quinta-feira, 29 de agosto de 2013

POR UMA GEOGRAFIA ANARQUISTA

trabalho apresentado no Encontro Nacional de Geógrafos em Belo Horizonte, 2012

RESUMO

Pretende-se refletir sobre os rumos do pensamento geográfico na atualidade, frente aos desafios da crise da ciência moderna e da crise ambiental, que evidenciam a crise do paradigma e do padrão burguês de racionalidade. Esses processos trouxeram uma serie de desafios para a Geografia, principalmente, porque ao estudar o espaço geográfico, tomam-se como base da reflexão as relações entre humanos e natureza. O momento de crise apresenta-se como um momento privilegiado para evidenciar e debater a ética e a política na ciência. Nesse sentido procura-se debater as possibilidades abertas pela ideia de uma (ou várias) Geografia(s) Anarquista(s). Esse trabalho dá continuidade a uma pesquisa iniciada em 2008 na UFF a partir das discussões do Grupo de Estudos sobre Geografia e Anarquismo e está ligado a outros trabalhos, principalmente o Trabalho de Conclusão de Curso “A Atualidade do pensamento de Elisée Reclus e Peter Kropotkin frente à crise da ciência moderna”, apresentado, em 2010, para a conclusão do curso de Bacharelado em Geografia da UFF. Objetiva-se valorizar o pensamento do geógrafo frances Elisée Reclus (1830-1905) e do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) como matrizes da Geografia, do Anarquismo e de uma Geografia Anarquista e evidenciar a relevância e a atualidade de sua abordagem científica além de estimular os debates sobre Geografia e Anarquismo, Geografia Anarquista e sobre rumos e caminhos para a superação da crise da ciência na Geografia. Para desenvolver esse debate foram selecionadas algumas propostas e ideias de pensadores preocupados com a epistemologia da ciência como o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, e os físicos Thomas Kuhn e Paul Feyeraband relacionando-as com as principais ideias dos geógrafos anarquistas Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Portanto busca-se em primeiro lugar caracterizar rapidamente a crise da ciência moderna e a partir daí debater a ideia de uma epistemologia anarquista para a ciência tomando por base as ideias e considerações propostas por Thomas Kuhn, no livro “A estrutura das revoluções científicas”, e Paul Feyeraband, no livro “Contra o Método”. A seguir será discutida a contribuição de Reclus e Kropotkin para a ciência e para a Geografia apresentando suas ideias fundamentais: a ajuda mútua, o comunismo libertário e as três “leis” ou princípios gerais de desenvolvimento dos povos, para então relaciona-las com as propostas de uma epistemologia anarquista para a ciência e apontar caminhos para a construção de uma epistemologia anarquista para a Geografia e consequentemente uma Geografia Anarquista.

INTRODUÇÃO

Pretende-se refletir sobre os rumos do pensamento geográfico na atualidade, frente aos desafios da crise da ciência moderna e da crise ambiental, que evidenciam a crise do paradigma e do padrão burguês de racionalidade. Esses processos trouxeram uma serie de desafios para a Geografia, principalmente porque, ao estudar o espaço geográfico, tomam-se como base da reflexão as relações entre humanos e natureza. O momento de crise apresenta-se como um momento privilegiado para evidenciar e debater a ética e a política na ciência. Nesse sentido procura-se debater as possibilidades abertas pela ideia de uma (ou várias) Geografia(s) Anarquista(s). Esse trabalho dá continuidade a uma pesquisa iniciada em 2008 na UFF a partir das discussões do Grupo de Estudos sobre Geografia e Anarquismo e está ligado a outros trabalhos, principalmente o Trabalho de Conclusão de Curso “A Atualidade do pensamento de Elisée Reclus e Peter Kropotkin frente à crise da ciência moderna”, apresentado, em 2010, para a conclusão do curso de Bacharelado em Geografia da UFF.
O texto está organizado de maneira que, em primeiro lugar, busca-se caracterizar brevemente a crise da ciência moderna e a partir daí debater a ideia de uma epistemologia anarquista para a ciência, tomando por base as ideias e considerações propostas por Thomas Kuhn e Paul Feyeraband. A seguir será discutida a contribuição de Reclus e Kropotkin para a ciência e para a Geografia, apresentando suas ideias fundamentais: a ajuda mútua, o comunismo libertário e as três “leis” ou princípios gerais de desenvolvimento dos povos, para então relacioná-las com as propostas de uma epistemologia anarquista para a ciência e vislumbrar caminhos para a construção de uma epistemologia anarquista para a Geografia.

