terça-feira, 30 de setembro de 2008

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

Entrevista com ERIC HOBSBAWM

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”.
Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: “A Era da Revolução: Europa 1789-1848” (1962); “A Era do Capital: 1848-1874” (1975); “A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro “A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas.
Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro “Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later” (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois).
Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm para Sin Permiso.

Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”. Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?

Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado.Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.

Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?

Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.

Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?

Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista. Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso. Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.

Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?

Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).

Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?

Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.

Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?

Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.

Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer

Ideologia e eleições levam a colapso de pacote nos EUA

A rejeição pela Câmara do megapacote econômico de US$ 700 bilhões proposto pelo governo americano tem raízes tanto ideológicas como eleitorais.
A maior parte dos que congressistas que rejeitaram o projeto é formada pelos republicanos do presidente George W. Bush, a despeito de todos os apelos do líder americano para que a proposta fosse aprovada em caráter de urgência.
A proposta havia sido submetida a um série de mudanças nos últimos dias, após discussões entre lideranças dos dois partidos e parecia caminhar para a aprovação.
Mas acabou sendo derrubada na tarde desta segunda-feira por 228 votos contra 205. Era necessário um total de 218 votos para ratificar o projeto.
Somente 65 republicanos votaram pelo projeto, contra 133 que foram contrários. Ao todo, 140 democratas ratificaram o pacote, e outros 95 votaram contra.
Socialismo
A ala mais conservadora do Partido Republicano é radicalmente contrária à intervenção do Estado na economia e julga que o pacote seria um "cheque em branco" para o sistema financeiro às custas do contribuinte americano.
A maior parte da cifra bilionária do pacote seria gerada por meio de impostos.
Os congressistas contam estar recebebendo milhares de telefonemas de seus eleitores, pedindo que eles não votem por uma proposta que auxiliaria grandes instituições financeiras em detrimento do cidadão comum.
Em entrevista ao jornal The New York Times, o parlamentar Jeb Hensarling, do Estado do Texas, resumiu o estado de espírito da facção mais à direita dos republicanos.
"Nos pediram para escolher entre o caos financeiro e a falência do contribuinte, de um lado, e a estrada para o socialismo, do outro", afirmou Hensarling. "E tínhamos que fazer isso em 24 horas."
Além disso, muitos representantes do Congresso são candidatos à reeleição, e a aprovação da proposta econômica, impopular junto a muitos eleitores, poderia prejudicar suas possibilidades nas urnas.
O fato de a aprovação do pacote estar sendo pressionada por um presidente cujo índice de aprovação é inferior a 30% também influenciou a decisão de parlamentares que não querem ser identificados com o impopular líder republicano.
Objeções
Os congressistas republicanos levantaram objeções tanto quanto ao conteúdo do pacote como à pressa com que o documento de mais de 100 páginas foi colocado em votação.
No fim de semana, líderes partidários haviam chegado a um acordo em relação a pontos polêmicos, como mecanismos de supervisão do mercado financeiro, proteção para os contribuintes e limites aos salários de executivos de instituições financeiras.
As concessões, porém, não foram suficientes para convencer boa parte dos congressistas a seguir a orientação dos líderes no plenário.
Depois da votação, líderes republicanos sugeriram que a culpa era dos democratas, que não teriam conseguido mobilizar sua maioria na Câmara.

Extraído de www.bbcbrasil.com.br

sábado, 27 de setembro de 2008

A crise de Wall Street equivale à queda do Muro de Berlim

Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001, sustenta que a crise de Wall Street evidencia que o modelo de fundamentalismo de mercado não funciona. Para ele, a crise que sacudiu Wall Street é para esse modelo o equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim para o comunismo. Stiglitz critica a complexidade dos produtos financeiros que provocaram a crise e os incentivos ao risco dos sistemas de recompensa dos executivos.Barack Obama afirma que o naufrágio de Wall Street é a maior crise financeira desde a Grande Depressão. John McCain diz que a economia está ameaçada, mas é basicamente forte. Qual deles têm razão?Stiglitz – Obama está muito mais próximo da verdade. Sim, os Estados Unidos tem talentos, grandes universidades e um bom setor de alta tecnologia. Mas os mercados financeiros desempenham um papel muito importante, sendo responsáveis nos últimos anos por cerca de 30% dos lucros empresariais. Os executivos dos mercados financeiros obtiveram esses lucros com o argumento de que estavam ajudando a gerir o risco e a garantir maior eficácia ao capital. Por isso, diziam, mereciam rendimentos tão altos. Ficou demonstrado que isso não é certo. A gestão que eles executaram foi muito mal. Agora, o tiro saiu pela culatra e o resto da economia pagará porque as trocas comerciais cairão devido à redução do crédito. Nenhuma economia moderna pode funcionar bem sem um setor financeiro vibrante.Assim, o diagnóstico de Obama, quando diz que nosso setor financeiro está em estado deplorável, é correto. E se está em um estado deplorável, isso significa que nossa economia está em um estado deplorável. Ainda que não levássemos em conta a comoção financeira, mas só a dívida doméstica, nacional e federal, isso já bastaria para ver a seriedade do problema. Estamos nos afogando. Se observarmos a desigualdade, que é a maior desde a Grande Depressão, o problema é sério. Se observarmos o estancamento dos salários, o problema é sério. A maior parte do crescimento econômico dos últimos cinco anos baseava-se em uma bolha do setor imobiliário, que agora estourou. E os frutos desse crescimento não foram repartidos amplamente. Em resumo, os fundamentos não são bons.Qual deveria ser, na sua opinião, a resposta política ao afundamento de Wall Street?Stiglitz – Está claro que necessitamos não só voltar a regular, mas também redesenhar o sistema regulador. Durante seu reinado como chefe do Federal Reserve, no qual surgiu essa bolha hipotecária e financeira, Alan Greenspan tinha muitos instrumentos ao seu alcance para freá-la, mas não conseguiu fazer isso.Afinal de contas, Ronald Reagan escolheu-o por sua atitude contrária à regulação. Ele substituiu a Paul Volcker no Federal Reserve, conhecido por manter a inflação sob controle. O governo Reagan não acreditava que ele fosse um “liberalizador” adequado. Por conseguinte, nosso país sofreu os efeitos de escolher como regulador supremo da economia a alguém que não acreditava na regulação. De modo que, para corrigir o problema, a primeira coisa que precisamos é de líderes políticos e responsáveis que acreditem no papel da regulação. Além disso, precisamos estabelecer um sistema novo, capaz de suportar a expansão das finanças e dos instrumentos financeiros de um modo melhor que os bancos tradicionais.Precisamos, por exemplo, regulamentar os incentivos. Eles têm que ser pagos baseando-se nos resultados de vários anos, e não no de apenas um, porque este último modelo fomenta as apostas. As opções de compra de ações fomentam a adulteração da contabilidade e é preciso frear essa prática. Em resumo, oferecemos incentivos para que se alimentasse um mau comportamento no sistema.Além de freios, precisamos de faixas de controle. Historicamente, todas as crises têm estado associadas a uma expansão muito rápida de determinados tipos de ativos. Se conseguimos frear esse processo, podemos impedir que as bolhas cresçam de modo descontrolado. O mundo não desapareceria se as hipotecas crescessem 10% e não 25% anualmente. Conhecemos tão bem o patrão que deveríamos fazer algo para dominá-lo. Precisamos ainda de uma comissão de segurança para os produtos financeiros, assim como temos no caso dos produtos de consumo. O setor financeiro estava inventando produtos que não geriam o risco, mas sim o produziam.Certamente, acredito na necessidade de uma maior transparência. No entanto, desde o ponto de vista dos critérios reguladores, esses produtos eram transparentes em um sentido técnico. Mas eram tão complexos que ninguém os entendia. Mesmo que fossem tornadas públicas todas as cláusulas destes contratos, elas não trariam a nenhum mortal alguma informação útil sobre seu risco. Muita informação equivale a nenhuma informação. Neste sentido, aqueles que pedem mais revelações como solução para o problema não entendem a informação. Se alguém compra um produto, necessita de uma informação simples e básica: qual é o risco. Essa é a questão.Os ativos hipotecários que provocaram o caos estão em mãos de bancos ou fundos soberanos da China, Japão, Europa e países do Golfo. Como essa crise os afetará?Stiglitz – É certo. As perdas das instituições financeiras européias com as hipotecas subprime foram maiores do que as verificadas nos Estados Unidos. O fato de os EUA terem diversificado esses ativos hipotecários por todo o mundo, graças à globalização dos mercados, suavizou o impacto interno. Se não tivéssemos disseminado o risco por todo o mundo, a crise seria muito pior. Uma coisa que agora se entende, a conseqüência dessa crise, é a informação assimétrica da globalização. Na Europa, por exemplo, não se sabia muito bem que as hipotecas norte-americanas são hipotecas sem lastro: se o valor da casa baixa mais que o da hipoteca, pode-se devolver a chave ao banco e ir embora. Na Europa, a casa serve de garantia, mas o tomador do empréstimo segue endividado, aconteça o que aconteça. Este é um dos perigos da globalização: o conhecimento é local, sabe-se muito mais sobre sua própria sociedade do que sobre as outras.Qual é então, em última análise, o impacto do naufrágio de Wall Street na globalização regida pelo mercado?Stiglitz - O programa da globalização esteve estreitamente ligado aos fundamentalistas do mercado: a ideologia dos mercados livres e da liberalização financeira. Nesta crise, observamos que as instituições mais baseadas no mercado da economia mais baseada no mercado vieram abaixo e correram a pedir a ajuda do Estado. Todo mundo dirá agora que este é o final do fundamentalismo de mercado. Neste sentido, a crise de Wall Street é para o fundamentalismo de mercado o que a queda do Muro de Berlim foi para o comunismo: ela diz ao mundo que este modo de organização econômica é insustentável. Em resumo, dizem todos, esse modelo não funciona. Este momento assinala que as declarações do mercado financeiro em defesa da liberalização eram falsas.A hipocrisia entre o modo pelo qual o Tesouro dos EUA, o FMI e o Banco Mundial manejaram a crise asiática de 1997 e o modo como procedem agora acentuou essa reação intelectual. Agora os asiáticos dizem: “Um momento, para nós, vocês disseram que deveríamos imitar o modelo dos Estados Unidos. Se tivéssemos seguido vosso exemplo, agora estaríamos nesta mesma desordem. Vocês, talvez, possam se permitir isso. Nós, não”.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

