quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Por uma nova geografia, Milton Santos - Fichamento

Capítulo IX - Uma nova interdisciplinaridade
“Desde que a geografia começou a busca de sua individualidade como ciência, os geógrafos tiveram a pretensão de que ela fosse, antes de tudo, uma ciência de síntese, isto é, capaz de interpretar os fenômenos que ocorrem sobre a face da terra, com a ajuda de um instrumental proveniente de uma multiplicidade de ramos do saber científico tanto no âmbito das disciplinas naturais e exatas, quanto no das disciplinas sociais e humanas”. (p.97)
“A capacidade de síntese, que não é privilégio de nenhum especialista surge como resultado de uma preparação intelectual que vai além da própria especialidade para abarcar o universo das coisas e a compreensão de cada coisa como um universo”. (p.98)
O isolamento da geografia
“Com a geografia além do mais, estamos diante de um paradoxo que, ao mesmo tempo, é uma ironia. Na verdade essa ciência de síntese é, seguramente, aquela que, na sua realização cotidiana, mantém menos relações com outras disciplinas. Tal isolacionismo é mesmo responsável pelas dificuldades que ela encontra para evoluir”. (p.98)
“De fato, a manutenção da ideia da existência de escolas nacionais de geografia está ligada, sobretudo, a um certo gênero de competição, cujos efeitos se fazem originariamente sentir muito mais fora das fronteiras dos diversos países. Cada qual das chamadas Escolas Nacionais de Geografia funciona muito mais eficazmente no estrangeiro do que dentro de casa. Constituem uma forma a mais de exercitar o imperialismo cultural, que é uma maneira insidiosa de insinuar, através dos intelectuais locais, uma interpretação alienada das realidades locais”. (p.99)
“Mas, nesta história cheia de ironias que é a história da geografia, tudo pode acontecer. A exportação de uma forma de elaborar o conhecimento que representa os interesses internos e externos do país exportador, termina por repercutir dentro dele através do condicionamento da pesquisa e do ensino, que formam uma unidade junto com os interesses político-econômicos dominantes em cada país. Isso ajuda, igualmente, a criar um isolacionismo que a barreira linguística e o agravamento das disputas hegemônicas entre países ricos só faz agravar”. (pp.99-100)
Vantagens da interdisciplinaridade
“A geografia padece, mais do que as outras disciplinas, de uma interdisciplinaridade pobre e isso está ligado de um lado à natureza diversa e múltipla dos fenômenos com que trabalha o geógrafo e de outro lado, a própria formação universitária do geógrafo”. (p.100)
“Na realidade, ainda está para ser analisada mais profundamente a coerência de uma autêntica preocupação interdisciplinária entre os geógrafos, potencialmente agravada pelo fato de todos, ou quase todos, estarem absolutamente certos de que trabalham de forma interdisciplinar. Como na realidade isso não se passa, a geografia não se beneficia dessa forma de enriquecimento”. (pp.100-101)
“O filósofo inglês Whitehead (1938 p. 136) nos lembra que a explicação para muitos fenômenos correspondentes a uma dada ciência é muitas vezes encontrada fora do âmbito dessa ciência. Em outras palavras: se ficamos confinados à sociologia para explicar o que se chama o fato social; à economia, para compreender os fenômenos econômicos; à geografia, para interpretar as realidades geográficas, acabamos na impossibilidade de chegar a uma explicação válida. Não há porque temer a invasão do campo do outro especialista”. (p.101)
“Na verdade, o princípio de interdisciplinaridade é geral a todas as ciências. Foi Jacques Boudeville quem escreveu que ‘toda ciência se desenvolve nas fronteiras de outras disciplinas e com elas se integra em uma filosofia. A geografia, a sociologia, a economia, são interpretações complementares da realidade humana’.”(p. 102)
Geografia e interdisciplinaridade
“A busca dessa interdisciplinaridade há tempo sugerida por Ritter inspirou os geógrafos em certo número de soluções. Uma delas foi a entronização do que se poderia chamar de geografias especiais, fórmula adotada por Jean Brunhes como Camille Vallaux, ambos criticados por Maximilien Sorre... ‘Apesar do que disseram Brunhes e Vallaux’, continua Sorre, ‘não há geografia especial nem um problema de geografias especiais, mas, somente capítulos de uma geografia humana cuja unidade não se deve romper porque o homem individual é, em cada um dos seus atos, um homem total’.” (p. 103)
“Além disso, e assim como ocorreu com muitas outras disciplinas, um outro fator veio contribuir para que a meta muito desejada não fosse alcançada. Referimo-nos à confusão entre interdisciplinaridade e multidisciplinaridade. Quando se fala em multidisciplinaridade se está dizendo que o estudo de um fenômeno supõe uma colaboração multilateral de diversas disciplinas, mas isso não é por si mesmo uma garantia de integração entre elas, o que somente seria atingível através da interdisciplinaridade, isto é, por meio de uma imbricação entre disciplinas diversas ao redor de um mesmo objetivo de estudo”. (p. 104)
“...Uma interdisciplinaridade mercantil, ao invés de fazer progredir a ciência, contribui para a sua regressão. Esse modelo, fundado na índole comercial de certas universidades do mundo desenvolvido é, todavia, transplantado para países cujas condições reais são bem diversas”. (p.104)
As etapas da interdisciplinaridade aplicada à geografia
“Em primeiro lugar teremos que falar da interdisciplinaridade clássica, baseada em relações bilaterais entre a geografia e a história. Durante muito tempo se considerou a história e a geografia como uma espécie de irmãs siamesas”. (p. 105)
