. Precisamos tomar essas atitudes como fortalecimento e consagração da nossa ainda jovem democracia. É necessário avançar e discutir para acharmos a melhor forma de alcançar isso. Esquecer é um péssimo caminho e não o aceitaremos. A sociedade precisa se manifestar em favor da posição de Tarso Genro e Paulo Vannuchi, ou seja, contra os setores de direita e conservadores, que não querem abrir os arquivos e punir os torturadores e assassinos da ditadura”. Há diferença profunda entre os que lutaram contra a ditadura e seus algozes, segundo Veit: “Aqueles que lutaram eram cidadãos que defendiam liberdade, igualdade e eram contra a ditadura”. Já os defensores da ditadura “praticaram atrocidades da tortura, da morte, do desaparecimento em nome do Estado. Aí está a diferença”.O ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos chega a uma importante conclusão: “Nunca se discutiu o papel das Forças Armadas no Brasil. Conseguimos avançar apenas quando se criou o Ministério da Defesa. As Forças Armadas estão acostumadas a não se integrar nos passos democráticos que o país está dando. Até agora, elas querem trilhar caminhos paralelos ao Estado Civil brasileiro, o que é inconcebível. Não podem operar paralelamente, pretendendo posições não democráticas. Daí ser preciso derrubar esse tabu, o que demanda rever diversas funções que são do Estado brasileiro. Em suma, as Forças Armadas precisam estar em sintonia com o avanço democrático do país”.Luta democráticaDurante ato no dia 13, na Praia do Flamengo, 132, endereço histórico da sede da UNE, o presidente Lula assinou mensagem, encaminhada ao Congresso, na qual reconhece a responsabilidade do Estado pela destruição da sede da União Nacional dos Estudante (UNE) e propõe indenização à entidade.A UNE, permanente alvo da sanha dos golpistas de 1964, teve sua sede incendiada a primeiro de abril de 1964. Em 1980, a ditadura demoliu o próprio prédio da UNE para substituí-lo por um estacionamento.Na solenidade, o presidente Lula se referiu aos heróis do povo brasileiro: “A gente só lembra de Tiradentes. O Brasil tem muitas lutas importantes, mas nós não os cultuamos para dar valor ao que essas pessoas fizeram”.Entre esses heróis, Honestino Guimarães, ex-presidente da UNE, um dos desaparecidos da ditadura. Para reverenciar os heróis do nosso povo, como Honestino e tantos outros, é indispensável se saber a verdade acerca do seu desaparecimento, o que pressupõe a abertura dos arquivos de terror da ditadura. A luta democrática cabe a todos os brasileiros, a todos os poderes, executivo, legislativo e judiciário.“Crimes semelhantes aos dos nazistas”Os procuradores do Ministério Público Federal (MPF) Marlon Alberto Weichert e Eugênia Augusta Fávero movem ação em São Paulo contra os ex-comandante e subcomandante do DOI-Codi paulista, respectivamente coronéis Brilhante Ustra e Aldir Maciel. A ação dos procuradores visa impedir que todos os torturadores da ditadura ocupem cargos públicos, como é o caso do ex-torturador do mesmo DOI-Codi paulista, Dirceu Gravina, delegado em Presidente Prudente, como atestou recente denúncia da revista Carta Capital.Segundo o procurador Marlon Weichert, “há uma decisão importantíssima da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 2006, que apreciou os crimes cometidos pela ditadura chilena. Essa decisão classificou os crimes cometidos pelas várias ditaduras do Cone Sul, inclui-se aí Chile, Argentina e Brasil, como crimes contra a humanidade, chamados também de crimes de lesa-humanidade. Esses crimes são semelhantes aos dos nazistas”.E a procuradora Eugênia Fávero completa: “Esses crimes não prescrevem. não se sujeitam a nenhuma medida que libere a responsabilização desses autores”.As Forças Armadas, como uma das instituições básicas nacionais, não têm nenhum motivo, ao contrário, para se identificarem à tragédia da tortura. Para bem cumprir suas funções constitucionais podem se guiar por militares e brasileiros exemplares, como o Marechal Rondon (“Morrer se preciso for, matar um índio nunca”.); o grande soldado da legalidade democrática, o Marechal Henrique Lott; ou, mais proximamente, um honrado militar democrata, herói na luta contra o terrorismo, o Capitão Sérgio Macaco, do Parasar.
Antônio Augusto é jornalista
Antônio Augusto é jornalista
Extraído de www.agenciacartamaior.com.br
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