CAPITALISMO EM CRISE

Como resultado de um intenso bombardeio midiático, me peguei diversas vezes classificando os recentes acontecimentos no sistema financeiro global como uma “crise”. Trata-se, no entanto – de forma muito evidente, inclusive –, de um conhecido processo estudado e identificado há décadas por gente como o economista brasileiro Celso Furtado.O noticiário econômico acerca deste processo de falências e estatizações que ora ocorre nos EUA segue um padrão jornalístico já há algum tempo observado. As estatísticas são lançadas em função de uma dominação das elites sobre o aparelho de Estado, realidade que é presente no Brasil, de fato, porém de forma muito mais evidente nos Estados Unidos, como veremos a seguir.Conforme destacou o jornalista Bernardo Kucinski (1) analisando o cenário brasileiro, “divulgam quanto cresceu o PIB (Produto Interno Bruto), porque esse dado é importante para o empresariado. Mas a participação do salário na renda nacional parou de ser divulgada há anos, desde que caiu abaixo de níveis civilizados (...) Divulgam-se detalhadamente os itens de pauta das exportações, mas não os detalhes de gastos com royalties e patentes. Seu conhecimento geraria uma atitude crítica em relação à renumeração dos capitais financeiros”. E alerta: “Quase tudo pode ser provado em economia, manipulando-se estatísticas”.O sociólogo Luiz Gonzaga Belluzzo tratou de lembrar que o neoliberalismo, ao contrário do que diz a propaganda oficial, nunca desejou o “Estado mínimo”, pois precisa de Estados nacionais fortes para utilizar o poder político e fiscal destes, com o objetivo de fortalecer os respectivos sistemas empresariais (incluindo os mercados financeiros e de capitais). O propósito é o de ganhar espaço na arena global. “Nessa toada, as reformas [ditas neoliberais, dos anos 70] atropelaram as instituições destinadas a garantir a segurança econômica e social da maioria assalariada ou dependente”,avalia Belluzzo. E conclui: “O Estado não saiu de cena, apenas mudou de agenda” (2).Até mesmo no Brasil, durante a onda de privatizações e entreguismo dos oito anos do Governo FHC, foi observado durante o seminário da Rede de Economia Global (REGGEN) de 2003 que, ao contrário do que muitos propunham, os dados mostravam que o investimento público cresceu, porém foi – conforme denuncia Belluzzo – direcionado para a “iniciativa privada” (3).O próprio termo “iniciativa privada” é contraditório, pois, como veremos, muitas vezes a iniciativa é do Estado, com dinheiro público, e o setor privado se apropria destes recursos por meio de ações fraudulentas e lesivas aos cofres públicos. Vide, entre outros inúmeros casos, a privatização da ex-estatal brasileira Vale do Rio Doce, que opera no setor de extração de recursos naturais, centralmente estratégico para o país.Contradições negligenciadasO noticiário da mídia corporativa procura fixar os atuais acontecimentos a poucos tópicos, sem discutir a seriedade e complexidade do problema, como, por exemplo, a falta de controle do sistema financeiro. O analista político Noam Chomsky aponta há décadas as contradições de um sistema fadado ao fracasso: “Uma instituição privada tem um objetivo: maximizar os lucros e minimizar as condições humanas. Porque isso maximiza os lucros. Isso é o que eles perseguem. Eles não poderiam perseguir nada além disso. Se o sistema é minimamente competitivo, eles precisam fazer isso. É a natureza do sistema (...) Haverá bastante dinheiro do contribuinte entrando nos fundos para não deixar que seus lucros caiam” (4).É preciso um esforço para não considerar como custos apenas os gastos feitos diretamente pelo governo num contexto de “crise” – tal como a proposta de gastar US$ 700 bilhões na compra de títulos “podres”. Há muitos outros custos que são vendidos como grandes benefícios do capitalismo moderno.Um dos exemplos utilizados por Chomsky é comum a todos os brasileiros: “Digamos que você telefone para conseguir uma passagem aérea [ou outro serviço que dependa desta forma de atendimento]. As empresas aéreas são automatizadas, o que lhes economiza um monte de dinheiro. Os economistas podem constatar que isto é muito eficiente. Por outro lado, quando você dá o telefonema. Isso está lhe custando dinheiro, você fica sentado lá, por meia hora, enquanto você fica ouvindo aquelas mensagens, ‘Obrigado por nos ligar’, ‘Agradecemos sua ligação’, ‘Nós o amamos’, ‘Espere um momento’, ‘O próximo operador lhe atenderá em seguida’... e aí entra a música. Todo esse tempo tem um custo para você. Mas não é um custo que alguém meça”.Até o momento, nem um único economista distinto ou jornalista venerável, com espaço e destaque na televisão, questionou qual é o custo de não gastar este dinheiro – R$ 700 bilhões! – no sistema de saúde ou educacional. Ressalta-se que os “custos” são gerados por decisões tomadas e por decisões não tomadas – a inércia política. O caos no sistema de saúde americano – conforme denunciou o documentarista Michael Moore – ou o aumento da fome no mundo entre 2006 e 2007 – denunciado há poucos dias pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – não geram manchetes de “crise”.Chomsky conclui, ainda dentro do exemplo acima referido: “O custo é multiplicado pelo número de usuários. É uma grande soma. Pegue o custo do indivíduo, multiplique pelo número de pessoas usando o serviço, compare isso com a eficiência da automação e você talvez venha a descobrir que a automação é uma total perda para a economia. Mas é um ganho da maneira como é calculada”.Caça aos “culpados”O discurso oficial da mídia (TV Globo, GloboNews, Record, Bandeirantes e grandes jornais do Rio e São Paulo, avaliados nesta segunda 22) tenta sutilmente culpar um punhado de CEOs [chief executive officer], os diretores de grandes transnacionais financeiras, pela debandada do sistema financeiro americano.A âncora da GloboNews chegou a perguntar a um ex-ministro da Fazenda se eles [os CEOs] não deveriam ser penalizados. O “comentarista” disse que sim, que eles deveriam ser punidos. “Os executivos deveriam não receber seus benefícios e até mesmo devolver alguns que já receberam”, disse. O falso debate – com esta gravíssima punição sugerida, destaca-se! – está formado.É preciso ser muito astuto para imaginar que, por conta de erros pessoais, individuais, o Banco Central americano (FED) tenha decidido injetar outros 95 bilhões de dólares nos bancos em chamadas “operações de refinanciamento de rotina”. Prestem atenção: esta medida foi anunciada nesta segunda (22), para além da proposta da Casa Branca enviada ao Congresso e dos 315 bilhões da semana passada.Não coube a esta emissora questionar se não estaria havendo uma falência deste sistema, proclamado por especialistas de plantão como liberal, o mesmo sistema que agora se vê obrigado a recorrer ao dinheiro do contribuinte para supostamente não afundar.Como estão envergonhados, digamos objetivamente aqui o que está se salvando: a barra dos “investidores”, os acionistas, gente que tem dinheiro o suficiente para injetar milhares de dólares nesses bancos. A população, conforme denunciaram parlamentares nos EUA, não vão receber nenhum apoio, segundo a proposta do governo. Apesar manter suas crescentes dívidas no “crédito” imobiliário que, no final das contas, era mais uma bolha.Alguns congressistas, a despeito da pressão política do sistema financeiro, pediram no “ato” administrativo proposto pela Casa Branca o mais básico de todos os principais governamentais: regras! É curioso que nenhum telejornal tenha citado alguns dos trechos do pequenino documento (de apenas 3 páginas) que a secretaria do Tesouro dos EUA criou para abocanhar 700 bilhões de dólares.A Casa Branca determina, por exemplo, que “a secretaria está autorizada a tomar tais ações à medida que a secretaria considerar necessárias para realizar os poderes deste ato, inclusive, sem limitação (...)”. Em outro trecho define: “Quaisquer verbas usadas para ações autorizadas por este ato, incluindo o pagamento de despesas administrativas, devem ser consideradas apropriadas no momento de tais gastos” (5).A imprensa manteve o velho estilo parcial de sempre – o secretário de Tesouro dos EUA era o único que aparecia durante a primeira semana de crise. “Os investidores do mundo inteiro estão com a atenção voltada para o Congresso americano”, repetia a GloboNews na própria segunda-feira (22). “A Globalização não deve ser responsabilizada”, ecoa outro correspondente da Globo, reproduzindo – é claro – voz oficial. Para falarem da ‘crise’, convocaram apenas ex-diretores do Banco Central e banqueiros.“Cadê a tal independência?”A jornalista e apresentadora Lilian White Fibe, no último programa ‘Roda Viva’ (TV Cultura) da segunda (22), fez uma pergunta franca e direta ao entrevistado, o economista Ilan Goldfajn, que já foi diretor de política econômica do Banco Central (BC) brasileiro e atualmente é pesquisador da PUC Rio. Ela questionou firmemente: “Então, professor, cadê a tal independência do Banco Central americano, o tal Banco Central mais independente do mundo?”A resposta não poderia ter sido mais risível, porém esclarecedora. Ilan disse que o FED – o BC americano – continuava independente, na opinião dele, e que o fato de o anúncio ter sido eminentemente político não mudava esta posição. O governo americano, argumentou Ilan, foi até o FED e este, por sua vez, colocou as opções mais “razoáveis” na mesa. O governo americano, então, acatou...Em suma: quem manda nas finanças do mundo – o que inclui deter a chave dos cofres do governo mais rico do mundo – são os financistas de Wall Street. Ou seja, os responsáveis pelo caos que a presidente argentina classificou como “economia de cassino dos EUA”.Já Giuliano Guandalini, editor de economia da revista Veja, procurou – a serviço do tipo de imprensa mais vendida que existe no Brasil – defender os “mercados”, que estão inevitavelmente sofrendo ataques até mesmo de grupos conservadores. Giuliano argumentou – em formato de “pergunta” para Ilan – que o sistema não era falho, já que havia proporcionado ganhos consideráveis durante muitos anos.Aqui, novamente, faz-se uma observação risível e reveladora. Se os investidores se beneficiaram enormemente deste sistema que, como muitos agora lembram, privatiza os