OBJETIVOS E METODOLOGIA

 Objetiva-se valorizar o pensamento do geógrafo francês Elisée Reclus (1830-1905) e do geógrafo russo Piotr Kropotkin (1842-1921) como matrizes da Geografia, do Anarquismo e de uma Geografia Anarquista e evidenciar a relevância e a atualidade de sua abordagem científica, além de estimular os debates sobre Geografia e Anarquismo, Geografia Anarquista e sobre rumos e caminhos para a superação da crise da ciência na Geografia. Para desenvolver esse debate foram selecionadas algumas propostas e ideias de pensadores preocupados com a epistemologia da ciência como o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, e os físicos Thomas Kuhn e Paul Feyeraband relacionando-as com as principais ideias dos geógrafos anarquistas Elisée Reclus e Piotr Kropotkin.

A CRISE DA CIÊNCIA MODERNA

            O modelo de ciência iniciado por Galileu Galilei (1564-1642), desenvolvido principalmente por Descartes (1596-1650) e Newton (1643-1727), institucionalizado pelos mecanismos de estado, principalmente universidades e escolas, no formato do positivismo durante o século XIX e início do século XX, é ainda hoje o padrão hegemônico de construção/produção de conhecimento da sociedade capitalista. Esse modelo de ciência se fundamenta na fragmentação do real, na separação entre os ramos científicos e entre as diferentes formas de contrução/produção de conhecimento, e em uma serie de dicotomias; dentre elas a mais importante é a dicotomia entre ser humano e natureza. Essa ciência pode ser chamada de ciência moderna porque ela surge e se instaura como padrão hegemônico juntamente com o capitalismo e o Estado-nacional, características fundamentais do período histórico chamado de modernidade.
Mas esse modelo de ciência, apesar de ainda ser hegemônico, se encontra em uma crise aguda na atualidade. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2002), a crise da ciência moderna fica exposta através de seus aspectos socioambientais e teóricos. As condições socioambientais da crise estão colocadas pelos problemas ambientais a cada dia mais graves, tanto no campo quanto na cidade. Santos organiza as condições teóricas da crise em quatro conjuntos. Essas condições se instalaram devido aos avanços e desenvolvimentos na física, na química, na matemática e na biologia. É importante ressaltar que a crise da ciência ficou em evidencia devido aos avanços e desenvolvimentos que ocorreram dentro do próprio campo científico.
Coloca-se então a questão de que a crise atual é uma crise do paradigma da ciência moderna. Tomas Kuhn considera paradigmas como realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. (2007, p. 13).
Em seu livro “A estrutura das revoluções científicas”, Kuhn vai fazer uma crítica à forma como se faz a história da ciência e ao “conceito de desenvolvimento por acumulação” (KUHN, 2007, p. 20). Para ele o conhecimento se desenvolve por acumulação, por pesquisadores comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica, ou seja, dentro de determinado paradigma, até certo ponto. Mas em alguns momentos ocorrem acontecimentos que levam a uma mudança na posição e nos compromissos dos pesquisadores; esses momentos são chamados de “revoluções científicas”.
 Os episódios extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compromissos profissionais são denominados, neste ensaio, de revoluções científicas. (Ibid, p. 24)
            Esses são momentos privilegiados para a disputa política entre diferentes formas de construção e/ou produção de conhecimento.
A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histórico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de uma outra. (Ibid, p. 27)
A proposta de uma epistemologia anarquista para a ciência partiu do epistemólogo Paul Feyerabend:

A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do que suas alternativas representadas por lei e ordem. (FEYERABEND, 1989, p. 17)

  Dessa maneira, delineia-se uma proposta de pluralidade metodológica, que não exclui nenhuma hipótese ou teoria, podendo trabalhar com todo tipo de hipóteses e teorias a partir da comparação, pois “os preconceitos são descobertos graças a contraste e não graças à análise” (Ibid, p.42). É necessário então “um padrão externo de crítica” (Ibid, p.42) para que se possa melhorar a teoria em foco, levando a um avanço do conhecimento de maneira geral. 