“A noção de uma história que organiza os fenômenos no tempo e de uma geografia que os organiza no espaço, herança de Kant que Hettner reelaborou aperfeiçoando-a, e que um sem-número de geógrafos do nosso próprio tempo manteve quase intacta é responsável por um equívoco extremamente grave no domínio do método: porque a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pesquisar como o tempo se torna espaço e de como o tempo passado e o tempo presente têm, cada qual, um papel específico no funcionamento do espaço atual...”. (p. 105)
“O melhor é pensar em termos de espaço e tempo. Estas duas noções também não são liberadas das mesmas dificuldades, talvez até maiores que as relacionadas com os vocábulos História e Geografia, porque o debate em torno da significação do Tempo e do Espaço iniciou-se com o começo da filosofia”. (p. 106)
“Uma segunda etapa da interdisciplinaridade em geografia é marcada por um fato muito mais negativo do que positivo, quer dizer, pela recusa dos geógrafos em aperfeiçoar conhecimentos oriundos de outras disciplinas. Esta fase é contemporânea daquele momento crucial em que os fundadores da geografia moderna passaram a ter como preocupação fundamental afirmar a geografia como uma ciência e como uma ciência autônoma”. (p. 106)
“A noção de interdisciplinaridade evoluiu com o progresso científico e o progresso econômico. E as novas realidades, exigindo uma explicação particular, exigem o aparecimento de novas disciplinas científicas. Isto equivale à morte da interdisciplinaridade clássica e à sua substituição por uma outra. O que ontem ainda podia ser considerado como um enfoque interdisciplinar correto, hoje não o é mais. Torna-se também necessário recusar aquelas contribuições parciais que anteriormente eram úteis, sempre que elas não mais representem as realidades. Nas condições novas aumenta a possibilidade de ajudar as ciências afins a progredir de fora para dentro com a contribuição de matérias vizinhas. Se, todavia, fazer progredir uma ciência particular não é um privilégio dos seus próprios especialistas, é, todavia, indispensável que o cientista, disposto a esse tipo de exercício, disponha das faculdades de crítica que somente podem ser-lhes oferecidas pela posse de uma concepção filosófica coerente”. (p. 107)
“A transformação da tecnologia em técnica é subordinada a dados econômicos, políticos, ideológicos; daí a necessidade da intervenção dos ensinamentos das ciências respectivas. Em nossos dias a ideologia vê aumentado o seu papel na interpretação do espaço pelo fato de os objetos serem planejados e construídos, com o objetivo de aparentar uma significação que realmente não têm. Tal significação é, muitas vezes, um resultado da preocupação com interesses de ordem internacional. Daí a importância do estudos das relações internacionais. E é para separar o significado assim outorgado ao objeto do seu valor real que a contribuição da semiologia surge como importante”. (p. 108)
“...E David Harvey (1972 p. 41 in Grave), um dos poucos geógrafos a se aventurar nesta seara intrincada que é a epistemologia da geografia, lembrando a dificuldade de termos de compreender psicologia, economia, sociologia, física, química e biologia, teme (1972 p. 41) ‘que a necessidade de especialização possa conduzir muitos dentre nós a nos concentrar apenas em um dos aspectos desse problema tão vasto’. Isto seria chegar ao resultado oposto ao desejado porque, ao invés de alcançar uma interdisciplinaridade suscetível de compreender os diversos aspectos de um mesmo objeto, chegaríamos a uma interdisciplinaridade coxa, uma especialização com todos os perigos da analogia do tipo mecânico”. (p. 109)
“O limite entre a utilização de uma descoberta obtida em um domínio do conhecimento e a posse completa e aprofundada deste domínio é bem colocado por A. N. Whitehead, quando se refere à enorme contribuição de Einstein para o desenvolvimento do conjunto das ciências. Em um discurso pronunciado ante uma assembleia de químicos ele foi levado a dizer: ‘sei bem que estou falando para membros de uma sociedade de química que, na sua maioria não são versados nas matemáticas avançadas. O primeiro ponto sobre o qual devo, pois, insistir é o de que, o que concerne imediatamente aos senhores não são exatamente as deduções detalhadas da nova teoria, mas as modificações de ordem global na base mesmo das concepções científicas, que decorrerão de sua aceitação’(A. N. Whitehead, The concept of nature, Cambridge at the University Press, 1964 p. 164)”. (p. 110)
A necessidade de uma definição do objeto da geografia
“As dificuldades para chegar a uma interdisciplinaridade legítima fizeram pensar a muitos que o melhor caminho poderia ser encontrado por uma espécie de trabalho de pesquisa cooperativa. Especialistas de diversas áreas seriam convocados, trazendo consigo sua bagagem metodológica própria, a fim de oferecer as múltiplas contribuições necessárias a que a geografia pudesse trabalhar de forma realmente interdisciplinar. A sugestão, evidentemente, serviria às outras disciplinas, que seriam, igualmente, interdisciplinares”. (p. 110)
“Uma interdisciplinaridade que não leva em conta a multiplicidade de aspectos com os quais se apresenta aos nossos olhos uma mesma realidade, poderia conduzir a construção teórica de uma totalidade cega e confusa, incapaz de permitir uma definição correta de suas partes, e isso agravaria, ainda mais, o problema de sua própria definição como realidade total”. (p. 111)
“Isto supõe que se reconheça um objeto à geografia e que se hajam identificado suas categorias fundamentais. É bem verdade que as categorias mudam de significação com a história, mas elas também são uma base permanente e portantoum guia permanente para teorização. Em nosso caso, trata-se da produção do espaço”. (p. 111)

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