lucros e socializa os prejuízos, por que o governo não utiliza parte destes lucros e paga a “conta” da farra? Por que, afinal, o dinheiro tem que vir do bolso do contribuinte, e não destas empresas de “investimento de risco”?A resposta é simples. A saída, para o esquema neoliberal, não admite outra coisa senão socializar os prejuízos. Fazer os capitalistas pagarem a conta – até Arnaldo Jabor anda falando mal deles! – é muito perigoso. Seria como, digamos, “confiscar bens”! Confiscar bens de capitalistas não é permitido.Farra com dinheiro (do) públicoOs meios de comunicação evitam passear por este debate e, inclusive, se negam em falar em estatização. Até porque estatizar é coisa de gente como Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Trata-se, no linguajar da mídia corporativa, de uma “intervenção” – mesmo que o governo tenha confiscado, por meio de cláusula contratual, 80% das ações da AIG, por exemplo.Emir Sader, num artigo de 2004, explica como funciona um dos instrumentos correntes de privatização dos lucros e socialização dos riscos: “Entre em um banco e deposite 100 reais em uma caderneta de poupança. O funcionário lhe dirá para retornar daqui a um mês, para receber seus polpudos dividendos, algo como R$ 100,60. Em seguida, ao mesmo funcionário, no mesmo balcão, você pede 100 reais emprestados. Receberá a resposta de que – além de todos os trâmites de cadastro, garantia, ficha pregressa etc. –, deverá pagar, daqui a um mês, algo como 109 reais. Essa ‘pequena’ diferença - algo como 15 vezes mais - é o que os bancos e os economistas, ministros, presidentes de bancos centrais, e todos os que funcionam como seus ventríloquos, chamam de spread. Em inglês, para melhor disfarçar, como convêm ao economês”.Mas o que é o spread? “Os dicionários falam sempre de algo como ''extensão'', ''propagação'', ''expansão'', no máximo ''pasta para passar no pão''. Nada que possa esclarecer essa estranha mágica de pagar 0,6% e cobrar 9% ao mês e que faz a felicidade dos bancos e propicia os recordes de lucratividade do sistema financeiro – batidos novamente esta semana – à custa de quem não vive da especulação. Os dicionários de economia esclarecem que spread é a diferença entre o quanto os bancos pagam e o quanto recebem; em outras palavras, o lucro dos bancos. Nenhum investimento permite ganhar tanto, em prazo tão curto, com tanta liquidez e pouco ou nada de imposto - recordemos que investimentos estrangeiros na Bovespa não pagam imposto, ao contrário da cesta básica, de livros etc” (6) [leia mais sobre este mecanismo brutal de exploração do trabalhador na referência do artigo].O Jornal Nacional da quarta-feira (17), ainda assustado com a derrocada de um projeto que defende diariamente, abriu falando sobre “a maior intervenção dos EUA” no setor privado. Já naquele dia, o governo havia comprometido mais de 300 bilhões de dólares nas empresas falidas. E, como sempre, deram voz ao Ser Supremo, Vossa Divindade: “Mesmo assim, o mercado não se acalmou”.O apresentador William Bonner falou em “crise de confiança que atinge o mercado financeiro”. Não pretende explicar que a crise não é de confiança, porque seria muito perigoso que o telespectador que o vê e o ouve – aquele que é metade Homer Simpson metade Lineu, lembra? (7) – fique sabendo que não são apenas os títulos que o governo comprará que são podres, e sim o próprio sistema de jogatina que diversos ativistas denunciam há décadas. Insistem no discurso vazio: “E mais um sinal da crise de confiança que atinge o mercado financeiro: um outro banco americano, o Washington Mutual, anunciou que está à venda. Procura um comprador para salvá-lo da crise” (8).Lula faz discurso duro sobre crise e é ignoradoO presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fez, na abertura do debate geral da 63ª Assembléia Geral das Nações Unidas, um dos discursos mais importantes de seu mandato, agregando elementos como conhecimento histórico, síntese política, momento oportuno e amplitude de temas. Destaca-se que o Brasil sempre abre os debates, por tradição, o que se configura em um importante aspecto de prestígio.O Jornal da Globo (TV Globo) desta terça-feira (23), dia do discurso, procurou esconder a fala de Lula, ao citar apenas um trecho insignificante e, ainda por cima, dizer que o “discurso mais esperado” era o do presidente Bush. Como sempre, o mandatário estadunidense teve uma participação pífia, ordinária e mentirosa, que nem sequer vale nota de rodapé.Lula, no entanto, sem nenhum sentimento de nacionalismo ou partidarismo, falou o que poucos têm condição ou coragem de pôr em pauta. Logo no início, o brasileiro registra: “A euforia dos especuladores transformou-se em angústia dos povos após a sucessão de naufrágios financeiros que ameaçam a economia mundial. As indispensáveis intervenções do Estado, contrariando os fundamentalistas do mercado, mostram que é chegada a hora da política”.Evidentemente que o povo brasileiro não terá acesso, nos jornais e telejornais populares, a uma explicação detalhada sobre o que Lula quis dizer com “fundamentalistas de mercado”. “A ausência de regras”, completa o presidente, favorece os “aventureiros e oportunistas” (sic), em prejuízo das verdadeiras empresas e dos trabalhadores. “É inadmissível, dizia o grande economista brasileiro Celso Furtado, que os lucros dos especuladores sejam sempre privatizados e suas perdas, invariavelmente socializadas. O ônus da cobiça desenfreada de alguns não pode recair impunemente sobre os ombros de todos. A economia é séria demais para ficar nas mãos dos especuladores”.Novamente, seria perigoso demais que os Willians da TV Globo (Bonner ou Waack) retomassem o pensamento de Celso Furtado. Seria perigoso, pois poderia desencadear questionamentos sobre o funcionamento da própria lógica de privatização dos lucros e socialização dos riscos que ora ocorre no Brasil, tal como a lógica que permite o spread bancário.Eles poderiam explicar, por exemplo, que a globalização financeira alimenta-se da desordem monetária causada pelo fim das paridades fixas entre moedas fortes. As regras, neste caso, são parecidas com as regras de um grande cassino em Las Vegas. O pano de fundo, comenta o jornalista Bernardo Kucinski (9), é a lenta agonia da cultura monetária baseada no dólar. Enquanto o Japão acumula, por exemplo, grandes saldos em seu comércio exterior, os Estados Unidos tentam manter a hegemonia do dólar, numa espécie de “fuga para o futuro”, na expressão de Furtado. Nesta tentativa, arrastaram para uma crise estrutural nos anos 90 países que têm dívidas em dólar – incluindo o Brasil.Kucinski demonstra como funciona este “novo sistema de dominação” baseado no endividamento, igualmente registrado no balanço de pagamentos e consolidado em grandes tábuas mundiais da dívida externa, compiladas pelo Banco Mundial: “Essas tábuas mostram que, entre 1980 e 1991, os países da periferia pagaram US$ 607 bilhões de juros, mais do que o valor original da dívida, que, no entanto, nesse mesmo período saltou de US$ 573 bilhões para US$ 1281 bilhões”. Em outras palavras: quantas mais estes países pagam, mais devem.No Brasil, o pagamento dos juros é a rubrica que consome a maior quantidade de recursos públicos. Só nos primeiros meses de 2008, o governo gastou com juros R$ 106,8 bilhões, ou 6,7% do PIB. É possível imaginar, diante de tão obscuros números, que nem todo o dinheiro da “ajuda” financeira que os EUA deram e pretendem dar às instituições financeiras são de contribuintes americanos. Há também brasileiros, argentinos, bolivianos, venezuelanos, chilenos...(10)“Fuga para o futuro”Esta mesma lógica especulativa de fuga para o futuro, com a política de redução da taxa de juros sem controle sobre o crédito, é um fator essencial para o estouro da bolha especulativa nos mercados de hipotecas. Agora, os neoliberais de plantão, com amplo suporte dos amigos jornalistas da mídia corporativa, tratam de tentar transferir os riscos para os indivíduos dispersos.Em vez de abordar estes temas, a TV Globo preferiu exibir uma charge em que sugere Lula e seus assessores vão à ONU, na verdade, para vender biocombustíveis ele próprio, como se fosse um mercador querendo vender a matéria prima de seu país. Este é o “humor” praticado na Rede Globo (11).Lula defendeu o papel da ONU na criação de “mecanismos de prevenção e controle, e total transparência das atividades financeiras” contra o que classificou como “anarquia especulativa”.Muros da globalizaçãoMantendo a coesão entre os temas, em um dos mais importantes trechos, Lula criticou duramente o caráter totalitário da globalização financeira: “O Muro de Berlim caiu. Sua queda foi entendida como a possibilidade de construir um mundo de paz, livre dos estigmas da Guerra Fria. Mas é triste constatar que outros muros foram se construindo, e com enorme velocidade. Muitos dos que pregam a livre circulação de mercadorias e capitais são os mesmos que impedem a livre circulação de homens e mulheres, com argumentos nacionalistas, e até fascistas, que nos fazem evocar, temerosos, tempos que pensávamos superados”.E partiu objetivamente para a defesa de governos como o da Venezuela e da Bolívia: “Um suposto ‘nacionalismo populista’, que alguns pretendem identificar e criticar no Sul do mundo, é praticado sem constrangimento em países ricos”, complementando com algumas considerações sobre a importância da aliança dos países do sul, em particular da América Latina. “Em meu continente, a Unasul, criada em maio deste ano, é o primeiro tratado – em 200 anos de vida independente – que congrega todos os países sul-americanos. Com essa nova união política vamos articular os países da região em termos de infra-estrutura, energia, políticas sociais, complementaridade produtiva, finanças e defesa” (12).Na mídia corporativa brasileira, ao que tudo indica, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) nem sequer existe – apesar dos seus inúmeros êxitos políticos. O motivo dos neoliberais da mídia brasileira (hoje envergonhados) para esconder esta iniciativa é justamente o seu sucesso. E um outro detalhe: a sede da União será localizada em Quito, capital do Equador, o Banco do Sul será na capital da Venezuela, Caracas, e o seu parlamento será localizado em Cochabamba, na Bolívia.