ELISEÉ RECLUS E PIOTR KROPOTKIN COMO MATRIZES DA GEOGRAFIA, DO ANARQUISMO E DE UMA GEOGRAFIA ANARQUISTA

  A Geografia, ao estudar a organização do espaço geográfico, se vê obrigada a trabalhar com as inter-relações entre diferentes fenômenos que são abordados por diferentes ramos científicos; além disso, as relações entre humanos e natureza, que se dão principalmente através da técnica, estão na base da construção e da organização do espaço. Por isso, a crise da ciência tem sérias consequências para a Geografia, mas os momentos de crise podem ser entendidos como momentos privilegiados para o avanço de determinada forma de construção de conhecimento e também como momentos privilegiados para a disputa política entre diferentes concepções de como se deve realizar a construção do conhecimento e a quem deve servir o conhecimento construído.
   Nesse sentido, busca-se inserir nesse debate a proposta de uma (ou várias) Geografia(s) Anarquista(s) a partir da valorização do pensamento dos Geógrafos Eliseé Reclus e Piotr Kropotkin e suas principais ideias.
  O fio condutor das concepções de Kropotkin é a ideia da Ajuda Mutua, desenvolvida por ele a partir das observações e estudos que fez como geógrafo e naturalista ao explorar a região da Sibéria. Essa ideia parte de uma crítica à concepção predominante no evolucionismo darwinista da competição como principal fator responsável pela evolução das espécies. Kropotkin (1989) considerava que as relações de Ajuda Mutua que se estabeleciam entre indivíduos da mesma espécie eram tão importantes quanto, ou até mais importantes para a evolução do que a competição. Toda sua obra está fundamentada nesse princípio, mas essa ideia é exposta de maneira clara no livro publicado em 1902, “Ajuda Mutua”. Essa foi também uma forma de expor uma argumentação científica contrária às ideias do darwinismo social, uma corrente de pensamento em evidencia na época, pois ajudava a justificar a dominação e a exploração do proletariado e das colônias e suas populações.
 A partir do principio da Ajuda Mutua, Kropotkin vai desenvolver sua concepção política, dentro do movimento anarquista. Essas ideias ficaram conhecidas como Comunismo Libertário, Anarco-comunismo ou comunismo anarquista. O Comunismo Libertário é uma proposta de organização da sociedade baseada na articulação de uma diversidade de agrupamentos sociais (grupos, sindicatos, associações de moradores, produtores, consumidores, etc) que seriam responsáveis por suprir as necessidades da população. A articulação se daria através da criação de federações e confederações desses agrupamentos. Dessa forma seria desnecessária a existência do estado para cumprir o papel de organizador geral do espaço e da sociedade. Uma proposta política que valoriza as organizações e soluções locais e suas articulações, fortemente baseada na Geografia.  
 O geógrafo francês Eliseé Reclus compartilhava com Kropotkin as ideias de Ajuda Mutua e Comunismo Libertário; devido a isso, desenvolveu ideias bem diferentes das principais vertentes de pensamento da época, sendo contrário ao darwinismo social, ao marxismo, ao positivismo, ao determinismo, ao Estado e a Igreja. A atualidade de seu pensamento frente à crise da ciência moderna está no fato de que ele rompe com dicotomias fundamentais da ciência moderna em suas principais obras. Assim, em o “Homem e a Terra”, “dissolve a dicotomia espaço-tempo, depois de ter feito com a dicotomia homem-natureza em A Terra e regional-sistemática em Nova Geografia Universal” (MOREIRA, 2008, p25-26).
Apesar de considerar a procura de leis gerais do funcionamento e da evolução dos povos uma tarefa infrutífera, Reclus afirma que os fatos da evolução histórica podem ser agrupados em três grandes categorias de acontecimentos: a primeira é fruto do desenvolvimento desigual dos indivíduos e das sociedades, assim 

(...) todas as coletividades humanas, com exceção dos povos que permanecem no naturismo primitivo, se desdobram por assim dizer, em classes e castas (...) (RECLUS, 1985, p. 39).