(*) Gustavo Barreto é editor da Revista Consciência.Net e editor de Internacional do Fazendo Media.

extraído de www.agenciacartamaior.com.br

terça-feira, 23 de setembro de 2008

CAPITALISMO EM CRISE

O resgate de todos os resgates: golpe de Estado cleptocrata nos EUA

Ninguém esperava que o capitalismo industrial terminasse deste modo. Mais do que isso, ninguém sequer imaginou que ele evoluiria nesta direção. Suspeito que essa cegueira seja freqüente entre os futurólogos: a tendência natural é pensar sobre a forma ótima de crescimento e desenvolvimento das economias. Mas sempre parece surgir um caminho imprevisto e então a sociedade se vai por uma tangente.Que duas semanas! No domingo, 7 de setembro, o Tesouro assumiu o controle dos 5,3 bilhões de dólares expostos ao risco hipotecário das empresas Fannie Mae e Freddie Mac, cujos chefes já tinham sido destituídos por fraude contábil. No dia 15 de setembro, Lehman Brothers declarou-se em bancarrota quando possíveis compradores de Wall Street não conseguiram encontrar rastro algum de realidade em sua contabilidade financeira. Dois dias depois, o Federal Reserve concordou em aprovar, a um custo de pelo menos 85 bilhões de dólares, os lucros “assegurados” que a AIG devia a instituições financeiras que, por meio do comércio de valores nas bolsas, apostaram em hipotecas podres e contrataram seguros de cobertura com essa empresa seguradora, o American International Group (cujo chefe, Maurice Greenberg, havia sido destituído poucos anos antes por fraude contábil).19 de setembro: o momento de inflexãoMas é o dia 19 de setembro que figurará na história dos EUA como o momento de inflexão. A Casa Branca comprometeu ao menos 500 bilhões de dólares no esforço de aumentar os preços imobiliários a fim de sustentar o valor de mercado das hipotecas podres (hipotecas contratadas sem levar em conta a capacidade dos devedores para pagar e que, além disso, superestimam o preço corrente de mercado que se oferece como garantia da dívida).Esses bilhões de dólares foram sacrificados para manter vivo um sonho: as ficções contábeis postas sobre o papel por empresas que ingressaram em um mundo irreal fundado em uma contabilidade falsa que praticamente todo o mundo financeiro sabia ser enganosa. Mas todos jogavam com as hipotecas podres porque ali é onde se ganhava dinheiro. Inclusive, no momento do colapso dos mercados, vários gestores executivos de fundos de investimentos que mantinham a lucidez foram duramente criticados por não embarcar neste jogo enquanto ele funcionava.Tenho amigos em Wall Street que foram demitidos por não conseguir igualar os lucros que colegas seus estavam conseguindo. E os maiores retornos eram conseguidos através da comercialização dos maiores ativos financeiros da economia: a dívida hipotecária. Somente as hipotecas pertencentes ou garantidas por Fannie e Freddie já excediam o volume de toda a dívida nacional dos EUA, que é o déficit acumulado pelo Estado norte-americano desde os dias em que a nação ganhou a guerra revolucionária da independência!Isso dá uma idéia das enormes dimensões do resgate, assim como das prioridades do Estado (ou, ao menos, dos republicanos no governo). Em vez de despertar a economia para a realidade, o governo empenhou todos os seus recursos na promoção de um sonho irreal, segundo o qual as dívidas podem ser pagas: se não pelos próprios devedores, pelo governo (ou os “contribuintes”, como se diz eufemisticamente). Diante das trevas, o Tesouro dos EUA e o Federal Reserve mudaram radicalmente a face do capitalismo norte-americano. Trata-se, nem mais nem menos, de um “golpe de Estado” a favor da classe que Franklin Delano Roosevelt chamava de “bancgsters”. O que aconteceu nas duas últimas semanas ameaça alterar o curso do século que começa, de maneira irreversível. Pois estamos diante da maior e mais desigual transferência de riqueza desde que se presentearam terras aos barões das ferrovias na era da Guerra Civil.Socorrendo os doadores da campanha eleitoralAinda assim, há poucos indícios de que isso chegue sequer a pôr fim ao som dos tambores e trompetes em defesa do livre mercado executado pelos insiders financeiros que conseguiram destruir o controle público pela via de colocar reconhecidos anti-reguladores nas principais agências reguladoras, gerando assim o caos que, segundo diz agora o secretário do Tesouro, Henry Paulson, ameaça os depósitos bancários e os postos de trabalho de todos os norte-americanos. Mas quem está realmente ameaçado são os maiores contribuidores financeiros da campanha eleitoral dos republicanos (e para ser justo, também os maiores contribuidores das campanhas de candidatos democratas a postos-chave nos comitês de finanças do Congresso.Uma classe cleptocrática tomou o controle da economia, a fim de substituir o capitalismo industrial. O termo cunhado um dia por Roosevelt – “bancgsters” – diz tudo em uma palavra. A economia foi assaltada e capturada por uma potência exterior. Não pelos suspeitos habituais: não foi pelo socialismo, não pelos trabalhadores, não pelo “Estado gigante”, não pelos industriais monopolistas, nem sequer pelas grandes famílias de banqueiros. Também não o foi pela franco-maçonaria ou pelos illuminati (seria maravilhoso que existisse de verdade algum grupo que atuasse nas sombras, com séculos de sabedoria acumulada; assim, ao menos, alguém teria um plano). Os Exterminadores do FuturoO que ocorreu é que os “bancgsters” aliaram-se com uma potência externa: não com os comunistas, não com os russos, asiáticos ou árabes: aliaram-se com algo que sequer é humano. O grupo em questão é um feixe de máquinas. Isso pode soar ao tema do filme “Exterminador do Futuro”, mas o certo é que os computadores conseguiram assumir o controle do mundo, ao menos o mundo da Casa Branca.Eis aqui como conseguiram. A AIG subscreveu apólices de seguros de todo tipo solicitados por gente e pelo mundo dos negócios: seguros de habitação e de propriedade, seguros agropecuários e inclusive seguros para cobrir o arrendamento aeronáutico. Esse rentabilíssimo negócio não foi o problema (por isso mesmo, provavelmente, será todo coberto para poder pagar as apostas fracassadas da companhia). A queda da AIG veio dos 450 bilhões de dólares que ficaram pendurados ao assegurar garantias a fundos hedge de investimento. Em outras palavras: se duas partes jogavam um jogo de soma zero, apostando uma contra a outra pela alta ou queda do dólar frente à libra esterlina ou ao euro, ou se asseguravam uma carteira hipotecária ou hipotecas podres para ter garantias de que seriam cobertas, pagavam uma minúscula comissão a AIG por uma apólice que prometia pagar, se o mercado hipotecário norte-americanos de 11 bilhões de dólares chegasse a “tropeçar”, ou se os perdedores que tinham colocado bilhões de dólares em apostas em derivados do mercado internacional de divisas ou em derivados financeiros de ações ou obrigações, terminassem em uma situação parecida com a que se encontram muitos jogadores de Las Vegas, isto é, incapazes de cobrir suas dívidas em dinheiro.A AIG colheu bilhões de dólares com essas apólices. E graças ao fato de que essas companhias seguradoras são um paraíso “friedmaniano” – não regulado pelo Federal Reserve, nem por nenhuma outra agência de alcance nacional – a subscrição dessas apólices era feita por meio de processos informáticos. A empresa recebia enormes quantidades de honorários e comissões sem sequer aportar capital. Isso é o que se chama de “auto-regulação”. E é assim que, supostamente, funciona a mão invisível do mercado. O fato é que, inevitavelmente, algumas instituições financeiras que tinham apostado bilhões de dólares – normalmente, e para ser preciso, apostando 1 bilhão de dólares no curso de uns poucos minutos – não estavam em condições de pagar. Esses jogos se desenvolviam em micro-segundos, praticamente sem interferência humana. Neste sentido, não é tão distinto dos alienígenas tomando o controle. Mas neste caso trata-se de máquinas tipo robô: daí a analogia que tracei com os Exterminadores.Seu repentino acesso ao poder é tão imprevisível como uma invasão procedente de Marte. A analogia que mais se aproxima é a invasão dos Chicago Boy’s, do Banco Mundial e da USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional) a Rússia e a outras economias pós-soviéticas logo após a dissolução da URSS, promovendo privatizações de livre mercado a fim de criar cleptocracias nacionais. Para os estadounidenses deveria constituir um sinal de alerta que esses cleptocratas tenham se convertido nas fortunas fundadoras de seus respectivos países. Deveríamos ter presente a observação de Aristóteles, segundo a qual a democracia é o estado imediatamente anterior à oligarquia.Comércio à velocidade da luzAs máquinas financeiras que desenvolveram o comércio que resultou na quebra da AIG estavam programadas por executivos financeiros para atuar com a velocidade da luz em operações de comércio eletrônico que costumam durar alguns segundos, e isso, milhões de vezes ao dia. Só uma máquina poderia calcular a distribuição de probabilidades matemáticas a partir da observação de ínfimas variações, para cima e para baixo, de taxas de juros, taxas de câmbio, preços de ações e obrigações, preços de hipotecas empacotadas. E esses últimos pacotes, cada vez mais, assumiram a forma de hipotecas podres, supostamente dívidas pagáveis mas, na realidade, casca vazia.Em particular, as máquinas empregadas pelos fundos hedge deram um novo significado ao capitalismo de cassino. Há muito que se aplicava esse significado aos especuladores que jogavam no mercado de valores. Consistia em fazer apostas cruzadas, perder algo e ganhar algo, e deixar que o Estado resgatasse os não-pagadores. O giro observável na turbulência das duas últimas semanas é que os ganhadores não podem recolher os lucros de suas apostas, a menos que o governo pague as dívidas contraídas pelos perdedores, incapazes de satisfazê-las com seu próprio dinheiro.Alguém poderia pensar que tudo isso exige algum grau de controle por parte do Estado, que provavelmente esse tipo de atividade não deveria jamais ter sido autorizada. De fato, nunca foi autorizada, tampouco regulada. Mas parecia haver uma boa razão para isso: os investidores dos fundos hedge assinaram um papel dizendo que eram suficientemente ricos para permitirem-se perder seu dinheiro neste jogo financeiro. Um jogo que não era acessível aos pobres mortais. Apesar do alto rendimento gerado por milhões de minúsculas operações comerciais, tais operações eram consideradas demasiado arriscadas para principiantes carentes de fundos confiáveis para entrar no jogo.Um fundo hedge, ou fundo de cobertura ou de investimento livre, não ganha dinheiro produzindo bens e serviços. Não avança fundos para comprar ativos reais, nem sequer empresta dinheiro. O que faz é tomar emprestadas enormes somas para alavancar suas apostas com crédito praticamente ilimitado. Seus executivos não são engenheiros industriais, mas sim matemáticos que programam computadores para fazer apostas cruzadas ou straddles sobre como se comportarão as taxas de juros, as taxas de câmbio de moedas, os preços das ações e obrigações ou os preços das hipotecas empacotadas pelos bancos. Os empréstimos empacotados podem ter lastro ou ser puro lixo. Não importa. A única coisa que importa é ganhar dinheiro em um mercado no qual o grosso das operações comerciais dura apenas alguns segundos. O que gera lucros é a fibrilação dos preços, a volatilidade.Jogo financeiro sem criação de riquezaEste tipo de transações pode fazer fortunas, mas não é a “criação de riqueza” que muita gente imagina. Antes da fórmula matemática de Black-Scholes para calcular o valor das apostas destes fundos de investimento livre, esse tipo de jogo com opções de compra e venda resultava demasiado custoso, salvo para as empresas de intermediação financeira. Mas a combinação de potentes computadores com a “inovação” representada por um crédito praticamente ilimitado e o livre acesso às tabelas do jogo financeiro tornaram possível uma frenética manobra de ir e vir.Pois bem, por que o Tesouro considerou inevitável esse esquema? Por que seria preciso salvar esses cassinos e seus apostadores, se eles tinham dinheiro bastante para perder sem que se convertessem em salas hospitalares necessitadas de assistência pública? O comércio de fundos hedge estava limitado aos muito ricos, aos bancos de investimentos e a outros investidores institucionais. Mas uma das maneiras mais fáceis de ganhar dinheiro chegou a ser emprestar fundos com juros que as pessoas tinham que devolver com o que retiravam de suas operações comerciais computadorizadas. E, quase simultaneamente com a operação, esse dinheiro era pago em forma de comissões, remunerações e bônus anuais que traíam a memória dos EUA da Era da Ganância, nos anos que precederam a I Guerra Mundial, antes que se introduzisse o imposto sobre a renda em 1913. O notável em todo este dinheiro era que seus destinatários nem sequer tinha que pagar por ele um imposto de renda normal. O governo o chamou de “ganhos de capital”, o que significava que esse dinheiro era registrado fiscalmente somente como uma fração da taxa com a qual se taxavam os rendimentos.Tudo isso com a pretensão, é importante dizer, de que todo esse frenético comércio estivesse criando “capital” real. Desde logo, cabe dizer que isso não ocorre, ao menos no sentido do conceito de capital dado pela economia clássica do século XIX. Esse conceito tem sido divorciado das noções de produção de bens e serviços, contratação de trabalho assalariado ou inovação financeira. Nesta novíssima acepção, “capital” passa a ser o direito de organizar uma loteria e recolher os lucros resultantes das esperanças dos perdedores. Mas, então, os cassinos de Las Vegas converteram-se em uma pujante “indústria do crescimento”, manchando a linguagem do capital, do crescimento e da própria riqueza.Para encerrar as mesas de jogo e saldar dívidas, os perdedores têm que ser resgatados: Fannie Mae, Freddie Mac, AIG. Quem sabe quem será o seguinte? É a única maneira de resolver o seguinte problema que se apresenta às empresas que já pagaram seus executivos e acionistas, em vez de ter colocado essas somas em uma reserva: como recolher seus lucros diante de devedores insolventes e seguradoras quebradas? Estes, os perdedores, também pagaram seus executivos financeiros e seus colaboradores internos (junto com as oportunas contribuições patrióticas aos candidatos políticos em postos-chave das comissões do Congresso, encarregadas de decidir a estruturação financeira da nação).O planejamento do caosSim, porque para que isso funcione, é preciso que seja orquestrado previamente. É necessário comprar políticos e oferecer-lhes um argumento plausível (ou, ao menos, um conjunto bem armado de eufemismos à prova de questionamento da opinião pública) para poder explicar aos eleitores por que era do interesse público resgatar os apostadores do cassino. É preciso ter uma boa retórica para explicar por que o governo tinha que permitir que eles entrassem em um cassino, deixar que ficassem com os lucros de suas apostas e, finalmente, usar fundos públicos para resgatar as perdas dos perdedores.O que ocorreu nos dias 18 e 19 de setembro levou anos de preparação, escondidos por uma falsificação ideológica patrocinada por think thanks de relações públicas e emitida agora, em condições de emergência, a um Congresso e a eleitores reféns do pânico, justo antes da eleição presidencial. Poder-se-ia dizer que esta é a surpresa eleitoral que setembro reservava. Em condições de crise bem encenadas, o presidente Bush e o secretário do Tesouro Paulson convocam agora o país a uma guerra contra os proprietários de habitações, em situação de quebra técnica. Dizem que essa é a única esperança para “salvar ao sistema”. (Que sistema? Não o capitalismo industrial, nem sequer o sistema bancário tal como o conhecemos). A maior transformação do sistema financeiro norte-americano desde a Grande Depressão aconteceu, comprimida, em duas semanas: começando com a duplicação da dívida nacional norte-americana quando, no dia 7 de setembro, ocorreu a nacionalização de Fannie Mae e Fredie Mac. (O corretor ortográfico de meu computador não concorda com a utilização do eufemismo “conservadorização” aplicado pelo senhor Paulson para referir-se ao resgate dos “fraudgsters” de Fannie Mae e Freddie Mac).A teoria econômica poderia explicar que os lucros e o juro eram a remuneração do risco calculado. Mas em nossos dias o nome do jogo é ganhos de capital e apostas computadorizadas sobre o comportamento das taxas de juros, das moedas estrangeiras, dos preços das ações. E quando as apostas dão errado, os resgates são a remuneração econômica calculada de quem contribuiu financeiramente para a campanha eleitoral. Mas agora, supostamente, não é o momento de falar sobre tais coisas. “Temos que atuar agora para proteger a saúde econômica de nossa nação, ameaçada por graves riscos”, disse o presidente Bush no dia 19 de setembro.O que ele queria dizer é que a Casa Branca deve responder com uma promessa de garantia ao maior grupo de doadores da campanha eleitoral do Partido Republicano – ou seja, Wall Street – resgatando suas más apostas. “Haverá muitas oportunidades para discutir as origens deste problema. A tarefa do momento é resolvê-lo”. Em outras palavras, não convertam isso em um assunto eleitoral. “Na história da nossa nação, ocorreram momentos que exigiram que andássemos unidos, deixando as divisões partidárias de lado a fim de enfrentar desafios de grande envergadura”. Justo antes das eleições! Idêntico disparate pode ser ouvido dos lábios do secretário Paulson: “Nossa saúde econômica exige que sejamos capazes de trabalhar juntos e empreender uma ação imediata bipartidária”. Os locutores disseram que nas manobras do dia estava em jogo uma cifra de meio bilhão de dólares.Boa parte das culpas deveria recair sobre a Administração Clinton, responsável direta, em 1999, pela supressão da Lei Glass-Steagal, que permitiu aos bancos funcionarem como cassinos. Ou melhor dito, aos cassinos absorverem bancos. Isso é o que pôs em risco a economia dos norte-americanos.Mas isso significa realmente que a única solução passa por “reinflar” o mercado imobiliário? O plano de Paulson-Bernanke é capacitar os bancos para que possam vender as casas de 5 milhões de devedores hipotecários que este ano terão que enfrentar ou a quebra ou o embargo. Os proprietários de habitações submetidos a juros hipotecários variáveis disparados perderão suas casas, mas o Federal Reserve garantirá às empresas de empréstimo hipotecário crédito suficiente para permitir que novos compradores se endividem o suficiente para conseguir resgatar as hipotecas lixo das mãos dos apostadores dos cassinos que são seus atuais possuidores. Com o que se ganha tempo para que uma nova bolha financeira acuda em resgate das instituições de empréstimo e dos empacotadores de hipotecas podres.Nova guerra, novas ficçõesOs EUA entraram em outra guerra, uma guerra para salvar os comerciantes de derivados computadorizados. Assim como a guerra do Iraque, esta nova guerra baseia-se muito em ficções e, como na guerra do Iraque, o país entra nela sob a pressão de condições de aparente emergência. Também como na guerra do Iraque, a solução proposta guarda pouca relação com a causa que provocou o problema. Esgrimindo razões de segurança financeira, o governo considerará como boas as Obrigações de Dívida Colateralizada (ODCs) que Warren Buffett chamou de “armas de destruição financeira massiva”.Não é por acaso que esse esbanjamento de dinheiro público está sendo manejado pelo mesmo grupo que tão piamente alertou o país sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. O presidente Bush e o secretário do tesouro declararam tão ricamente que este não é o momento para desacordos partidários a respeito da deriva da política pública em favor dos credores e não dos devedores; que este não é o momento de converter em assunto eleitoral o maior resgate já registrado nos anais da história eleitoral; que não é o momento adequado para debater se é bom “reinflar” o preço dos imóveis a níveis que seguirão obrigando os novos compradores de casa a endividarem-se até o ponto de ter que gastar em habitação cerca de 40% de seus rendimentos.Recordem a época em que o presidente Bush e Alan Greenspan informaram aos norte-americanos que não havia dinheiro para financiar a Seguridade Social, porque em algum momento futuro (dentro de 10? 20? 40 anos?) o sistema teria um déficit de 1 bilhão de dólares, distribuído ao longo de muitos anos, soma irrisória diante do resgate que está sendo promovido agora. A moral da história era que se não podemos imaginar uma forma de pagar esse sistema no longo prazo é melhor deixar cair agora mesmo o programa assistencial. O senhor Bush e o senhor Greenspan garantiram na época que tinham uma oportuna solução. O Tesouro poderia canalizar o dinheiro da Seguridade Social e dos seguros médicos para os bancos Bear Stearns, Lehman Brothers ou seus pares, para que eles o investissem a um “mágico juro composto”.O que teria ocorrido se a Seguridade Social tivesse feito tal coisa? Talvez tivéssemos assistido nestas duas semanas à entrega aos apostadores de Wall Street de todo o dinheiro acumulado desde que a Comissão Greenspan resolveu, em 1983, deslocar a carga fiscal sobre as retenções salariais reguladas pela FICA (Lei Federal de Contribuição à Seguridade Social). Não são os aposentados que se pretende resgatar, mas sim os investidores de Wall Street que assinaram papéis dizendo que estavam em condições de enfrentar a perda do dinheiro jogado. A consigna eleitoral dos republicanos este ano deveria ser: “Seguro de jogo, não seguro de saúde”.Em seu célebre livro “Caminho da Servidão”, Friedrich von Hayek e seus meninos de Chicago insistiam que a servidão viria da planificação e da regulação estatais. Essa visão caminhava na direção contrária a dos reformadores clássicos da Era Progressista, que concebiam a ação do Estado como a do cérebro da sociedade, como a linha diretriz para modelar os mercados e liberá-los dos especuladores rentistas, ou seja, da renda que não fosse contrapartida do desempenho de um papel necessário na produção. A teoria da democracia fundava-se no pressuposto de que os eleitores atuariam movidos pelo próprio interesse. Os reformadores do mercado partiram de uma feliz suposição paralela, segundo a qual os consumidores, os poupadores e os investidores promoveriam o crescimento econômico atuando com pleno conhecimento e cabal compreensão das dinâmicas em ação. Mas a mão invisível terminou resultando em fraude contábil, empréstimo hipotecário podre, informação privilegiada e fracasso em controlar os crescentes gastos da dívida conforme a capacidade dos devedores para pagar. É todo este caos, aparentemente legitimado por alguns modelos de comércio eletrônico, que acaba de ser socorrido pelo Tesouro dos EUA.