 Essas classes ou castas possuem interesses diversos ou até antagônicos e vão estar em constante luta, pois “o equilíbrio rompido de indivíduo a indivíduo, de classe à classe, oscila constantemente”(Ibid, p. 39).  Dessa forma, Reclus aceita a ideia de “luta de classes”, proposta por Marx, mas com restrições à forma como Marx considera esse conceito, sendo essa a segunda grande categoria de acontecimentos. Por fim, o terceiro grupo de acontecimentos se refere ao esforço e à criatividade dos indivíduos, pois “qualquer evolução na existência dos povos só pode ser criada pelo esforço individual” (Ibid, p. 40). Assim, o processo de formação dos grupos humanos a partir da sociabilidade vai evidenciar o fato de que as sociedades “agem e reagem sobre a maneira de sentir e de pensar, criando assim em grande parte, aquilo que se chama ‘civilização’” (Ibid, p. 56).
  A partir dessas considerações Reclus vai elaborar uma Geografia que, ao estudar a formação e as transformações do espaço geográfico, toma como foco os movimentos dos povos a partir dos movimentos das comunidades que compõem esses povos. Diferente da maioria dos geógrafos que costumam tomar as ações e movimentos dos Estados como foco de suas pesquisas. Pode-se considerar então que o aspecto central do pensamento de Reclus é sua teoria comunitária.
  Considera-se, portanto, que as principais ideias de Kropotkin e Reclus são: a Ajuda Mutua, o Comunismo Libertário, a consideração de que o elemento humano é parte integrante e consciente da natureza, as três ordens gerais em que os fatos da evolução histórica dos povos podem ser agrupados e a teoria comunitária.

POR UMA GEOGRAFIA ANARQUISTA

  Então, a fim de construir um conhecimento geográfico que seja capaz de contemplar “a complexidade dos fenômenos ativos”, os grupos humanos e as sociedades devem ser vistos através dos “fenômenos múltiplos e entrecruzados da vida” (RECLUS, 1985, p. 59). Uma vez que esses fenômenos “não se deixam classificar numa ordem metódica” (Ibid, 1985), Reclus propõe uma variedade de metodologias de estudo tão múltiplas quantos forem os povos a serem estudados, a partir do estudo comparado entre áreas, entendendo-se  por estudo comparado o estudo das generalidades e diferenças entre as diferentes áreas do planeta, sem a necessidade de uma hierarquização entre essas áreas.
Essa pode ser considerada uma proposta metodológica que parte de uma epistemologia anarquista e visa ao respeito à matriz cultural de cada povo ao ser estudado. Dessa forma, deve haver diversas epistemologias e metodologias, partindo das diferentes matrizes de pensamento e de ser humano; são matrizes de epistemologia e ontologia humana. Assim essas metodologias devem dialogar livremente entre si para poderem se desenvolver de acordo com as peculiaridades de cada sujeito estudado. Sujeito esse que irá reagir e influenciar o estudo e o sujeito que realiza o estudo.
  Essa é uma perspectiva da Geografia que parte de uma política de respeito e valorização da diversidade e da alteridade.

BIBLIOGRAFIA

 FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro:
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. 9. Ed. São Paulo: Perspectiva, 260p., 2007.
KROPOTKIN, P. A anarquia: sua filosofia, seu ideal. São Paulo: Imaginário, 93p., 2001.
______________. El apoyo mutuo. 3ed. Espanha: Madre Tierra, 343p.,1989.
MOREIRA, R. O pensamento geográfico brasileiro, vol.1: as matrizes clássicas originárias. São Paulo: Contexto, 190p., 2008.
RECLUS, E. O homem é a natureza adquirindo consciência de si própria. In: ANDRADE, M.C. (org.). Elisée Reclus. São Paulo: Ática, 1985, p.38-40.
__________. A ação do homem como modificador das condições naturais, dominando e transformando a natureza. In: ANDRADE, M.C. (org.). Elisée Reclus. São Paulo: Ática, 1985, p.41-55.
SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. 13. ed. Porto: Edições Afrontamento, 59p., 20
                                                        

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