Michael Hudson é ex-economista de Wall Street especializado em balanço de pagamentos e bens imobiliários no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Artur Anderson e, depois, no Hudson Institute. Em 1990 colaborou no estabelecimento do primeiro fundo soberano de dívida do mundo para Scudder Stevens & Clark. Hudson foi assessor econômico chefe de Dennis Kucinich na campanha primária presidencial democrata e assessorou os governos dos EUA, Canadá, México e Letônia, assim como o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa. Destacado professor e pesquisador na Universidade de Missouri, na cidade de Kansas, é autor de numerosos livros, entre eles "Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire".
Tradução do inglês para o espanhol: Ricardo TimónTradução do espanhol para o português: Marco Aurélio Weissheimer

Extraído de www.agenciacartamaior.com.br

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Impacto da crise na China é chave para Brasil, diz economista

Economistas ouvidos pela BBC Brasil são quase unânimes em afirmar que a crise americana deve chegar amortecida ao Brasil e que o principal impacto no país deve ser uma redução do crescimento econômico.
O país cresceria menos, mas ainda assim continuaria a crescer.
O tamanho da desaceleração, porém, dependeria de um fator por enquanto desconhecido: o impacto desse mesma crise na China.
"Enquanto a China continuar crescendo de forma acelerada, os impactos no Brasil serão limitados. Se a China desacelerar muito, o Brasil vai sentir o tranco", diz economista Ricardo Amorim, diretor executivo para mercados emergentes do WestLB.
1929
Na opinião de Amorim, os Estados Unidos não vêem pior crise desde 1929.
"Independentemente da definição técnica, na prática, a economia americana já está em recessão. A dúvida é apenas quanto tempo a recessão vai durar e quão profunda ela será."
O brasilianista Thomas Skidmore concorda que os impactos da crise no Brasil serão menores do que seriam no passado.
"O Brasil teve um período de boom extremamente bem sucedido com as exportações para a Ásia e Europa e por isso há relativamente pouca razão para se preocupar com a crise de Wall Street."
Segundo o professor, o sistema financeiro está muito sólido no Brasil, "muito mais sólido que nos EUA".
"Posição confortável"
Para Riordan Roett, membro do Conselho de Relações Internacionais de Nova York e professor da John Hopkins University de Washington, ainda é muito cedo para determinar o impacto da crise a longo prazo no Brasil, mas diz que o país está numa "posição confortável".
"Em dois dias teremos uma noção melhor do que vem pela frente e se a crise vai afetar o Brasil", diz.
O analista acredita que os países emergentes estão melhor preparados desta vez porque obteviram excedentes fiscais, cresceram mais do que o esperado e seus governos têm sido cautelosos mantendo as taxas de juro e evitando a inflação.
"O Brasil não terá problemas em acessar o mercado internacional e, neste momento, o país não precisa acessar esses mercados", diz.
Por outro lado, Roett diz que, se o mercado se deteriorar de forma dramática, a crise vai ter impactos não somente o Brasil mas também na Ásia e em todos os mercados emergentes.

Extraído de www.bbcbrasil.com.br

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Entenda como a crise econômica afeta o Brasil

A crise no sistema bancário nos Estados Unidos tem provocado quedas generalizadas nas bolsas de todo mundo e muitas dúvidas sobre a economia global.
A Bolsa de Valores de São Paulo também vem sofrendo com grandes quedas, o valor do dólar voltou a subir e o crédito internacional ficou mais difícil.
A seguir a BBC Brasil faz um resumo de alguns dos principais canais pelos quais a economia brasileira está sendo, ou pode ser, afetada.
Menos crédito
Uma das principais vias de contágio da crise internacional se dá por meio da falta de crédito. Com a crise atual, há menos dinheiro no mercado e bancos em todo o mundo estão mais cautelosos, têm diminuído seus empréstimos e cobrado mais caro por eles.
Na opinião do economista Nathan Blanche, da consultoria Tendências, é nessa área que está o maior perigo para a economia brasileira no médio e longo prazo. “As empresas devem conseguir continuar rolando suas dívidas, mas o mercado está mais difícil e algumas devem inclusive optar por não buscar dinheiro novo”, afirma ele.
Atualmente a dívida externa brasileira é da ordem de US$ 200 bilhões, sendo que a maior parte está na mão de empresas privadas. Mas o valor que vence até o final de 2008 é bem menor – em torno de US$ 15 bilhões. Para especialistas, as empresas que quiserem renovar essas dívidas terão que arcar com taxas mais altas de juros.
Os bancos brasileiros também já estão encontrando taxas muito altas para tomar empréstimos no exterior. A expectativa é que essa situação afete o crescimento do crédito no Brasil, de forma geral, e a capacidade de investimento das empresas, em particular. A falta de crédito internacional também pode afetar empresas estrangeiras que planejam fazer investimos diretos no Brasil.
A dúvida entre os especialistas é a intensidade desse enxugamento do crédito. O governo brasileiro tem se mostrado preocupado com o assunto e afirma que poderá criar alternativas de crédito com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outros bancos públicos.
Bolsa
A Bovespa tem sofrido sucessivas quedas e nos primeiros nove meses do ano já havia acumulado perdas da ordem de 25% (com a volatilidade, esses valores têm mudado muito rapidamente).
O impacto dessas quedas na economia em geral é limitado pelo tamanho da bolsa brasileira. Apesar do crescimento dos últimos anos, a Bovespa ainda tem um número relativamente pequeno de empresas, com 397 companhias listadas. A Bolsa de Valores de Nova York, por exemplo, tem 2.365.
Além disso, embora o montante de dinheiro negociado na bolsa brasileira seja alto, há uma grande concentração em grandes empresas como a Petrobras e a Vale. Apenas essas duas empresas têm representado em média 40% do valor negociado na Bovespa neste ano.
Apesar disso, a queda nas bolsas afeta a economia real por pelo menos duas vias: quem investiu na bolsa tem menos dinheiro para gastar, e as empresas têm que procurar outras fontes de financiamento.
A Bovespa conta com cerca de 500 mil investidores como pessoas físicas. Além disso, houve uma grande queda de IPOs, os lançamentos iniciais de ações das empresas. Em 2007, foram lançadas na Bovespa 64 novas empresas. Até setembro de 2008, tinham ocorrido apenas quatro IPOs.
Dólar
Após quedas recordes da moeda americana em julho, o dólar voltou a se valorizar de forma crescente a partir de agosto de 2008. Mas qual o impacto dessa subida?
Por um lado, o dólar mais forte pode, caso a alta se sustente, ajudar os exportadores a se tornarem mais competitivos, o que é celebrado por vários empresários e economistas.
Por outro, a alta pode atrapalhar no combate a inflação. Segundo cálculos da consultoria Tendências, cada variação de dez pontos percentuais no dólar tende a gerar um ponto percentual de elevação trimestral do índice de inflação IPCA. Desde o começo de 2008 até meados de setembro, a alta acumulada do dólar estava variando entre 5% e 6%.
Essa alta, avaliam especialistas, pode pesar na avaliação do Banco Central sobre a subida dos juros.
Comércio exterior
Nos últimos cinco anos, o Brasil tem tido grandes superávits na balança comercial (exportações maiores do que as importações) e um aumento crescente dos valores vendidos no exterior. Segundo dados do Banco Central, as exportações saltaram de US$ 73 bilhões, em 2003, para US$ 160 bilhões, no ano passado. Em 2006, o Brasil teve um superávit recorde de mais de US$ 46 bilhões.
Uma parte desse aumento se deve à subida dos preços dos produtos brasileiros no externo e não à venda de mais produtos. Agora o preço das commodities agrícolas e minerais, grande responsáveis pela melhora nos valores, estão caindo.
Além da queda dos valores, existe a expectativa de que o crescimento mundial diminua, especialmente em 2009, o que deve significar menos comércio internacional e o risco de uma redução das exportações brasileiras.
Por outro lado, a desvalorização do real pode tornar os produtos brasileiros mais competitivos e derrubar as importações.
Apesar das mudanças no cenário internacional, o governo brasileiro tem mantido suas estimativas para 2008, com um forte aumento das exportações, na casa dos US$ 190 bilhões, e um superávit comercial de mais de US$ 20 bilhões.
A dúvida entre os economistas é como ficarão as contas em 2009. Para a maioria dos analistas, o fiel da balança será o desempenho das economias emergentes, especialmente a da China e a da Índia.
Exportações e a economia real
Se as exportações ou o valor das commodities caírem muito, as principais afetados serão as empresas exportadores. O impacto sobre o restante da economia é limitado pelo fato de o país ser relativamente fechado: o setor exportador responde por cerca de 14% do PIB. Além disso, o Brasil vende para muitos países diferentes e tem uma pauta diversificada, com produtos manufaturados representando mais de 50% das vendas.
Outro aspecto positivo para o Brasil é que o mercado interno brasileiro está aquecido e tende a absorver pelo menos parte de uma eventual queda de produtos exportados.
Uma queda ou desaceleração nas exportações é visto como um risco maior porque pode afetar o equilíbrio das contas externas. O risco maior seria para 2009. A expectativa oficial para 2008 é que Brasil tenha que cobrir um buraco de US$ 24 bilhões nas contas externas – o que deverá ser feito pela soma entre o superávit comercial e os investimentos externos no país. Para 2009, a previsão é que o rombo passará dos US$ 30 bilhões.
Alguns economistas já fazem avaliações bastante pessimistas, apostando que o superávit brasileiro poderia cair abaixo dos US$ 5 bilhões no ano que vem. Isso tornaria a economia mais dependente de investimentos externos para fechar suas contas e mais vulnerável.
Para o governo, a expectativa de que os investimentos estrangeiros serão mantidos e reservas internacionais de mais de US$ 200 bilhões garantem que o Brasil não sofra grandes riscos no médio prazo.
Crescimento
Um dos poucos consensos entre os economistas em meio à atual crise é que a economia brasileira deve diminuir seu ritmo de crescimento. Para Antônio Madeira, da consultoria MCM, mesmo com todas as mudanças, o PIB brasileiro deve subir por volta de 5,5% em 2008. Para 2009, ele acredita que esse número deve ficar entre 3,8% e 3,5%.
Os números variam um pouco dependendo da fonte, mas a grande maioria dos analistas trabalha com faixas parecidas.
O motivo da queda é que mesmo que o Brasil não seja muito atingido pela crise externa, as diferentes fontes de contaminação devem contribuir para derrubar a atividade econômica. Além disso, o próprio BC brasileiro está com uma política de aumentos de juros com o objetivo de reduzir o crescimento no ano que vem.

Futuro do capitalismo diante de crise divide analistas

Os mercados de ações estão em crise e vários bancos de investimento estão quebrando. O que isso significa para o futuro do capitalismo? Alguns economistas e analistas dão a sua visão.
O filósofo Noah Chomsky diz que o capitalismo erra ao não calcular os custos de quem não participa das transações financeiras, e por isso entrou em crise.
Para Peter Jay, um dos diretores do Bank of England, o banco central britânico, houve excesso de confiança de investidores no capitalismo e, de agora em diante, não haverá mais tanto otimismo com o sistema.
Já Patrick Minford, que foi assessor do governo britânico nos anos 80, acredita que apenas alguns ajustes são necessários na regulação do sistema financeiro para que o capitalismo volte a se fortalecer.
Jon Danielsson, economista da London School of Economics, alerta que é preciso evitar que esta crise leve a um excesso de regulamentos.
Confira abaixo as análises.
Noah Chomsky*, filósofo e lingüista
Os mercados têm ineficiências conhecidas e inerentes. Um fator é a falha para calcular os custos de quem não participa destas transações. Estas "externalidades" podem ser gigantes. Isso é particularmente verdade no caso de instituições financeiras.
A tarefa deles é assumir riscos, calculando custos potenciais para si mesmos. Mas eles não levam em consideração as conseqüências das suas perdas para a economia como um todo.
A intervenção do Federal Reserve revela, mais uma vez, o caráter profundamente antidemocrático das instituições capitalistas.

Logo o mercado financeiro "subestima o risco" e é "sistematicamente ineficiente", como escreveram John Eatwell e Lance Taylor há uma década, alertando para os perigos extremos da liberalização financeira e revendo os custos substanciais que estão implicados – e também propondo soluções, que foram ignoradas.
A intervenção sem precedentes do Federal Reserve (o banco central americano) pode ser justificável ou não em termos estreitos, mas revela, mais uma vez, o caráter profundamente antidemocrático das instituições capitalistas, feitas em grande medida para socializar o custo e o risco e privatizar os lucros, sem uma voz pública.
Isso não é, é claro, limitado ao mercado financeiro. A economia avançada como um todo se ampara pesadamente no dinâmico setor estatal, com a mesma conseqüência em relação ao risco, custo, lucro e decisões – características cruciais dos sistemas político e econômico.
* Noah Chomky é filósofo e professor de lingüística do Massachusetts Institute of Technology.
Peter Jay*, economista e jornalista
Na medida em que nomes grandes de Wall Street estão indo à lona, destruídos pela própria arrogância e pelo ambiente financeiro mais hostil em quase 80 anos, nós devemos nos perguntar: por que estamos tão surpresos? Logo nós, que deveríamos ser especialistas? Por que não previmos isso?
A verdade é desconfortável. Nós ficamos cada vez mais cínicos sobre o discurso marxista de contradições do capitalismo, porque o próprio marxismo fracassou nos anos 70, enquanto o capitalismo sobreviveu. Ele fracassou tanto que seus seguidores foram desacreditados.
Por que estamos tão surpresos? Por que não previmos isso?

As pessoas de uma geração mais antiga acreditavam verdadeiramente que alguma combinação das idéias de Walter Bagehot e J. M. Keynes tornariam impossível um novo colapso do sistema financeiro e uma depressão da macroeconomia.
Os bancos centrais nunca deixariam isso acontecer de novo.
Para uma geração mais nova, os anos 30 parecem que são algo do passado distante e que as crises desde então terminaram sem catástrofes. A complacência é o preço do sucesso.
Mas agora nós precisamos enfrentar a possibilidade real de que as mudanças de humor dos mercados financeiros não podem para sempre serem baseadas em otimismo; quanto mais as ações subirem, mais elas cairão, e essa falha no capitalismo não pode ser consertada – nem mesmo por Alan Greenspan – porque está cunhada na imutável psicologia humana.
* Peter Jay é diretor não-executivo do Bank of England e ex-editor de economia da BBC
Patrick Minford*, economista
No atual desastre financeiro, já se ouve vozes pedindo mais regulamentos para "cortar os excessos do capitalismo".
É preciso lembrar primeiro que já existe muita regulação sob os acordos de Basle.
O problema é que os bancos evitaram as leis usando "veículos especiais de investimento" nos seus balanços.
Um ajuste necessário seria simplesmente assegurar que, no futuro, isso seja corrigido.
O capitalismo tem um bom histórico de melhorar dramaticamente os padrões de vida do mundo ao longo de grandes períodos.

Em segundo lugar, os bancos de investimento, como o Lehman Brothers, praticamente não são regulados e estão completamente fora dos acordos de Basle. No entanto, estes animais passaram por um banho de sangue e provavelmente não se comportarão mais desta maneira nunca mais.
O capitalismo tem um bom histórico de melhorar dramaticamente os padrões de vida do mundo ao longo de grandes períodos.
A legislação bancária – que goza do privilégio do "credor de último recurso" com recursos dos contribuintes – é necessária para proteger o contribuinte de abusos.
Mas nós precisamos de um sistema bancário e financeiro vigoroso e competitivo. Qualquer ajuste à estrutura regulamentar atual precisa manter isso em mente.
* Patrick Minford é economista da universidade de Cardiff. Ele foi assessor informal da ex-premiê britânica Margaret Thatcher.
Jon Danielsson*, economista
Nós ouvimos que a onda de fusões, nacionalizações e falências no mundo financeiro representam o fracasso da velha forma de se fazer negócios, e que o futuro é um mundo pesadamente regulado, como nos anos 50.
Nada pode estar mais longe da verdade do que isso. O custo de prevenir crises significa uma economia como em Cuba ou na Coréia do Norte.
A verdadeira tragédia seria se a reação oficial à crise fosse o excesso de regulação mal-pensada e politicamente motivada.

Enquanto alguns bancos, com a anuência de reguladores e com o apoio de governos, se colocaram em dificuldade, é a reação a essa crise que realmente interessa. O sistema financeiro está passando no teste até agora.
Nós sairemos desta crise tendo aprendido que é importante para os bancos não deixarem seus ativos tão complicados que nem eles, nem ninguém os entende.
A verdadeira tragédia seria se a reação oficial à crise fosse o excesso de regulação mal-pensada e politicamente motivada. Um sistema financeiro livre é essencial para a prosperidade internacional.
Por favor, legisladores não nos coloquem de volta em 1929 ou nos anos 50.
* Jon Danielsson é integrante do grupo de mercados financeiros da universidade London School of Economics.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Bolívia: Uma guerra que começou há muito tempo

BARCELONA (ALAI-AMLATINA) - Quem se interessa por história, descobrirá que a da Bolívia é uma história de massacres de indígenas, camponeses e trabalhadores desde os tempos coloniais até hoje. A República sustentou-se sobre a exploração da força de trabalho indígena e dos recursos naturais. A exploração consolidou uma estrutura social e institucional vinculada à produção e à exportação de matérias primas, consolidando no longo prazo uma condição de dependência que a converteu num dos países mais pobres do hemisfério ocidental. Com uma organização social extremamente estratificada e um horizonte estatal frágil, sua história é marcada por exclusão e massacres. Os povos originários nunca deixaram de manifestar seus anseios de liberdade, como provam as inúmeras sublevações, tanto as que culminaram com a grande rebelião de 1780, como as contra os fazendeiros, durante a República.Algumas destas sublevações tiveram grande magnitude, não só pelo esforço da mobilização e a tragédia que representaram, mas pela memória e herança emancipatória transmitida de geração em geração. As de 1874 e 1899, nas terras altas e nas terras baixas do país, se desdobraram em manifestações que terminaram em novos massacres como a rebelião de Machaca, em 1921, ou a de Chayanta, em 1928. Os massacres de trabalhadores também tiveram sua marca de dramatismo como a matança de mineiros em Uncia, em 1923, Catavi, em 1942, a guerra do Chaco (1932-1935), a revolução de 1946, a de 1952, a de 1964, a matança de San Juan, em 1967, o golpe militar de Bánzer, em 1971, o massacre de trabalhadores e universitários de 1979, a marcha pela vida, em 1986, a marcha pela terra , em 1990, a guerra do gás e o massacre de El Alto, em 2003, e, agora, o massacre de Pando.Com o tempo, consolidou-se na estrutura mental dos povos indígenas e dos movimentos populares, tanto das terras altas como das terras baixas, uma cultura política insurrecional e de resistência anticolonial que foi e é uma guerra longa e intermitente contra os invasores e seus descendentes, que cruza de forma transversal toda a história boliviana. Agora, esses movimentos populares e indígenas, liderados pelo presidente Evo Morales, converteram-se em uma real opção de poder político e construção de uma nova hegemonia política que questiona a estrutura oligárquico-clientelista e antinacional que governou o país até dois anos atrás. Os movimentos indígenas e campesinos já não são sujeitos de postais folclóricos, agora são uma real opção de poder político para o país. Essa é a dimensão deste novo paradigma.Inclusive a esquerda tradicional, baseada em paradigmas que já não se sustentam, como o fato de assumir a “inevitável” vanguarda operária em todos os processos revolucionários, tem dificuldade em assumir a potência deste novo e, ao mesmo tempo, antigo ator social cuja estratégia de poder se sustenta na recuperação do Estado para as maiorias nacionais e que este sirva não só para assegurar a propriedade dos recursos naturais para todos os bolivianos, mas também para redistribuir as rendas obtidas com sua exploração. O conservadorismo da oligarquia boliviana, idêntica a de qualquer outra região, viu-se obrigada a aceitar ser governada por um “índio” que, segundo seus cálculos, cairia por si próprio e por sua condição de “índio”. Mas quando se questiona a estrutura da propriedade da terra, estão dispostos a tudo para não abandonar o cenário da história.A sedição aberta da direita responde a uma estratégia planificada e coordenada de violência, bloqueios de estradas, ocupações de entidades estatais, controle e saque de instituições públicas, plano de fustigamento e ameaças, ocupação de quartéis, fechamento de válvulas de gás, desabastecimento de produtos básicos, desestabilização econômica, criação de um clima de insegurança e desgoverno. Um pano golpista que coincide, quase como uma cópia, com o que ocorreu no Chile durante o governo de Salvador Allende. Com tudo isso, ainda fica no ar uma sensação de passividade por parte do governo boliviano. Os movimentos sociais tomaram a iniciativa de conter a escalada golpista com a mobilização de suas bases, cuja decisão é frear a direita com a autoridade moral que lhes dá o sangue derramado, sua capacidade combativa e o horizonte de um modelo de país diferente.Foram eles que carregaram sobre seus ombros os vexames e a marginalização a que os submeteram a colônia e o estado republicano oligárquico. O governo popular tem a obrigação de fazer respeitar o Estado de Direito em todo o país e levar para a Justiça os criminosos, sediciosos e paramilitares fascistas que executaram um novo massacre. O que eles pensaram que seria um elemento que incendiaria os sentimentos regionalistas autonomistas da direita fascista, acabou gerando uma reação contrária. O crime e a barbárie desta ação expôs essa direita. As Forças Armadas e a Polícia Nacional, historicamente, atenderam aos interesses da oligarquia a qual pertencem seus principais oficiais. Isso explica em parte sua posição de “braços cruzados” e inoperância frente às ações ameaçadoras da classe social com a qual se identificam.Na história dos massacres, os militares sempre foram os atores inconfundíveis da repressão e da morte. Em todos os casos, atuaram como sicários a serviço das oligarquias. Exceto no último massacre campesino de Pando. Isso não é sinal de nada, só que devem cumprir a lei que lhes assinala a responsabilidade de serem “garantidores da unidade da pátria” e de obedecerem ao seu comandante geral, o presidente Evo Morales. Mas é preciso não cair na ingenuidade de pensar que estejam de acordo com o novo projeto de país que se constrói na Bolívia. A maior debilidade do campo popular é sua extrema diversidade e as lutas setoriais. A maior vantagem, a capacidade e tradição de luta revolucionária. O país está chegando a um ponto de bifurcação, a um ponto de inflexão e ruptura. A saída “democrática” foi esgotada com os resultados do referendo revocatório.A violência provocada pelas oligarquias deve enfrentar as conseqüências da resposta popular. A guerra civil que muitos temem, na verdade, já começou há muito tempo, só que agora adquire uma dinâmica diferente, uma liderança distinta. O projeto emancipatório que devemos apoiar é o da “Revolução democrática e cultural”. O presidente Evo Morales assume com uma fortaleza grave a liderança desta nova etapa. Definindo que sua posição está ao lado do povo que hoje decide assumir o desafio que lhe impõe a história. A principal tarefa dos movimentos sociais e indígenas é tomar a iniciativa e passar da resistência à ofensiva. O seguinte passo é aprovar a Nova Constituição Política do Estado.
Economista boliviano, professor da Universidade Autônoma de Barcelona.Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A SEGUNDA GUERRA FRIA

O Cáucaso e as apostas geopolíticas das grandes potências

ALFAZ, Espanha - Em junho de 1997 fui convidado pelos embaixadores da Geórgia, Armênia e do Azerbaijão em Washington para visitar seus respectivos países e explorar possíveis soluções para os conflitos no sul do Cáucaso, de novo hoje em plena ebulição. Minha recomendação na época foi a de formar uma comunidade caucasiana com Geórgia, Armênia, Azerbaijão e as 28 nacionalidades da área, bem como criar uma zona comum onde os três países pudessem se reunir em uma administração conjunta, com um aeroporto internacional ligado por trem com as três capitais.

A geografia colocou o Cáucaso circundado por Rússia ao norte, Turquia a oeste e Irã ao sul, mas agora tem também os Estados Unidos por todos os lados na região. Os norte-americanos finalmente chegaram, após uma impaciente espera, à Geórgia e Azerbaijão, enquanto os russos chegaram à Abjasia e Armênia.

O Cáucaso é atualmente o principal teatro da nascente Guerra Fria II, que implica o estabelecimento de um certo ao redor de Rússia-Índia-China (que representam 40% da humanidade) a fim de controlar a Eurásia (uma “ilha Mundo”, segundo a geopolítica de MacKinder de um século atrás) através da expansão para o Leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da expansão para Oeste do sistema de segurança norte-americano-japonês AMPO (com Coréia do Sul e Taiwan como membros de fato).

Além disso, os Estados Unidos pressionam para que Geórgia e Ucrânia sejam incluídas como membros da Otan para aproximarem-se cada vez mais do coração da Rússia. Esta idéia foi rejeitada na última reunião da Otan em um impulso de senso comum, e não por questão de princípios, por outros membros da organização. Aconteceu que, simplesmente, a situação ainda não estava madura para ceder à pressão norte-americana.

A mudança de regime na China é o número 7 dos 10 objetivos geopolíticos contidos no “Projeto para um novo século norte-americano”, que continua sendo um elemento-chave subjacente na política externa dos Estados Unidos. Washington, além de Ucrânia e Geórgia, também implementou funções militares no Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Quirguistao e Tajiquistao, em conexão, segundo se afirma oficialmente, com a situação o Afeganistão e, genericamente, com a “guerra contra o terrorismo”. estes objetivos de curto prazo foram aceitos por dirigentes medíocres com o risco de transformar a região em uma zona de guerra na luta pelo poder na Ásia central.

Em síntese, o Cáucaso pode se converter em uma importante zona de guerra se a Guerra Fria II se intensificar, não com um confronto direto entre Washington e Moscou, mas com várias guerras locais “pelo poder”, como ocorreu durante a Guerra Fria I. Para mobilizar as duas partes, o conflito territorial de Nagorno-Karabaj (NK) deve ser mantido vivo como um caso não resolvido. Uma possibilidade para isso é que o Azerbaijão invada NK quando o petróleo o tiver deixado suficientemente rico para poder fazer caso omisso do resultado da última guerra nesse mesmo território. Desse modo se alimentará uma interminável cadeia de vinganças e represálias.

A Geórgia, agora em plena erupção, é um caso pontual. O Exército Vermelho funcionou antes com a tampa da caldeira que era a União Soviética. Quando essa tampa foi retirada, a caldeira vazou. Agora ocorre o mesmo na Geórgia. Ao serem retiradas as tampas das caldeiras de Abjasia e Ossétia do Sul (e da muçulmana Ajar) impuseram-se ali os movimentos de secessão e a rejeição à invasão cultural e econômica por parte da Geórgia, bem com a dependência política do governo georgiano. Por outro lado, as duas regiões estão muito próximas de Moscou, o que não significa necessariamente que querem se converter em parte da Rússia.

Quais são as soluções possíveis? A Geórgia como Estado unitário não tem possibilidades, exceto na propaganda nacionalista georgiana. Como federação as perspectivas seriam melhores, mas a opção mais viável poderia ser a criação de uma comunidade caucasiana integrada pelas quatro entidades. Algo semelhante pode ser aplicado ao ainda mais difícil conflito NK: qualquer tipo de paz deve respeitar os direitos armênios à autodeterminação e a igualdade das partes.

Trocar os direitos humanos dos armênios da NK pelo fluxo de petróleo pode parecer uma solução inteligente para os dois Estados, mas a paz a esse custo seria uma bomba de tempo pronta para explodir a qualquer momento. Além disso, preservar o status quo é injusto para os correspondentes povos e dividir NK deixaria as duas partes inviáveis e insustentáveis.

As ações viáveis poderiam incluir o seguinte:

- NK como um Estado independente obrigado a proteger suas minorias
- NK governado conjuntamente por Azerbaijão e Armênia
- Uma confederação, ou mesmo uma federação, Azerbaijão-NK-Armenia
- O Cáucaso em sua totalidade como uma confederação ou mesmo uma federação e NK como uma parte dela
- A integração de todas as partes da União Européia como uma federação de fato

A paz no Cáucaso implica o afastamento da esfera de influência das grandes potências e o compromisso com políticas caucasianas integradoras. As políticas atuais não conduzem à paz. Um governo georgiano que procura ganhar apoio popular ao reclamar “territórios perdidos”, esperando, ao mesmo tempo, obter o apoio dos Estados Unidos, não fez mais do que agravar a situação e possivelmente pode levar a um confronto maior ainda. São imprescindíveis, por outro lado, comportamentos dignos de estadistas.

* Johan Galtung, professor de Estudos sobre a Paz e fundador da Transcend, organização dedicada à pacificação e ao desenvolvimento (http://www.transcend.org/tup).
Extraído de www.agenciacartamaior.com.br